31 de julho de 2009

Uma cena vienense


«Como todas as cidades, [Viena] era feita de irregularidade, mudança, precipitações, intermitências, choques de coisas e interesses, tudo intervalado de silêncios abissais, de caminhos abertos e territórios por abrir, de uma grande pulsação rítmica e da eterna dissonância, da crónica deslocação mútua desses ritmos. No seu conjunto, era como uma bolha em ebulição num cadinho feito da substância duradoura de casas, leis, regulamentos e tradições históricas». Tudo parecia ali, ainda, reger-se pela calculabilidade, pela exactidão e pela extensividade da vida metropolitana que exclui os impulsos humanos e instintivos que, a existirem, determinariam outras formas de vida. Contudo, «momentos antes já qualquer coisa tinha descarrilado, com um movimento lateral brusco», vindo perturbar aquele deslizar ostensivo da chusma humana, aparentemente composta por gente metropolitana com qualidades, que ia subindo uma avenida larga e animada, desenhando a um ritmo regular fluxos apressados por entre outros mais tranquilos. Um camião despistado acabara de atropelar um homem que jazia no chão sob os olhares curiosos dos transeuntes não sem provocar um aperto no estômago em quem por ali ia ficando. «Estes camiões pesados que circulam no nosso país têm uma distância de travagem demasiado longa», alguém comentou, integrando, assim, para alívio de todos, «aquele terrível acidente numa qualquer ordem, transformando-o num problema técnico». Entretanto, já se ouvia o silvo estridente de uma ambulância que não tardaria em chegar e, para satisfação dos presentes, recolher no seu interior asséptico o homem sinistrado. «Admiráveis estas instituições sociais!». Posto isto, «as pessoas foram-se afastando quase com a impressão, justificada, de que tinham presenciado um acontecimento em que tudo fora legal e regulamentar» e que, uma vez regressada a ordem aparente das coisas, poderiam, de novo, mergulhar nos simulacros de sentido das suas vidas em perda vertiginosa de sentido.

Este o primeiro capítulo, aqui resumido, de O homem sem qualidades (Dom Quixote), em que Musil com a sua ironia fria e metódica nos introduz numa Viena neo-decadente, passeando-se, ainda, num «belo dia de Agosto de 1913» sob um céu de benignas ilusões mas que, em breve, se cobrirá com o manto negro da Primeira Guerra. Uma cidade já aprisionada pela essência da modernidade, marcada pelo cepticismo e pela indiferença social, onde cada um reage aos estímulos metropolitanos desenvolvendo defesas protectoras que os fazem atravessar impunemente as situações mais dramáticas sem nelas derraparem, mas onde tudo, parece, começou já a descarrilar sem que os homens com qualidades aglomerados em torno daquele acidente ou contemplativos nos cafés da moda – como o Herenhof, o Central, o Museum ou o Griensteidl – onde, contraditoriamente, floresce a intelectualidade vienense ou fetichistas nos gabinetes imperiais se tenham apercebido. Talvez por não terem lido a peça aparentemente escatológica de Karl Kraus Os últimos dias da humanidade ignorem ser já aquele um tempo terminal que os vienenses vão vivendo, desconfiados e cépticos mas sem nunca perder o estilo, numa espécie de «apocalipse alegre» segundo a fórmula encontrada por Broch para descrever a forma particular da experiência nihilista austríaca.

Eis a Viena cacaniana cujo nihilismo tanto afectará Musil como a sua obra, levando-o a empreender a tarefa expedicionária de afrontar a vertigem do vazio da era moderna, sem nele se despenhar, nem que para isso tivesse de prescindir da sua biografia, isto é, desprender-se de todas as qualidades e atributos, abandonar a carreira de matemático e toda a pretensão à genealidade, ser estrangeiro – no sentido simmeliano – em todos os lugares, abrir-se à contingência de uma obra escrita num tempo em que «tudo [deixou] de ser narrável» e, por isso, vir a revelar-se não apenas inacabada, mas também inacabável – como escreveu Blanchot -, aberta, portanto, a todas as possibilidades. É que, como se afirma no livro, numa frase que é ela própria um programa de acção política - nunca perseguida, no entanto, por Musil -, «é a realidade que desperta a possibilidade, e nada seria mais errado do que negar isso».

