27 de junho de 2007

Estrada de Damasco


Talvez por em Doutor Pasavento também ter frequentado a rue Vaneau, em Paris, onde «no [número] 20, se encontra a embaixada da Síria», quase sem dar por isso fui entrando em contacto com aquele país. Seria essa a «silenciosa ameaça», que pairava naquela rua como alguem avisou Vila-Matas? O que é certo é que desde a leitura de Pasavento, a Síria começou a insinuar-se nos meus dias sem que eu fizesse nada por isso. Muito menos imaginava que, algum tempo depois da invocação síria deVila-Matas, estaria a telefonar para o mesmo número 20 da rue Vaneau, para obter informações sobre vistos de entrada na Síria. E que sabia eu da Síria, antes? Como Pasavento sabia «apenas que a capital era Damasco, tinha-o aprendido na escola. E mais alguma coisa? Embora não conhecesse o seu nome, sabia como era fisicamente o presidente da Síria, tinha observado nas fotografias que usava bigode, era bastante alto e costumava vestir-se ao estilo ocidental. Mas era tudo o que sabia sobre a Síria» (pág.23). A isto acrescentaria eu, ainda, a guerra com Israel pela posse dos Montes Golã, conspirações contra o Líbano, a acusação americana de integrar um certo «eixo do mal» e outros episódios fronteiriços recentes. Depois, fui-me lembrando que por lá corria esse rio antigo, o Eufrates, em cujas margens nasceu a História; que as pedras romanas de Bosra e Palmiria lá permanecem para gáudio dos turistas, e que nas areias do deserto se erguem ruínas indecisas de castelos e igrejas mandadas eregir pelos cruzados, o mesmo deserto de pedras de sílex tantas vezes atravessado por T. E. Lawrence, com promessas de liberdade para os Árabes; que a Rota da Seda, vinda dos confins da China, atravessara o seu território até aos portos do Mediterrâneo onde navios de velas brancas esperavam as caravanas de camelos; que nos souks e ruelas de Alepo, onde abandonamos o corpo e a alma, ainda sopra o mesmo movimento de outrora . E que Damasco, com as suas madrassas, os seus palácios das mil e uma noites, a grande mesquita dos Omeyyadas,  foi  descrita, no século XII, pelo viajante Ibn Jubayr, como o «paraíso do Oriente».

Era esta Síria que, sem dar por isso, começara a cair nos meus dias, como que a preparar um certo terreno propício a uma certa decisão que eu próprio ignorava ainda. E, no entanto, havia outros outros acasos que prenunciavam, senão a ameaça síria, pelo menos uma intromissão árabe. Primeiro, através dos trilhos de Paul Bowles e, logo depois, de Albert Cossery, que me levaram desde Tânger, atravessando o Sahara, até às ruelas pobres da vagabundagem infatigável do Cairo dos anos 40. Sim, também o livro de Elias Canetti, Maraquexe, que comprei na Feira do Livro. E que dizer do meu interesse súbito por Adónis, o poeta rebelde sírio-libanês que comecei a ler depois da minha experiência na rue Vaneau» - e que ousou declarar que «o véu não cobre apenas o rosto, recobre também o cérebro»? Não se poderia ver aí outro sinal, ainda que os versos generosos de Adónis não colham a simpatia da Síria? Ou no livro de Pietro Citati, Israel e o Islão: as centelhas de Deus [Cotovia, 2005] - que estou a ler - e que fala do feérico reino de Salomão, da moldura das Mil e Uma Noites - cujo códice mais antigo que se conhece provém, precisamente, da Síria - com os seus califas, vizires, mercadores, as suas geografias fantásticas; que ilumina a Palavra dos Pássaros, do poeta Farid al-Din Attar que viveu na Pérsia, no século XII; e que, sobretudo, evoca a utopia de aproximação do reino de Adão ao reino de Salomão que sucessivos fundamentalismos, cristãos, judaicos e islâmicos enterraram, como diz Adónis, na «poeira de tinta vermelha» do deserto?

Só depois desta série de acasos é que irrompeu Amã em forma convite para uma reunião. E, no imediato, não pensei na Síria. A ideia seria permanecer uma semana na Jordânia, ir até Jerash e depois até ao Sul, a Petra, claro, e talvez a Wadi Rum seguindo o trilho de Lawrence da Arábia.

Por isso, eis-me agora numa Amã, aparentemente muito ocidentalizada, mas onde me "aproximei" esta tarde da estrada de Damasco, vagabundeando no caótico souk de Al-Balad, ladeado pela mancha branca do calcário das casas que descem as colinas e sempre acompanhado pela música das vozes que se misturam entre as bancadas de azeitonas, sumos, beringelas, cerejas, especiarias, panos de seda e outras bagatelas de toda a espécie.

Nao sei ainda se esta será mesmo a estrada de Damasco, pois a ideia é fazer uma escapadela de dois dias (dependerá do visto a pedir na fronteira). Entretanto, espera-me o Mar Morto e Petra de todas as cores, rosa, vermelha, verde, amarela e azul. Nomadismos.

26 de junho de 2007

Elogio da preguiça


Saint-Germain-des-Près foi para mim, durante os dois anos que vivi em Paris, o meu bairro artúrico [como a rua imaginada e percorrida por Rimbaud que, no final do seu trajecto, dava para o fim do mundo:«só pode ser o fim do mundo se avançarmos»], onde se concentrava toda uma mitografia que levei comigo, sedimentada nos lugares imaginados da minha atracção parisiense.

Neste bairro, que naquele tempo me foi oferecido como um pequeno território secreto, tracei com passos repetidos uma cartografia pessoal feita de ruas estreitas, passagens cobertas, pequenas livrarias, galerias de arte, estúdios de cinema, cafés, um mercado de rua, pequenos jardins... Era ainda o tempo em que, por exemplo, ao virar de uma esquina, podíamos encontrar os filhos do mundo que sonharam viver em Paris. 

