11 de dezembro de 2009

A nova serialidade televisiva


A pergunta - «quem matou Laura Palmer?» - da série de culto de David Lynch que inspirou a maioria dos actuais criadores de séries de televisão é, hoje, reescrita para «o que se passa naquela ilha? onde sobrevivem os náufragos de Perdidos, o novo ícone da pop culture que milhões de jovens vêem, compram, pirateiam, discutem em todo o mundo. Uma espécie de «suspension of disbelief», suspensão do real, eis o que nos acontece, às vezes, quando durante horas a fio nos encontramos perdidos numa ilha deserta; ou quando durante 24 horas somos parceiros de Jack Bauer em luta contra o terrorismo (ainda que muitas vezes os métodos utilizados escondam interesses propagandísticos inconfessáveis e repudiáveis); ou quando amamos e odiamos Gregory House, o médico mais politicamente incorrecto da televisão; ou quando estremecemos de emoção quase bergmaniana diante de mais um episódio de Os Sopranos; ou quando nos confrontamos com as neuroses americanas em Sete Palmos de Terra; ou quando descobrimos os mais podres e ardilosos segredos da vida dos subúrbios de uma cidade americana em Donas de Casa Desesperadas; ou quando penetramos no mundo virtual que nos evoca Matrix em Heroes; ou quando apanhamos um crimionoso em CSI; ou quando percorremos, na hiper-realista série A Escuta, as ruas de Baltimore infestadas de traficantes e de polícias, cuja diferença devemos procurar muito para além distintivo; ou quando nos confrontamos com as frenéticas estratégias de bastidores de assessores, gestores de campanha e especialistas em política, em Os Homens do Presidente; ou quando convivemos com Nancy Botwin, a mãe solteira que resolve vender maconha após a morte do seu marido, em Weeds, a mais subversiva série televisiva jamais produzida; ou, ainda, quando, regressamos à América dos anos 60, através da imperdível Mad Men.

Trata-se de histórias com sequências narrativas desdobradas até ao limite, percorridas por personagens onde projectamos um certo inconsciente, novas cosmogonias de um mundo ficcional que julgávamos irremediavelmente perdido numa televisão afundada em telenovelas e na vulgaridade de um quotidiano maculado transferido para o ecrã. Será esta a resposta contra a alienação dos públicos, contra os reality shows, contra a encenação bacoca de episódios triviais do quotidiano de indivíduos anónimos temporariamente promovidos ao estrelato de ficção?

Na década que agora termina temos vindo a assistir à emergência de um novo conceito de serialidade televisiva com uma estrutura narrativa idêntica às dos romances do século XIX que também eram publicados em fascículos semanais antes de sair o livro completo, e que, hoje, são oferecidos ao nosso deleite numa caixa de DVDs. Estará o futuro a trazer do passado aquilo que tem potencial para criar audiências, mas sem iludir a realidade? Isto é, a televisão como entretenimento inteligente? O paradigma de Perdidos não será o mesmo da Ilha do Tesouro, de Stevenson, agora acrescido da inquietação moderna da ausência do herói? E os múltiplos enredos e intrigas secundárias, os infindáveis elencos, a construção das personagens não era algo que até agora estava apenas reservado ao cinema e à literatura? É verdade que antes já o DVD tinha revolucionado a nossa forma de ver cinema, transferindo os clássicos da tela ampla para a televisão. Agora são as séries com as suas possibilidades de horas infinitas, com desvios, retrocessos e avanços narrativos que criam a ilusão da suspensão da realidade, e não o seu simulacro. Talvez se esteja a assistir, então, à emergência de uma nova forma de literatura audiovisual de massas com capacidade de propor algo diferente da ilusão trivial da realidade, mas antes, talvez, a sua suspensão ficcional, pelo menos enquanto durar o episódio da série ou a caixa de DVD que visionamos.

7 de dezembro de 2009

Não falhar a ocasião de Copenhaga


«Mas quanto mais me aproximava das ruínas, mais se afastava a imagem de uma secreta ilha dos mortos e mais me julgava no meio dos vestígios da nossa própria civilização aniquilada por uma catástrofe futura», escreveu W. G. Sebald em Os Anéis de Saturno [Teorema, 2006], descrente da capacidade da razão para dominar a natureza enlouquecida pelos homens.