29 de julho de 2009

Paradoxos terminais


A propósito de O homem sem qualidades diz J. M. Coetzee, num ensaio sobre Musil, tratar-se de «um livro ultrapassado pela própria História enquanto estava a ser escrito». E que, por isso, seria impossível lê-lo da mesma forma depois da ascensão do nazismo. Não interpreto assim. Entendo, pelo contrário, que a corrente da banalidade do mal que haveria de desaguar, depois, na tumultuosa maré negra do nazismo já se encontrava ali pressentida, conferindo ao romance um significado paradigmático que traduz a visão de uma psicopatologia da modernidade espelhada, desde logo, no episódio do assassino de mulheres Moosbrugger a quem «talvez lhe faltasse apenas [...] a educação e a oportunidade para fazer dele qualquer outra coisa, um anjo exterminador de massas», mas em quem Musil percebe a inspiração para o mal: «se a humanidade, como um todo, pudesse ter sonhos, esse sonho seria Moosbrugger». O romance vai, assim, na linha da percepção anteriormente expressa por Karl Kraus no drama Os últimos dias da humanidade (Antígona) que, mais do que remeter para a derradeira catástrofe escatológica, antes se refere aos paradoxos terminais - da técnica, da política, da História - que vão arrastando no seu vórtice o mundo da vida (die Lebenswelt), segundo a fórmula de Edmund Husserl, para os abismos da era moderna, de que, aqui, «a desagregação bárbara» do império austro-húngaro - que no romance dá pelo nome de Cacânia - constitui a parábola da desagregação da Europa e o caso Moosbrugger, baseado num acontecimento real que Musil acompanhou, a metáfora da irrupção irracional do mal no mundo da ordem.

Dessa visão consternada de uma civilização privada de centro e de fundamento diante de uma História enlouquecida deu, também, conta Husserl nas conferências que, em 1935, proferiu em Viena e Praga, como nos relata Milan Kundera em A arte do romance (Dom Quixote). O mundo da vida «eclipsado, antecipadamente esquecido», prestes a ser trucidado pelo monstro que já não vem da alma, mas que vem do exterior, cavalgando a História sob o olhar atormentado de uma plêiade de visionários centro-europeus que «percebeu, tocou, aprendeu os paradoxos terminais» de um mundo em declínio, mas ainda assim, capaz de produzir estados produtivos, através dos quais o homem se reconhece na sua fragilidade e nos seus limites, mas se torna criador, capaz, portanto, de dar conta não apenas do sentido da realidade que ali estava, mas também de procurar algures um sentido de possibilidade contra a carapaça fria e dura do monstro da História.

Nesse sentido, Musil era, então, um visionário nihilista e activista, como também o eram outros cacanianos, como Kraus, Hoffmansthal, Rilke, Freud, Husserl, Broch, Schoenberg, Kafka e Kassner, «nomes suficientes para nos mostrar que as culturas moribundas têm grande capacidade para produzir obras revolucionárias e talentos de futuro» (Maurice Blanchot, O livro por vir, Relógio d´Água).

28 de julho de 2009

De que falamos quando falamos de avaliação


O conflito entre o Ministério da Educação e sindicatos de professores, sobretudo a Frenprof - que saltou ontem, de novo, para os noticiários televisivos, agora em vésperas de eleições para um novo governo - suscita-me a seguinte reflexão. O que continua, então, em jogo, neste caso? Um confronto entre aqueles que procuram impôr um modelo de avaliação - agora, «simplificado», dizem - que convoca um sofisticado sistema de medições, regras e tabelas visando a caução científica para fins mais menos ou inconfessados, mas que procuram denegar a sua dimensão ideológica e aqueles que, embora movidos por diferentes motivações, recusam expôr-se a um novo «dispositivo de vigilância» que mais não é do que o resultado da expansão do paradigma da medição nas sociedades modernas.

E o que é, então, denegado sob a roupagem pseudo-científica da avaliação? A emergência daquilo a que Giles Deleuze designou, apropropriando-se do conceito de William Burroughs, como «sociedade de controlo» e que Michel Foucault aponta como substituto das «sociedades disciplinares». E cuja formulação através da avaliação, mais não é, do ponto de vista técnico (objecto, método, resultados), do que uma consequência da expansão do paradigma da medição, corroborando o uso social da matemática nas sociedades modernas; e do ponto de vista do poder, um modo de funcionamento do Estado que institui uma maneira de governar que se exerce através da matematização da experiência.