Naquele tempo, era possível, invariavelmente depois 14h30, hora a que fechavam as agências de emprego, cruzarmo-nos com Albert Cossery, o escritor egípcio que nos anos quarenta aqui desembarcara com pouco dinheiro e tendo como única bagagem uma selecção de contos, Os homens esquecidos de Deus, que Henry Miller acabava de publicar nos Estados Unidos e que o editor Edmond Charlot pretendia publicar em França. Não trazia outra ambição que não fosse a de escrever um livro de oito em oito anos, à média de uma frase por semana. Na rua de Seine, que começa perpendicular à rua de Saint Sulpice e desce até ao quai Malaquais, no quarto 58 do hotel La Louisiane cujas janelas davam sobre uma mercearia - frequentado na época por Gréco, Sartre, Beauvoir, Mouloudji... -, escolheu Cossery o seu único lugar de escrita, o espelho perfeito de alguém que apenas pretendeu gozar a vida, o reflexo de uma obra que elegeu o dandismo indolente como processo de reflexão permanente, povoada por mendigos filósofos, ladrões magníficos e preguiçosos impenitentes. 

Como Gohar, Gala ou Ossama, as suas personagens  rebeldes que cultivam a pobreza para não ter nada a perder, Cossery baniu da sua existência os bens mundanos e elegeu a preguiça como arte de vida e instrumento de resistência contra a vanidade dos seus contemporâneos: «Se eu tivesse guardado tudo o que me ofereceram, seria milionário. Quando Giacometti me dava um quadro, ele sabia que eu o venderia no dia seguinte. Isso permitia-me viver durante algum tempo». Porque um quarto de hotel não é uma casa, só ali, sem casa nem carro a atestar a sua presença sobre a terra - apenas alguns livros de Dostoievski, Nietzsche, Stendhal, Baudelaire, Rimbaud, Thomas Mann... - Cossery se sentia livre, praticando a indolência e a meditação que os seus livros celebram. «Não se trata, pois, de preguiça. É tempo de reflexão. E quanto mais preguiçoso fores, mais tempo tens para reflectir. E é por isso que, no Oriente, isso se designa por filosofia oriental... A maior parte das pessoas tem tempo. Quanto mais se desce para sul, mais encontramos profetas, magos, pessoas que reflectiram sobre o mundo». E foi aí, nesse pequeno quarto de hotel na rua de Seine, que Cossery, iluminado pela gaia ciência de Nietzsche, escreveu com toda a ternura do mundo sobre as misérias insondáveis das vielas do Cairo, nos anos quarenta, cinquenta. Embora nunca mais tenha regressado ao Egipto - «O Egipto nunca me deixou» -reinventou-o mais verdadeiro que o verdadeiro, com os seus mendigos e altivos, desesperadamente pobres, preguiçosos e indolentes.

Terá sido em Paris que, talvez, me tenha cruzado um dia com este elegante profeta da contemplação, transportado dos cafés árabes do Cairo, onde a vida corria livremente, temperada com um pouco de haxixe. Claro que nos meus dias de Paris, Saint Germain já não era o que fora nos anos brasa de Cossery, embora a brasserie Lipp e todos os outros locais frequentados por Cossery ainda lá estivessem. Mas estava menos Cossery e, sobretudo, já não estavam os seus amigos, Camus, Genet, Louis Guillouxx, Mastroianni, Ferreri. Imaginei-o aí instalado com a sua corte, em frente dos azulejos do pai de Paul Fargue. Ou, no outro lado do boulevard, no Café de Flore. Ou sentado numa cadeira no Jardim do Luxembourg, observando a única coisa de que a sua língua viperina não poderia dizer mal, as árvores: «Eu não gosto do campo. Não posso dizer mal das árvores». 

Mas foi no Café de Flore, onde o procurei algumas vezes e por ironia nunca o encontrei que melhor o imaginei.  Nos anos oitenta, o Flore já tinha sido colonizado por uma fauna de turistas literatos nostálgicos que perscrutavam ansiosamente a mesa onde Sartre escreveu A náusea ou o canto onde Roland Barthes se refugiava a ler o Le Monde. Poucos procuravam a sombra de Cossery cuja existência ignoravam, e muito menos o seu estatuto de escritor deslocado, marcado pela heráldica do desapego e da indolência, e tão fora da gesticulação literária e mundana. Mas a mim, fascinava-me imaginar no meio da clientela extravagante alheia ao literário, a figura aristocrática de Cossery, contemplando a rua através da esplanada envidraçada do café, talvez meditando sobre o seu último livro que publicaria em 1999, As cores da infâmia, em que continuaria a denunciar implacavelmente «a  face ignóbil e grotesca dos poderosos da terra», o que levou Henry Miller a afirmar que a sua obra era «uma surpresa total. É o género de livros que precedem as revoluções e engendra a revolução, se é que as palavras possuem algum poder». Para mim que, recentemente, li quase de seguida alguns dos livros de Cossery [Mendigos e altivos, Mandriões do vale fértil, A violência e o escárnio, Uma conjura de saltimbancos, Os homens esquecidos de Deus, Uma ambição no deserto, As cores da infâmia, todos editados pela Antígona], as suas palavras sobre a gesta dos anti-heróis das ruas do Cairo, continuam a sinalizar as paragens do meu itinerário de leitura. Isto porque, tal como Ahmed Safra, o condutor de eléctricos de A casa da morte certa, que só se detinha nas paragens que lhe apetecia, também eu só me detenho em livros embebidos na tinta da vida e, por isso, capazes de agitar o pensamento.

