8 de junho de 2010

Hotéis de passagem (IV)



E já agora o meu hotel pessoal de passagem, o Excelsior, na rua de Cujas, em Paris, onde havia, também, um quarto misteriosamente parecido com o do conto de Cortázar, com uma porta escondida atrás de um armário que deixava ouvir não os gemidos de amantes de passagem, mas o murmúrio de um casal de exilados chilenos que ali estavam também de passagem.

Quando vou a Paris, subo sempre a Rue de Cujas, que liga o Boulevard Saint Michel à rue d´Ulm, e ao passar em frente da porta de entrada espreito, dissimuladamente, para o pequeno foyer onde se encontra o balcão da recepção, agora modernizado, depois de um upgrade remodelador que o dotou de um pequeno salão com amplas vitrinas que dão para a rua. Contudo, não se modernizam as recordações cegas da minha vida suspensa naquele pequeno hotel de passagem para hóspedes errantes sem pátria nem dinheiro.

E recordo, então, o quarto, pequeno, no terceiro andar, com uma pequena janela de guilhotina que dava à esquerda para uma açoteia e para mais nada, porque se abria para um muro sobre o qual espreitava um inútil pedaço de céu quase sempre cinzento: uma pequena estante de madeira onde coleccionava livros que falavam de revoluções por fazer, um armário onde guardava parcos haveres, uma colcha escura de textura áspera sobre uma cama estreita onde deitava em noites de vigília a saudade, uma lâmpada florescente no tecto, uma cortina azul escura no cubículo de banho, uma chávena onde derramava água apenas tépida colorida pelas saquetas de chá verde.

Com um golpe de google fico a saber que também o quarto foi vítima de um upgrade, e a porta entaipada pelo armário substituída por uma parede de alvenaria que já não deixa escutar os murmúrios do quarto vizinho. E concluo, então, que aquele Excelsior que ali está já não é o mesmo onde transitoriamente me encerrei nas minhas paredes interiores, mas que nem por isso deixarei de continuar a olhar, dissimuladamente, através da sua porta, sempre que suba a Rue de Cujas.

2 de junho de 2010

Hotéis de passagem (III)



Hotéis de passagem, às vezes, de ocupação sedentária, outras vezes. Como o hotel La Louisiane, na rue de Seine, em Paris, cujo quarto 58 foi, durante mais de sessenta anos, o único lugar de escrita de Albert Cossery. Ou como outros hotéis parisienses já desaparecidos, vítimas de upgrades, de reconversões ou de demolições, como os hotéis habitados por Joseph Roth, cuja obra ando a ler: o Foyot, na rue Tournon, junto ao Jardin du Luxembourg, onde já tinha morado Rainer Maria Rilke, e que Roth abandonou quando os escombros da demolição já se amontoavam por detrás da porta entaipada do seu quarto; e o tétrico hotel Florida, no Boulevard Malesherbes; e o miserável Hotel de la Poste; e o albergue Principautés Unies onde morou Hannah Arendt.

Ainda o desconcertante cenário de Hotel Savoy, em Lodz, título do romance homónimo de Joseph Roth; e em Zurique, o hotel onde às vezes Robert Walser se ocultava num quarto a que chamava a Câmara de Escrita para Desocupados e aí, sob a luz crepuscular de um candeeiro de petróleo, deixava que a sua mão indecisa o conduzisse pelos territórios do lápis, cujo traço o empurrava lentamente para o desaparecimento, para o eclipse, mimetizando-se para não ser descoberto; e também aquele quarto, não de um hotel mas de um edifício de dois andares, em Kierling, Viena – outrora um sanatório -derradeira passagem de Kafka.

Mas talvez o mais absoluto hotel de passagem de que ouvi falar seja aquele, em Port Bou, onde se abrigou Walter Benjamin em fuga para Lisboa, aonde não chegaria nunca porque as suas asas incertas de borboleta nocturna falhariam no último momento, incapazes de o levarem para fora do pequeno quarto onde se hospedara na última etapa da sua vida crepuscular. Também aí havia uma porta entaipada por detrás da qual se adivinhava a lenta irrupção da manhã, que já não chegaria a tempo de iluminar a sua solidão irredutível de ter sido sempre estrangeiro em todos os hotéis de passagem da sua vida e de não ter tido nunca nada, a não ser a pasta preta pousada em cima da mesa de cabeceira, onde guardava os últimos «labirintos de tinta embebidos nos seus cadernos».