O que é, então, a avaliação? E quem são os avaliadores? Conforme escreve o filósofo e psicanalista francês Jean-Claude Milner em Voulez-vous être évalué?, «a avaliação é essencialmente uma retórica. Os avaliadores são os sofistas de hoje». Sendo que a sofística da avaliação procura resolver sumariamente a questão dos critérios e da legitimidade dos próprios avaliadores, evitando, acima de tudo, que se coloque a incómoda questão: quem avalia os avaliadores, isto é, aqueles especialistas hiperactivos, fetichistas das medições, das classificações, dos escalonamentos, das comparações em cujos paradoxos inextrincáveis procuram enredar os avaliados?

24 de julho de 2009

Um homem sem qualidades


«… pensei, larga a técnica de uma vez por todas. Torna-te escritor, engraxador, criado, qualquer dessas coisas americanas, e afirma-te literariamente», anotara Robert Musil logo em 1905, num dos seus cadernos dos Diários. E aos poucos irá esvaziando a sua vida de qualidades, transformando-se, sobretudo a partir da segunda metade da década de vinte, num autor sem biografia, mergulhando na escrita do que viria a ser o romance O homem sem qualidades, como escreverá, em 1948, o seu compatriota Hermann Broch: «Partilho alguma coisa com Kafka e Musil: nenhum de nós tem propriamente uma biografia; vivemos e escrevemos, e é tudo».

Como fazer, então, um retrato de momento de um escritor que se deu como desaparecido da vida, exaltando a ideia de um «homem sem qualidades» a quem a escrita usurpou a biografia, sem escamotear, no entanto, os traços de carácter plasmados na sua obra independentemente da sua vontade? Um homem com uma personalidade simultaneamente neurótica e metódica que só encontrará vazão na sua obra. Um espírito livre de quem não sabe para onde vai, mas que sabe que não seguirá pelos caminhos por onde o querem empurrar. Uma existência nas margens do mundo que ali estava, tão cheio de «qualidades» num tempo apresado por efeito do choque entre a latência adiada e um porvir ameaçador, povoado de máscaras, simulacros e perplexidades que espreitavam na moderna Viena. Mas também um espírito perturbado pelas fantasmagorias do progresso que assolavam a «Cacânia» musiliana e que os dias que viriam se encarregariam de desconstruir como a desintegração da sociedade hierárquica austríaca e da chamada cultura de fim de século que Broch descreveria como um «apocalipse alegre», uma espécie de nihilismo austríaco com estilo. Eis a Viena descrente de Musil, e de Canetti, de Broch, de Hoffmannsthal, de Kraus, de Wittgentein, de Freud, com os seus cafés – Herrenhof, Central, Giensteidl, Museum -, onde o «progresso» carrega já consigo o estigma do transitório, numa espécie de borbulhar de superfície e de vivência não reflectida que, obstinadamente, os seus escritores e filósofos, procuram contrariar com - eles sim - uma aguda consciência nihilista de um tempo terminal admiravelmente retratado por Karl Kraus na sua peça Os últimos dias da humanidade [Antígona].

Talvez partir, primeiro, de As perturbações do jovem Törless (1906), uma quase autobiografia da sua juventude, uma espécie de Werther pessoal e uma «necrologia profética», segundo Hermann Broch, em que o jovem Törless fala da «segunda vida das coisas, secreta e esquiva [...], uma vida que não se exprime em palavras e que, ainda assim, é a minha vida». Por isso, a belíssima epígrafe de Maeterlinck. E depois, perseguir as mais de duas mil páginas de O homem sem qualidades (1930-1942), uma obra que extravasa o realismo crítico da narrativa histórica sobre o destino austro-húngaro, que o próprio autor rejeita afirmando «[não] tentar a sério pintar um quadro histórico e entrar em competição com a realidade». Antes, uma portentosa descida à profundidade da sua alma «pós-moderna», um livro obsessivamente radical em termos literários e humanos, e que será ele próprio, também, fonte de perturbação do autor que sente que «não o domina» [Maurice Blanchot, «Musil», O livro por vir, Relógio d´Água, 1984], até porque esse livro não tem, não terá, as «qualidades» dos cânones literários da época. Um livro insuportável devido à sua «monstruosidade» literária que estilhaçará as fronteiras do género para desagrilhoar o humano na tentativa utópica de alcançar a totalidade do mundo. Um mundo que às vezes se nos apresenta ali como um deserto narrativo, exigindo um árduo caminhar, mas que atravessamos conscientes da imponderabilidade deste romance-ensaio, perscrutando passagens, possibilidades, iluminados pelo «fogo frio» da linguagem onde se aconchega a alma musiliana.