20 de junho de 2007

A retórica do eclipse

Sou o Doutor Pasavento, assim se apresentou Enrique Vila-Matas, na Póvoa de Varzim/Correntes d´Escrita. Mas em qual Pasavento encarnou o escritor que ao longo do texto parece fundir-se em múltiplos sujeitos - Pasavento, Ingravallo, Pynchon - num processo narrativo em que o sujeito não é mais do que uma construção temporal e a identidade algo que o autor constrói e destrói permanentemente: havia tantos Pasaventos em palco que seria impossível localizar-me, perder-me-ia entre eles (pág. 273). Ou evocando, ainda, a construção heteronímica de Pessoa, também ele um escritor desaparecido de si próprio que reaparece, depois, multiplicado, nas suas máscaras. Trata-se de um processo narrativo que recorre a uma espécie de hipertextualidade circular em que a ocasionalidade de um encontro, por insignificante que seja, combina-se com o seguinte numa espécie de vasos comunicantes invisíveis, que interligam realidade e ficção que aqui não são mais entidades diferenciadas. De encontro em encontro, tal como Pessoa, também o meta-narrador-autor do Doutor Pasavento se desdobra em várias personalidades, vários lugares - Madrid, Sevilha, Nápoles e a fictícia Lokunowo -, para regressar sempre à enigmática rua Vaneau, em Paris, onde viveu Marx, e onde se cruza com outro escritor português, António Lobo Antunes, sem nunca, contudo, trocar a sua profissão de psiquiatra e vago escritor, mas inventando-lhes outras genealogias. Neste projecto de desaparecimento, enquanto o escritor ortónimo se desvanece, outros Pasaventos emergem  projectando as múltiplas personalidades de Vila-Matas (como ele próprio o confessaria em entrevista publicada recentemente no Notícias Magazine), sejam autobiográficas sejam ficcionais, reconstruídas, isto é, afectadas pelo seu labor literário. E por trágica ironia do destino, não viria, o próprio Vila-Matas, a estar quase a desaparecer por motivo de doença - o que levaria ao extremo a sua identificação enquanto autor com as suas personagens, vítimas do síndroma de Bartebly -, para renascer, diferente, noutro Vila-Matas herdeiro do Doutor Pasavento, como o próprio viria a confessar?


O personagem de Vila-Matas empreenderá uma viagem metaliterária de ocultação, hesitando constantemente entre o desejo de ser esquecido e a resistência a sê-lo. Se em Montaigne - que inventou o ensaio, esse género literário que, com o tempo, acabaria por se ligar à construção da subjectividade moderna -, convocado logo no início do livro, como que a querer afirmar outra dissolução - a do romance no ensaio -, o objectivo era o desejo de construção da sua identidade através do ensaio, pelo contrário, o que fascina em Pasavento é esse projecto inverso de desaparecimento do sujeito através da escrita, traduzido no acto de escrever a lápis como processo de apagamento progressivo da própria identidade: De repente, decidi que devia deixar-me de rodeios e desaparecer eu mesmo. Só que Pasavento experimenta uma contradição insanável ao afirmar que na história da desaparição do sujeito moderno, a paixão por desaparecer é ao mesmo tempo um desejo de afirmação do eu. Por isso, o escritor-psiquiatra debater-se-á no paradoxo insolúvel de estar e não estar sempre em cena. Donde vem essa tua paixão por desapareceres? É a pergunta repetida que institui o tema desta espécie de meta-romance-ensaio reinventado por Laurence Sterne a partir de Montaigne: Sterne fascinava-me, com esse romance que quase não parecia um romance mas sim um ensaio sobre a vida, um ensaio tecido com um fio ténue de narração, cheio de monólogos onde as recordações reais ocupavam muitas vezes o lugar dos acontecimentos fingidos, imaginados ou inventados.


Assim enuncia o autor, logo nas primeiras páginas do texto, o seu propósito moral, o desaparecimento, e o método literário a seguir, o meta- romance-ensaio. Paradoxalmente, vamos, contudo, percebendo que o discurso do apagamento do sujeito encerra, afinal, uma tentativa de afirmação do autor através da literatura, cuja essência é escapar a qualquer vontade de estabilização e de controlo. Neste exercício de montagem literária, portanto, em que se convoca a figura ficcional do eclipse do sujeito, levada ao extremo de reflectir, a partir de Maurice Blanchot, sobre o desaparecimento da própria literatura, ou sobre o grau zero do autor - que existiria apenas no universo da criação literária, isto é, sem biografia, nem reconhecimento -, o que Vila-Matas procura, afinal, é fugir, como se verá adiante, ao controlo institucional e mundano sobre si próprio enquanto autor. Ironicamente, a Doutor Pasavento seria atribuído o Prémio para o Melhor Romance publicado em Espanha em 2006 e o Prémio da Real Academia Espanhola, não escapando assim, o seu autor, a todas as mundanidades que acompanham esse reconhecimento.: Escrever para ser sobretudo fotografado, amargo destino (pág. 61). Logo, a ocultação como projecto impossível, porque, independentemente da vontade, a literatura convoca sempre a figura do autor,  sobretudo quando este utiliza a subjectividade ensaística que recusa a neutralidade aparente da terceira pessoa, como é o caso neste meta-romance-ensaio de contornos biográficos, o que, ainda, o torna mais paradoxal, face ao projecto de desaparecimento anunciado e enunciado desde as primeiras páginas e para o qual são chamados como referências literárias, sobretudo Robert Walser e W.G. Sebald, autores que remetem para uma espécie de poética da extinção, da consternação do escritor ao ver que tudo à sua volta se desumaniza ou desaparece e que inclusive a própria História se desvanece.


Esta afectação ficcional, mesmo que confundida com a realidade, evoca, então, uma outra figura pessoana, a do fingimento, o que nos conduz a outra pergunta: será que este eclipse vilamatiano não é mais do que um fingimento para que o autor possa fechar a sua trilogia metaliterária (O mal de Montano, Bartebly & Companhia e Doutor Pasavento) onde reflecte sobre os mecanismos da criação literária através de um escrita culta, lúdica e irónica, em que partilha com Borges essa busca do leitor inteligente e cúmplice para quem a literatura é algo que não se encerra na teoria dos géneros?