Há nestas palavras de Sebald uma espécie de premonição trágica, apocalíptica, relativamente ao devir do mundo, caso não sejam tomadas medidas que reconduzam o rio turvo da destruição ambiental às suas antigas margens. Como abrandar, então, a imensa fornalha vertical cheia de brasas que ameaça transformar a paisagem do mundo num campo de sedimentos intransponíveis, rios pedregosos, árvores calcinadas, despojos de máquinas destruídas, espirais fantasmagóricas de poeira, cidades costeiras alagadas, almas à deriva sob um céu acinzentado?

Este tom apocalíptico encontramo-lo, hoje, não apenas na literatura, mas no discurso de divulgação científica sobre o aquecimento global, como se a realidade tivesse já ultrapassado a ficção. Em A nossa escolha - Um plano para resolver a crise climática (Esfera do Caos, 2009) Al Gore dramatiza ao extremo a situação, afirmando que temos de «evitar a catástrofe inimaginável que se abaterá sobre o planeta se não começarmos a fazer mudanças drásticas rapidamente». E profetiza que «o futuro da civilização será determinado para sempre por aquilo que fizermos agora». Não sei se haverá aqui uma espécie lucidez sebaldiana sobre a situação-limite para onde avançamos ou se esta dramatização discursiva sobre um mundo à beira da catástrofe - a que o filósofo alemão Karl Löwith chamou de «modo de pensar por catástrofes» - não terá uma raiz contraditoriamente conservadora, e cíclica, cujo pessimismo mais do que provocar a vontade colectiva de uma alternativa ambiental sustentável, antes nos deixa amarrados perante a verdadeira catástrofe que pode ser a das «coisas continuarem como antes» [Walter Benjamin, Passagens, frag. N9a, 1].

A questão, hoje, será a de saber se o discurso apocalíptico sobre as alterações climáticas - descontando a suicidária corrente negacionista sobre a gravidade do aquecimento climático - não corresponderá ao mal moderno que Ulrich, a personagem criada por Robert Musil em O homem sem qualidades, compreendeu com dramática lucidez: o mal de, apesar do estrondosos avanços da técnica, ou por causa dela, sermos agora incapazes de controlar o «sistema» que a integra, através da ética, por exemplo, procurando a resposta contra o absolutismo da realidade.

O que se pede, então, à Cimeira de Copenhaga que, hoje, começou, é uma vontade colectiva de não falhar a ocasião das coisas não continuarem como antes, opondo à tese conservadora de Heidegger de que «só um Deus nos pode salvar», o verso de Hölderlin que diz que «onde está o perigo está o que salva».

6 de dezembro de 2009

Não me situo


Seguramente, se fosse vivo, voltaria a pronunciar a mesma frase que pintara num muro decrépito da capital guatemalteca, num dia chuvoso de 1944, momentos antes de atravessar o umbral da embaixada mexicana onde obteria asilo político: «Não me situo» [em castelhano, ubico, trocadilho com o nome do antigo ditador guatemalteco Jorge Ubico]. Este, talvez, também, o micro-conto mais lendário de Augusto Monterroso (1921-2003), escritor de veia cervantina e surrealista que nasceu em Tegucigalpa, nas Honduras, viveu na Guatemala e morreria exilado no México, onde escreveria a sua obra vagarosa. Antes, porém, de ter escrito, sem pressas, essa obra, publicaria Obras completas (y otros cuentos), o seu primeiro livro que, para cúmulo, começava pelo fim, já que Obras completas era o nome do último conto, que não das obras completas do autor que, como uma ovelha negra, renegaria ao rebanho do realismo mágico latino-americano, tal como Rulfo ou Borges.

Que pintaria Monterroso, por estes dias, num qualquer muro decrépito da capital hondurenha, se obrigado a escolher entre o resultado das ambíguas eleições de domingo passado que vão dividindo a comunidade de países ibero-americanos e a deriva populista - na senda de Chávez - do deposto, e exilado, presidente Manuel Zelaya, que reapareceu "materializado" na Embaixada do Brasil, em Tugucigalpa, graças a um conluio logístico-diplomático entre Chávez e Lula? Seguramente: «não me situo».