E «o que é a alma [para Musil]? É fácil defini-la pela negativa: é simplesmente aquilo que se esgueira à simples menção das séries algébricas! E pela afirmativa? Parece que é aquilo que nos consegue sempre escapar de cada vez que a tentamos apanhar» [O homem sem qualidades]. E é neste paradoxo de alcançar o inefável que reside toda a pulsão nihilista que afecta Musil e a sua obra, mas contra a qual, no limite, ele se rebela afrontando o vazio do seu tempo, desprendendo-se de todas as qualidades e atributos para melhor perseguir os mundos que existem no mundo.

Daqui decorre, como sustenta João Barrento na sua concisa e esclarecedora introdução às obras de Musil, em publicação na Dom Quixote, o aparente paradoxo das tensões polarizadas que alimentam a sua obra: «entre ética e estética, experiência e conhecimento, intuição e razão [...] que desencadeiam um processo intelectivo, reflexivo, em que o pensamento se debruça sobre «a experiência estética da alma» [Maria Gabriela Llansol]. Experiência estética cuja inefabilidade, ao invés de fechar, abre para uma nova consciência histórica na tentativa da reconstituição fragmentária e contingente da realidade, de que O homem sem qualidades constitui a mais radical aproximação narrativa, como o confirma Herbert Kraft quando escreve que «todos escrevem a partir da própria vida, mas raramente alguém o fez de forma tão alargada como Robert Musil. A forma literária mal consegue encobrir os bastidores da sua própria vida» [Herbert Kraft, Musil, Viena, Paul Zsonay, cit. por João Barrento].

Este o retrato de Musil que me ocorre de momento. E com ele, talvez, fazer «dançar sobre os pés do acaso» [Nietszche] os caminhantes sem qualidades deste mundo.

21 de julho de 2009

No reino da estupidez




Uma das patologias que se manifestam nos governos em vias de se despenharem num qualquer precipício eleitoral é o discurso reiterado da estupidez. E o que é a estupidez, então? Asneira, disparate, parvoíce, entre outros, constituem alguns sinónimos a aplicar conforme as circunstâncias, o que mostra que a estupidez não se deixa apreender facilmente, que as suas metamorfoses fazem dela algo a que ninguém está seguro de escapar. Flaubert, Proust, Gombrowicz, Musil ou Thomas Bernhard, todos eles escritores que integram a minha biblioteca de quarto escuro, encontraram na ironia ou no humor - leio num número pretérito do Magazine Littéraire dedicado, precisamente, à bêtise - a forma mais adequada para a denúncia dos avanços dissimulados da bêtise, sem garantias, contudo, de conseguirem escapar-lhe. Até porque, às vezes, aquela revela-se, como observa Clément Rosset, em «segundo grau», isto é, aparentemente reflexiva e apanágio de homens com qualidades.

«A bêtise – escreve Clément Rosset, em Le réel et son double, Minuit, 1997 - é de natureza intervencionista: ela não procura decifrar, mas sim emitir repetidamente. Ela fala, fala, ela não pára nunca de acrescentar». Repetitivo e irredutível, fechado sobre si mesmo, o discurso da estupidez é opaco mas obstinado. Diz-se determinado, mas é, sobretudo, obsessivo. Manifestações do discurso da estupidez em «segundo grau», disfarçadas num discurso aparentemente reflexivo, mas afirmativo e, ao mesmo tempo, insensível à argumentação dos outros, na tentativa de controlar o espaço saturado das escolas, temo-las visto em abundância sempre que a ministra da Educação ou os seus secretários de Estado falam, falam, e não param de acrescentar ao seu discurso sobre a avaliação dos professores. Há dias,à pergunta de uma jornalista sobre o que fará se houver novas manifestações de professores pelo facto de não ser suspenso o «modelo simplex de avaliação», a ministra da Educação, sem reflectir, em primeiro grau, portanto, respondeu: «Haverá, haverá».

Assim, indiferentes ao torvelinho provocado pelo seu próprio discurso autista, vão estes sujeitos mais ou menos reflexivos, repetitivos e irredutíveis, empurrando o governo para o abismo, sem querer saber o que haverá do outro lado. Incapazes de controlar o seu discurso enquistado, porque isso seria contrário à própria natureza da estupidez, no seu estertor vão estes governantes imitando o idiota de Rilke na «Canção do Idiota» : «Não me incomodam. Deixam-me ir. / Dizem que não pode acontecer nada. /Ainda bem. / Não pode acontecer nada. Tudo chega e gira / sempre em torno do Espírito Santo, /em torno de determinado espírito (tu sabes) — / que bem» [Rainer Maria Rilke, in O Livro das Imagens, Relógio d´Água].