E porque ligar essa reflexão metaliterária à ocultação do sujeito no manicómio? O que atrai Pasavento ao manicómio de Herisau, a sua Patagónia pessoal? E a outros manicómios? Primeiro, na evocação do hospital Miguel Bombarda, em Lisboa, onde António Lobo Antunes escreve em formulários de prescrição médica; depois, no lar para loucos em Nápoles, onde Morante escreve microtextos; e, finalmente, em Herisau. Com uma frase de Robert Walser, internado no manicómio de Herisau, Pasavento constrói o microtexto mais curto da história da literatura: não estou aqui para escrever, mas para enlouquecer. É que este romance-ensaio é também uma contínua reflexão sobre a loucura como forma de desaparecimento, sobre a relação entre a loucura e a criação artística e, como afirmou Canetti, como fuga possível para os escritores cansados de habitar esse circo de vaidades e vanidades que é muitas vezes a mundanidade literária, confirmada por Pasavento ao afirmar que Robert Walser não estava louco, mas que simplesmente tinha decidido viver tranquilo no manicómio, imitando a mesma escolha dos supostamente loucos Holderlin, Nietzsche, Artaud que não o eram, mas sim excêntricos discursos literários que escolheram um modo de se comunicar pouco comum, mais lúcido provavelmente (pág. 181). O que é, então, o manicómio para Pasavento? Enquanto refúgio evoca a concepção de manicómio de Foucault como simulacro do mundo exterior e, ao mesmo tempo, do louco como autor consciente do seu próprio desaparecimento de um mundo irracional que tende a asfixiá-lo. Daí, o desejo de desaparecer, eclipsar-se para não ter que viver no meio das desesperantes intrigas do mundo literário. 


No final, fica um meta-romance-ensaio onde se respira a mesma ironia shandiana dos livros anteriores de Vila-Matas, agora utilizando um estilo mais sóbrio, menos impertinente, através do qual reflecte sobre a desconstrução do autor, concluindo a sua trilogia metaliterária, e ao mesmo tempo, nos convida a viajar, seja ao fim do mundo, a uma Patagónia imaginada, seja às regiões inferiores de Robert Walser, que escrevia a lápis para estar mais perto do desaparecimento, do eclipse (pág. 14), de Emmanuel Bove, que parecia estar sempre à espera que o esquecessem (pág. 339), de Thomas Pynchon, que se esconde em Nova Iorque (pág. 353), de Kafka, que queria era continuar a existir sem ser incomodado (pág. 271), de Salinger, o escritor que vive em paz, oculto (pág. 61), de W. G. Sebald, para quem o desaparecimento sempre existiu (pág. 40), de Joseph Roth, que narra a viagem de errática de um desaparecido (pág. 80), na sua própria viagem de ocultação enquanto autor.

18 de junho de 2007

Fascismo de entretenimento




«Há uma organização terrorista europeia, sedeada na Holanda e que actua a coberto do disfarce de produção de conteúdos televisivos. Chama-se Endemol, foi fundada por um holandês, comprada pela Telefonica espanhola e acaba de ser vendida ao muito recomendável senhor Berlusconi», denunciava há duas semanas, com a agudeza crítica que se lhe reconhece, Miguel Sousa Tavares, na sua crónica no Expresso . E fundamentava: «com um catálogo sempre renovável de programas televisivos todos inspirados nos vícios, nas fraquezas e nas misérias humanas, é difícil imaginar alguma organização ou ideologia que, por si só, tenha conseguido causar maiores danos à cultura, à educação e à formação cívica dos povos europeus do que esta sinistra Endemol».

A oportuna denuncia de MST incita-me a reflectir sobre o papel da televisão enquanto estratégia de manipulação do pensamento, perseguindo objectivos inconfessáveis de substituição da experiência do mundo por simulacros da realidade extraídos de uma imanência alienada e pervertida, em que é a próprio «estado do mundo como jogo permanente» que se confunde já com o modo como a televisão nos dá a ver o mundo. Ou «a vida como televisão», como escrevia Eduardo Lourenço no último JL. E se no princípio era a «principialidade das imagens» [Eduardo Prado Coelho] em movimento, hoje essa luz original apagou-se, arrastando o telespectador no torvelinho indiferenciado e indiferente das imagens pelas imagens, já sem ligação com as palavras, elas próprias transformadas em imagens de uma sociedade infinitamente anónima transportada dia e noite para o desaconchego das nossas casas.  Que diria Kafka sobre televisão, se sobre o cinema já dizia que aí nunca é o olhar que escolhe as imagens, mas que são elas quem escolhe o olhar?

Hoje, em televisão, pelo menos numa certa televisão que tem vindo a colonizar o espaço televisivo europeu e, claro está, e muito, também Portugal, tudo vale para aumentar as audiências, sobretudo se nesse vórtice de lixo televisivo se afundar qualquer hipótese de cultura, de educação, de ética. A programação televisiva lê na mesma cartilha do capitalismo pós-moderno, cujo dado principal já não é a Terra girar à volta do Sol, mas o dinheiro girar à volta da Terra, como afirma Peter Sloterdijk, um filósofo alemão de estirpe nietzchiana. E neste vórtice televisivo que tudo arrasta na procura do lucro, parece que com programas como os da Endemol é a própria televisão que enlouqueceu, não deixando lugar àquilo que ela poderia ser em termos de entretenimento inteligente, antes procurando a obscenidade do espectador. 

Longe vão os anos em que Karl Kraus proclamava que o «jornalismo come o pensamento». E, no entanto, essa visão aplicada aos media de hoje parece mais actual do que nunca. Tanto assim que a questão do funcionamento dos media tem vindo a ocupar um lugar central no empreendimento filosófico de Sloterdijk, comparando-os a uma versão contemporânea da arena romana e, logo, reponsáveis por aquilo a que ele chama de «fascismo de entretenimento». Os noticiários, quase todos idênticos, e logo sem atributos que os diferenciem, caíram na imanência do quotidiano filtrado pela máquina televisiva, do qual não conseguem nunca distanciar-se reflexivamente, antes preferindo promover a vulgaridade opinativa, o escândalo obsoleto, o ruído informativo em lugar da realidade autêntica, por exemplo a da miséria inamovível do mundo continuamente sublimada pelo seu tratamento «espectacular». 