17 de julho de 2009

Projecto para uma roda de leitura perigosa



Confessa Roberto Bolaño em Entre parêntesis [Anagrama) que é «muito mais feliz lendo que escrevendo». E eu - que também me confesso esse leitor feliz e dilatório, não o leitor interactivo dos livros da moda, mas o leitor iterativo, assediado pelos labirintos de tinta embebida nos livros da minha biblioteca de quarto escuro - imagino-me, momentaneamente, o engenheiro Agostino Ramelli carregando no pedal e volto a fazer girar a sua Roda da Leitura [cf. Agostino Ramelli: projecto para uma roda de leitura. Paris, 1588] com sete livros de escritores sem qualidades cuja leitura proponho para este Verão.

São sete livros perigosos que compõem uma pequena biblioteca giratória, intensiva e portável, que retiro de uma prateleira sombria e que, aqui, proponho aos leitores subversivos e relutantes que neste Verão arrisquem - ao invés de se deixarem atrair pela superfície brilhante das palavras - atravessar o bosque escuro e sem nome e, por momentos, «viverem errando / na penumbra dos bosques / com a novela perigosa», como se pode ler nuns versos que Pushkin escreveu. Sete livros para serem, talvez, relidos como se os estivéssemos a ler sem que nunca os tivéssemos lido. Porque, como poderia ter dito Heraclito, nunca mergulhamos no mesmo livro duas vezes.

Que vasos comunicantes entre estes livros? Desde logo, o facto de partilharem, na minha biblioteca de quarto escuro, o canto mais sombrio. E também a circunstância dos seus autores pertencerem a uma certa geografia, a da Mitteleurope que mais do que uma condição espacial corresponde, sobretudo, a uma certa ideia de literatura. Depois, porque são autores que ocultaram a sua biografia para melhor poderem afirmar a sua obra. E, ainda, porque todos habitaram de uma forma ou de outra «as regiões do destino onde reina a solidão». Finalmente, porque talvez encaixem na categoria de livros a que Robert Walser se referia quando escreveu em O Salteador (Relógio de Água, 2003): «Às pessoas saudáveis faço o seguinte apelo: não teimem em ler apenas esses livros saudáveis, travem um conhecimento mais estreito, também, com a literatura dita doentia, que vos transmitirá, decerto, uma cultura edificante. As pessoas saudáveis deviam sempre expor-se um pouco ao perigo. Senão, com mil raios, para que serve ser saudável?»

Talvez a vida destes escritores tenha sido «doentia», mas não os seus livros que parecem duplicar a vida que não tiveram inventando outras vidas. «Um romance é a vida secreta de um autor. O obscuro irmão gémeo de um homem», escreveu Faulkner. E não será isso a literatura? Inventar outra vida, inventar um duplo. A dissidência de si mesmo, então, levada a cabo por escritores que, contra todas as aparências, adoptaram os versos de Roberto Juarroz: «Às vezes parece/ que estamos no centro da festa/ Contudo/ no centro da festa não há nada/ No centro da festa está o vazio/ Mas no centro do vazio há outra festa» (Poesía Vertical). E que, por isso, não quereriam ver-se confundidos com nihilistas.

Nem eles nem este leitor sem qualidades que como um bibliotecário-oleiro põe agora a girar esta roda de leitura perigosa e vos propõe as seguintes notas de rodapé:

1. O homem sem qualidades, Robert Musil [1921] (D. Quixote, 2007: um livro sem as «qualidades» dos cânones literários da época. Um livro insuportável devido à sua «monstruosidade» literária que estilhaçará as fronteiras do género para desagrilhoar o humano na tentativa utópica de alcançar a totalidade do mundo;
2. Jacob von Gunten, Robert Walser [1909] (Assírio & Alvim, 2005): o fascinante livro do extravagante escritor suíço precursor de Kafka que escrevia lápis para melhor poder ausentar-se;
3. O castelo, Franz Kafka [1926] (Relógio d´Água, 1999)): um romance inacabado sobre a burocracia institucionalizada que triunfa sobre os homens sem qualidades;
4. As lojas de canela, Bruno Schulz [1933] (Assírio & Alvim, 1987): um livro de contos que transfiguram a pequena cidade de Drohobycz numa espécie de Macondo polaca onde se respira o ardor intenso da fantasia e das metamorfoses contra a colmeia de nevroses e de loucura onde o autor se encontra encerrado;
5. Fuga sem fim, Joseph Roth, [1927] (Difel, 1985): um livro que narra a viagem de errática de um desaparecido, na sua própria viagem de ocultação enquanto autor;
6. Diario, Witold Gombrowicz, [1968)] (Seix Barral, 2005): o diário do escritor polaco escrito durante os vinte e quatro anos que passou na Argentina onde nos são oferecidos aqueles instantes de deslumbramento que Gombrowicz designou por retratos de momento;
7. Os anéis de Saturno, Sebald, W. G. [1995] (Teorema, 2006): um livro onde o passeante Sebald contrapõe à obsessão moderna pelo esquecimento o imperativo redentor da memória, capaz, ainda, de deixar gravado no papel um rasto, que não se extinguirá jamais.