De fora fica quase sempre a pedagogia informativa que devia ser a razão dos noticiários. E, sobretudo, o «sentido da possibilidade» aberta aos muitos mundos do mundo, prometida pela luz inicial, mas que, hoje, só talvez a literatura poderá ainda proclamar. E mesmo aqueles programas que se apresentam vestidos com uma roupagem de maior seriedade, mais não fazem do que celebrar um tempo cada vez mais cheio das mesmas «qualidades» [daí a actualidade desse extraordinário romance-ensaio de Robert Musil, O homem sem qualidades, que a Dom Quixote prometeu reeditar este ano] que há muito tempo Walter Benjamin exorcizou. 

Quanto ao entretenimento, exceptuando alguma nova serialidade televisiva, um filme ou outro fora de horas e intervalado por longos momentos de publicidade invasiva, somos arrastados num mesmo vórtice de telenovelas e de reality shows  que encenam a trivialidade bacoca de um quotidiano de indivíduos anónimos temporariamente promovidos ao estrelato de ficção. Ou pior ainda, promovem uma descida ao Maelstrom da indignidade com programas como os produzidos pela Endemol. A mais recente indignidade desta «Al-Qaeda televisiva» como lhe chama MST, é o novo programa em que doentes terminais fazem doacções de órgãos em directo a outros doentes que vão entre si disputar os fígados ou os rins de que precisam para sobreviver.

Dir-se-á que sempre podemos escolher entre o que nos é oferecido. Talvez. E muitos de nós escolhem, quanto mais não seja apagando o televisor. Mas, e a maioria que é incitada (ou excitada) pela máquina televisiva, não será mais escolhida do que escolhedora? Já em 1928, Heinrich Mann escrevia que «é possível habituar todas as grandes massas ao kitsch. E depois é fácil afirmar que elas não entendem nem querem mais nada». Dizer que as massas apenas respondem às luzes incandescentes do divertimento bacoco e daí baixar cada vez mais os padrões de qualidade na programação televisiva é um sofisma perverso. Por isso, o dever de regulação, no respeito pela inteligência, contra a devassa e a iniquidade televisivas, e pela restauração da aura que esmorece perante o influxo de luz incandescente do ecrã caseiro.

13 de junho de 2007

Bartebly ou o eclipse da palavra


«Escrever poesia depois de Auchswitz é bárbaro», afirmou Adorno. E Paul Celan, que viveu em carne viva a experiência do extermínio, repetiu até à própria laceração de si mesmo, até ao emudecimento total, a mesma promessa angustiante: «Se viesse, / se viesse um homem / se viesse um homem ao mundo, hoje, com / a barba de luz dos / patriarcas: só poderia, / se falasse deste tempo, só / poderia balbuciar, balbuciar / sempre sempre / só só». Caídos neste torvelinho de terrível impotência, num tempo de silêncio e destruição, a que Hanna Arendt chamou a «banalidade do mal», escritores houve que sucumbiram à derrocada da razão e da linguagem, calando a sua fala, negando-se a escrever, abraçando o silêncio depois de ter proferido palavras de um modo que anunciava a promessa de novas palavras, como um rio que de repente tivesse secado deixando apenas no leito pedregoso a nostalgia do nunca mais dito. Como se escrever, acrescentar mais alguma semântica à desordem do mundo, mais não fizesse do que aumentar a catástrofe.

Hoffmansthal abriu o vertiginoso século XX mostrando o seu próprio desconcerto face à impossibilidade da comunicação através da escrita, prometendo na sua Carta de Lord Chandos, em 1902, nunca mais escrever. Kafka alude, depois, à impossibilidade da literatura, sobretudo nos seus Diários. Borges cita o poeta argentino Enrique Banchs, de quem diz: «Na cidade de Buenos Aires, em 1911, Enrique Banchs publica La urna, o melhor dos seus livros, e um dos melhores da literatura argentina: depois, misteriosamente, emudece. Há vinte e cinco anos que emudeceu». Seriam, afinal, cinquenta e sete anos. E essa mesma experiência de impotência e renúncia, desencanto e ocultação é sucessivamente reiterada ao longo do século por escritores com medo de existir diante da anormalidade da escrita: Robert Walser, Robert Musil, Bruno Schulz, Juan Rulfo, J. D. Salinger, Henri Roth... Tal como os seus antepassados Hölderlin, Joseph Joubert, Rimbaud. Rimbaud cuja insensata santidade o levou a pronunciar o mais belo manifesto de vida: «sobretudo fumar, beber licores fortes como o metal fundido» e, com uma singular precocidade, a escrever toda a sua obra até aos dezanove anos para depois partir para a aventura abissínia.

A interrupção da escrita, o silêncio, a renúncia da palavra de «um sector importante da literatura ocidental moderna», eis o que rastreia Enrique Vila-Matas em Bartleby & Companhia [Assírio & Alvim, 2001], uma espécie de catálogo de instantes fulgurantes dessa «pulsão negativa ou atracção pelo nada que faz com que certos criadores [...] renunciem à escrita [...] e fiquem, um dia, literalmente paralizados para sempre». Tendo como base Bartleby, o escriturário - o personagem do conto de Herman Melville - que, quando alguém pretendia encarregá-lo de alguma tarefa, respondia invariavelmente «Preferia não o fazer» - espécie formulação não exaltante na negatividade moderna -, Vila-Matas oferece-nos um caderno de notas de pé de página, «notas sem texto», como ele lhe chama, sobre o síndroma de Bartebly, esse «mal endémico das letras contemporâneas», uma espécie de fresco onde se respira um humor shandiano cuja principal virtude é a de avivar-nos a memória e o desejo de revisitar as paisagens literárias que vai povoando e seguir no rasto de Rimbaud, Walser, Roth e tantos outros escritores que formam a nossa biblioteca obscura.

Entretanto, se alguém quiser adentrar-se mais no significado desta renúncia bartlebyana deverá visitar os ensaios de Giorgio Agamben [Bartebly o della contigenza, Macerata, 1993] ou Gilles Deleuse ["Bartleby ou la formule", in Critique et Clinique, Les Éditions de Minuit, Paris, 1993].

11 de junho de 2007

A rasura dos jornais


Escrevia Eduardo Prado Coelho há alguns dias na sua crónica diária no Público que o que se passa neste momento na cultura portuguesa «não pode deixar de suscitar alguma angústia». Ou, procurando um registo mais neutro, «alguma perplexidade». Entre outros sinais da precariedade cultural actual, como o acentuado desinvestimento do Ministério da Cultura nas suas instituições (veja-se o que se passa com o Museu de Arte Antiga), denunciava, depois, o facto de o espaço dedicado aos problemas culturais ter vindo a restringir-se não só na comunicação social como nas várias instâncias em que a cultura costumava ser tratada, como mostrou a transfiguração do suplemento literário «Mil Folhas» num quase anódino «Ípsilon» (Público) e, mais grave ainda, na supressão do suplemento «6ª» (DN) sem qualquer justificação aos leitores. O mesmo se passa na televisão em geral, onde as telenovelas (as inanarráveis Floribella ou Morangos com Açucar) dominam a programação e as questões culturais se encontram completamente arredadas das opções dos responsáveis pela programação (regressará, ainda, o programa de José Francisco Viegas Escrita em dia, suspenso há meses?).

Contudo, a pertinência das observações de EPC  sugere-me um comentário, agora, num outro sentido. Daí, talvez, também, a perplexidade de JPC. É que, hoje, a imagem das cidades ou mesmo de certas regiões do interior é cada vez mais marcada quer por estratégias de dotação intencional em equipamentos e infra-estruturas culturais quer por acontecimentos culturais (programação de regular de espectáculos de artes cénicas, de música, festivais, exposições, ciclos, mostras, etc), demonstrando a importância que as autarquias locais atribuem à cultura como estratégia de afirmação de uma imagem moderna e competitiva dos territórios. Ilustrações não faltam para corroborar esta convicção: por exemplo, o alargamento da rede de bibliotecas municipais, a criação de novos museus de território ou os novos teatros e centros culturais municipais que estão a transformar radicalmente a oferta cultural fora dos grandes centros, subtraindo as cidades que têm vindo a construir esses equipamentos à sua condição cultural periférica, constituindo-se como pólos de uma rede territorial, se bem que ainda informal, de criação e difusão cultural. Há dias referia-me aqui ao espectáculo de Ute Lemper a que assisti no Teatro Municipal de Faro, como exemplo das novas condições de possibilidade entretanto criadas fora de Lisboa e Porto. Poder-se-ia, ainda, falar do Centro Cultural de Vila Flor, em Guimarães ou do Teatro de Vila Real ou da Guarda ou de Aveiro, entre outros, para se aferir como algumas cidades portuguesas perseguem a modernidade cultural; em Portimão, encontram-se em construção um novo centro cultural polivalente e um museu, correspondendo a um investimento da autarquia de mais de vinte milhões de euros.

Ora, num momento em que a nova lei das finanças locais cria dificuldades acrescidas ao funcionamento dos novos equipamentos culturais, e ao mesmo tempo em que a comunicação social, por um lado, e o Estado, por outro, fazem passar a ideia de despesismo das autarquias - o que é verdade em muitos casos - importa registar que é nas periferias, e graças a alguma governação local, que vai acontecendo o essencial da cultura portuguesa, pelo menos aquilo que é capaz de produzir efeitos sociais relevantes, como seja a criação de novos públicos para a cultura e melhor participação cívica, para além de efeitos económicos por arrastamento devido à projecção exterior de uma imagem mais qualificada e moderna das cidades.

Mas tudo isto não passa nos jornais nem nas televisões que ignoram quase tudo o que acontece fora dos dois grandes centros a não ser que seja mais um caso de alegada corrupção ou um acontecimento trágico. Em Julho, abrirá em Portimão mais uma exposição World Press Photo e só depois no CCB, em Lisboa, mas o que será relatado nos media será o acontecimento da capital. Mas isto não é o mais grave. Há dias, o DN assumia sem qualquer constrangimento ético que o que está agora em causa é que os jornais vendam, até porque só assim poderão garantir a sua independência face às pressões políticas. Por isso, o que lhes interessa são as informações, e sobretudo as informações que as pessoas querem. O resto, a cultura, o pensamento, são coisas que só interessam a uma minoria de iniciados. E, segundo a nova atitude dos media, o que as pessoas querem é algo que se confunde com a pressa dos dias, porque no dia seguinte haverá mais do mesmo ou porque tudo é efémero e é preciso encontrar um novo assunto que faça vender mais amanhã. Ora a cultura e o pensamento são lentos por essência, por isso,  há que bani-los dos jornais, da televisão, onde o que conta é apenas a imanência do quotidiano, mesmo que essa imanência seja manipulada como se sabe, em nome do aumento das vendas, das audiências. «O jornalismo come o pensamento», disse há muito tempo Karl Kraus. Nunca esta ideia foi mais actual do que hoje. E o Estado ao desinvestir na cultura come o quê? Talvez a felicidade que se pode encontrar num palco, num museu, numa exposição. Resta, por enquanto, a responsabilidade cultural de algumas autarquias para que a angústia e a perplexidade não nos devorem.

3 de junho de 2007

Como tu escreves Lídia, isso é a ética

Há dias tive o privilégio de apresentar, em Portimão, o último romance de Lídia Jorge. Aqui deixo o texto que escrevi e li nessa ocasião.

Na apresentação de Combateremos a sombra, na Casa Fernando Pessoa, Lídia Jorge começou por evocar Lilith, esse filme perturbante, esquecido, de Robert Rossen.  Porquê este filme? Talvez porque, também em Lilith, as personagens interpretadas por Warren Beatty e Jean Seberg procurem viver contra o seu tempo. Talvez porque, também aí, os territórios do onírico nos sejam abertos por um «decrifrador de histórias», um enfermeiro psiquiátrico. Ou talvez, sobretudo, porque também Rossen era um homem de causas. Alguém que tomava posição. Como Lídia Jorge. E este romance singular, sobre um tempo preciso, a passagem do milénio, e sobre um espaço delimitado, o Portugal que se arrasta em direcção ao tempo seguinte, é também um romance de causas que vem actualizar o próprio debate em torno do posicionamento da literatura. Um romance com um fundo ético que dá voz àquilo que muitos calam. Lídia Jorge ousa abrir a cortina para mostrar o que se esconde «na sombra» – o que está a paralisar o país. E o que vemos é um país escondido. E um país com medo. Com medo de existir, como num outro registo, ensaístico, já havia descortinado José Gil. «Um país fantasmal» enredado numa teia pantanosa de mesquinhez, de mentira, de toda a espécie de tráficos que ninguém quer ver. A propósito do perigo que correm aqueles que neste livro tomam posição, talvez, Foucault, contrariando o optimismo de Rorty, dissesse: «Cuidado, tudo é perigoso, mas não ao igualmente nem ao mesmo tempo». Um livro político, então? Nem tanto. Lídia Jorge prefere-o como «uma ficção com um assomo político», obedecendo a um impulso de melancolia, mas também de raiva contra este «processo de revisão cíclica de marcar passo». A literatura como ética da responsabilidade e da convicção, que vale como juízo, sobretudo, se tiver imaginação suficiente para responder a essa ética.  E este livro tem essa imaginação. Lídia Jorge acredita na possibilidade da mudança, por isso, assume-se como testemunha, com vontade de ser cronista do tempo que passa, recolhendo a matéria impura de que se veste a sua escrita. «Eu prefiro que a escrita seja um vestido», disse. Um vestido que veste a realidade tanto «com o que as suas páginas contém - isto é, as suas metáforas, as figuras, as vozes, os diálogos - como nas páginas que faltam, (…) o espaço em branco que se segue à última página, que continuamos a ler cem anos depois». E também com o que está nas linhas invisíveis que atravessam essas páginas. Lídia Jorge é uma escritora e uma mulher de acção. Neste romance age através do herói romanesco, o psicanalista Osvaldo Campos, colocando-se atrás do seu ombro, acompanhando-o num longo travelling, pedindo emprestada a voz que ele, por razões deontológicas, tem de silenciar. «Apaixonei-me por este funâmbulo, este trapezista sem fato e sem rede. Osvaldo Campos é um homem justo (…), o meu Dom Quixote de estimação, com quem ando há muito tempo a conviver». E Lídia, na vida age intervindo civicamente, empenhando-se em causas, perseguindo novas linhas de fuga para atravessar a sombra. Dando-se como aparecida. Por isso, também, este livro, agora. Um olhar lúcido sobre a consternação do mundo que aí está, «um mundo tão cheio de falsas representações, tão fútil, onde tudo se desumaniza e que inclusive a própria História se desvanece», como escreveu esse outro grande cronista do nosso tempo, o escritor alemão, W. G.. Sebald, em Os Anéis de Saturno. É, então, também, um livro contra o desvanecimento da História, sobretudo da História que vem e que é preciso começar a construir no presente. Não se pense que – embora este seja livro com uma intencionalidade que não se fica pela página lida, mas antes nos interpela e desafia a acompanhar a autora nessa empresa de combater a sombra, enquanto, nós também, testemunhas do que no romance nos é contado, e sobretudo como testemunhas que a autora pretende actuantes no mundo «tão falso» que aí está - o romance adopta o tom militante. Não, em Combateremos a sombra não se vislumbra qualquer pedagogia política voluntarista da literatura. Não, este livro que recusa a escrita sobre o nada e o ensimesmamento literário, este livro que se situa naquela zona em que o literário confina com o referencial, vai por outro caminho «recortando o espaço do sensível e de redistribuição das relações entre a actividade e a passividade, o singular e o comum, a aparência e a realidade que são os espaços-tempos da página lida» - como dizia há dias o filósofo francês Jacques Rancière, numa conferência em Serralves, sobre as relações entre a política e a literatura, suscitando, por aí sim, uma nova forma de subjectivação política capaz de dar trama à vida de todos os dias. Esse é que verdadeiramente o tal assomo político de que fala Lídia Jorge e que nos compete decifrar.

Decifremos, então, o romance, procurando, contudo, não chamar para aqui quaisquer chaves ditas hermenêuticas. O caminho que aqui proponho é tão só o da minha da recepção particular. Naturalmente, recepção literária. E é com Lídia que caminho. Roubo-lhe, então, a voz. Primeiro, a que desvenda os arredores do livro. Como se escreve um romance? Como escreveu Lídia este romance ao longo de três anos? Mais um, o tempo que demorou o complexo namoro com Osvaldo Campos, a personagem que lhe vai entrando pela casa, sem que, primeiro, a escritora o deseje, mas que, depois, fica e não mais sai da casa do romance. «Escrever é fácil, difícil é encontrar um personagem com inteireza», explica Lídia. Um personagem, na circunstância, capaz de atravessar a sombra. Ao longo de um ano Osvaldo foi povoando o seu sono e a sua vigília. «Os sonhos são a literatura do sono», disse-lhe Carlos Albino durante esses dias. Agora o romance já podia ser posto em andamento. Aos poucos, outras personagens foram entrando pela casa dentro. E a trama foi-se enredando. E depois, desenredando à volta da verdadeira ficção que desliza, subterrânea, sob a narrativa que corre à superfície, como um thriller que agarra o leitor e não o solta mais. E ambas as histórias, a de superfície com os seus elementos narrativos, avanços e recuos, desvios, gerida por uma narradora/autora que sabe como prender o leitor, e a subterrânea, que a partir das revelações oníricas das personagens desvenda o que quer permanecer na obscuridade, giram à volta desse psicanalista atípico - que tem uma agenda onde aponta a lápis as marcações dos clientes pobres que não pagam a consulta e a tinta os nomes dos que podem pagar - que é o Prof. Osvaldo Campos, alguém – diz-nos a autora – «habituado a fazer movimentos de translação em torno dos problemas» (p.17) – e de um surpreendente cortejo de personagens, todas seus pacientes. São eles e elas que, como se em Portugal só se pudesse falar de certas coisas, de algumas coisas apenas, num registo secreto, confidencial - como se o consultório do psicanalista fosse o confessionário destes tempos pós-modernos -, vão tecendo a teia a «sombra», insinuando aquilo que decisivamente condiciona as suas vidas romanescas – e, reflecte a nossa vida mundana: personagens como o jornalista Elísio Passos, o general Ortiz, o jardineiro Lázaro Catembe, todos pacientes de Osvaldo Campos, mas também Ana Fausta, a leal secretária, e Rossiana, o seu novo amor.

Mas a personagem central, que Osvaldo Campos chama a sua «paciente magnífica», é Maria London, uma mulher que parece sonhar a realidade tão inconscientemente como realiza, concretiza certos sonhos. Ela era quem lhe permitia descer mais fundo nos fundamentos da sua atitude médica, e por isso esperava-a como uma dádiva. A fantasia que ela construía em torno do seu vazio narcísico ganhava contornos dramáticos; gostava dela: um temperamento sensível, um discurso volátil, singular, uma enorme plasticidade comportamental que ele procurava clinicamente decifrar, embora nem sempre com a sua concordância: «Se o senhor pensa que eu vou continuar a entregar-me a si para coscuvilhar-me a memória, pode estar descansado. Eu não estou disposta a fazer esse streap-tease descabelado de remexer cenas que enxovalhem a imagem das pessoas que me criaram. Não pense que obedeço ao esquema que tem preparado». Por isso, por vezes, aquele «romance contínuo que ela enfeitava de factos imaginados, dispostos em forma estelar, o modo como encobria o que procurava esconder, para que fosse encontrado, esse revestimento luxuriante cruzado de fantasia e verdade, esgotava-o» (p. 100). Mas a narrativa que Maria London vai revelando no divã em que se deita, é muito mais do que a narrativa pessoal de uma mulher vergada sob o peso da separação dos pais, desencontrada, pois embora interiormente perdida, com um misto de renuncia e revolta, ela escolhe a via que pode levá-la a escapar da sombra em que ela própria se encontra afundada – a via «daqueles que ainda conseguem escolher um destino» (p.159) - e que se derrama sobre o porto de Lisboa onde chegam e partem navios: apenas um nó num fio imenso, entre outros nós que não deixam ver os fios que os ligam, de tráfico de droga e de pessoas, a linha do contrabando de influências, uma conspiração de silêncio atravessada por políticos, jornalistas e polícias numa cumplicidade que se derrama sobre o país como um manto negro de sombra e silêncio. Uma teia onde, segundo a autora, «todos estão reféns, mas ligados. Um círculo sem ponta solta por onde se possa romper a cadeia. [Mas] rompê-la, acrescenta, é um dos desafios mais importantes» (JL, 14/03/07).

E há, também, Rossiana que a dada altura, no romance, desabafa: «Não imagina o tamanho da avaria da minha vida». Não, Rossana não é paciente de Osvaldo. É fotógrafa amadora e é ela quem transporta a utopia libertadora do romance. Aquela que poderá reacender o fogo  que Osvaldo quis atear sem sucesso. Aquela que voa e faz voar. Um dia num bairro miserável onde fazia trabalho social, com recurso à fotografia, disse: «se o mundo é a cores, a fantasia pode ser a preto e branco (…) podemos chamar àquilo que vamos fazer, à forma e aos objectos e ângulos que vamos escolher tudo o que voa». Por isso escapará à teia. A uma teia cujos sinais, no princípio do romance, Osvaldo não soube reconhecer. Até porque no livro, e na vida, o problema dos sinais é que não são visíveis, embora estejam aí, à vista. Desde logo naquele texto premonitório Quanto pesa uma alma que lhe foi encomendado e que, depois, se recusaria a publicar. Sim, porque a alma tem peso, o peso das palavras que soubermos dizer na procura da efectividade da linguagem sobre o agir. Ou o sinal trazido pelo alucinado jornalista Elísio Passos que o avisara de que «cada homem era um barco em terra» e, por isso, sem redenção. Também a chuva que caiu naqueles dias, adensando a sombra, e levando na corrente que se formava nos rios um autocarro cheio de excursionistas era um sinal.  Mais do que o desmoronar de uma ponte, são as próprias fundações de um país que roçam o abismo correndo o risco de, também ele se afundar nas águas escuras dos dias que correm. O ruir da ponte como metáfora de um país com medo de existir, anestesiado por sedativos e calmantes que escondem a verdadeira dimensão da tragédia colectiva de um povo que tarda em agir. «Os autocarros puxados pelas gruas do fundo dos lodos ficavam a balouçar na imaginação ao longo dos dias revoltos. (…) Bastava amanhecer um dia mais claro e já tudo passava». Psicanálise de «um país à procura de uma pele nova». Por isso, é preciso agir, como escreve na sua agenda a personagem central do romance:  «a mentira é parente da morte, a análise é inimiga dos mitos, agir é preciso». Como? Encontrando passagens, fendas, no muro de silêncio que se adensa. Dir-se-á, contudo, no final do romance, que o trabalho de Osvaldo Campos ficou incompleto, que a catástrofe das coisas continuarem como antes ocorreu com o seu desaparecimento. Talvez não, porque este é mais um livro que vem assaltar as nossas convicções e não confortá-las, convidando-nos a adentrarmo-nos na sombra.

É isso que Lídia Lídia faz com este romance, e com todos os que o antecederam, procurando encontrar cesuras na imanência dos dias que passam, cinzentos. Talvez este seja o seu romance mais contemporâneo, mas aqui como nos outros livros é visível a mesma inquietação de sempre com que nos vem interpelando desde o seu romance inaugural O Dia dos Prodígios, com um inalterado talento literário e um sentido de depuração e rigor semântico para que nada seja nem de menos nem de mais, porque toda a ética da literatura reside no modo como ela se dá a ler. Ou nas palavras de Giorgio Agamben, «como tu falas, isso é a ética». Enfim, uma literatura, como dizia Walter Benjamin, capaz de «trazer à luz de maneira mais límpida a sua dignidade e a sua essência, mostrando-se, [assim], eficaz». E logo, e apenas por isso, também política.