10 de julho de 2009

Lendo, escrevendo


Escreve Julien Gracq - esse passeante do Loire que, às vezes, acompanho nas suas longas caminhadas pela costa de Syrtes - em En lisant, en écrivant (Corti, 1980), que lemos empurrados por «uma imperiosa tracção que move para diante a mão da caneta». Também eu leio escrevendo a lápis. E um impluso secreto me empurra a mão para diante, rasteando, a lápis, através dos labirintos de tinta embebidos nas páginas dos livros - como diria Walter Benjamin - linhas de fuga e de intromissão, cesuras, no texto alheio. Vou, assim, deixando a presença titubeante da minha mão na espessura do texto, como se cada página fosse um território por medir, por escavar, e donde brotará, depois, o rasto vegetal - madeira e carvão -que vou deixando no chão da escrita, também ele vegetal, incitado (e excitado) pela leitura que, lentamente, umas vezes, sofregamente, outras, avança através dos labirintos de tinta impressa.

Em Finita, Maria Gabriela Llansol diz-me como fazer: «Interesso-me por uma frase, por um fragmento de texto, e, muito raramente, por todo um livro que leio lentamente». A partir do fascínio dessa frase, que sublinho, - e que, às vezes, esconde «a imagem» perseguida por Gerard de Nerval - escapo-me furtivamente da topografia da página para as margens onde ressaltam novas palavras, encadeamentos, fórmulas, variações, derivações, fissuras do texto a que regressarei, depois, sempre, como explorador de abismos para me rever, então, como co-autor de um livro que não escrevi.

Às vezes, imagino-me como o Agrimensor, esse personagem que, no romance infinito de Kafka, O castelo, mais do que andar de um lado para o outro como conviria a um agrimensor, deambula de interpretação em interpretação, parando em cada curva do caminho, tudo comentando, como se através do comentário pretendesse chegar ao grau zero da escrita. Assim, também eu leio os livros da minha biblioteca de quarto escuro. Como um agrimensor literário errando na topografia da página, de lápis na mão - porque é o lápis que me incita à demora, que me imbrica no texto. Que me suspende no trilho das palavras, que me incita a voltar atrás, a enredar na topografia da página. Como ler Bernardo Soares ou Llansol ou Musil ou Walser ou Sebald ou mesmo Borges a não ser a lápis?

Devo ao lápis essa possibilidade infinita de me perder nos labirintos de tinta embebidos nas páginas dos livros. O lápis, então, como ferramenta que antecipa outros textos que hão-de vir em forma de micro-ensaio ou de crónica de momento que convoca a citação, a glosa, a paráfrase, anunciadas pelo trilhar a lápis do pensamento que toda a leitura incita (e excita). Como esta crónica breve sobre a escrita a lápis que nasce de uma anotação vegetal - fabricantes de lápis - inscrita na margem da página 17 de Fuga sem fim, de Joseph Roth [Acantilado, 2003]; ou a referência ao agrimensor K. suscitada por uma outra anotação à página 156 de O mal de Montano, de Enrique Vila-Matas [Teorema, 2002]. Sublinhar, anotar a lápis, então, não para desaparecer como pretendia Robert Walser com os seus microgramas, mas para abrir afluentes vegetais que hão-de embeber, depois, a tinta, primeiro, os cadernos moleskine e, mais tarde, o livro de micro-ensaios por vir.

Já nos cadernos moleskine prefiro escrever a tinta - castanha, porque é a que mais se aproxima da terra -, com caneta de aparo, uma art pen que me transforma momentaneamente no escritor húngaro Dezsó Kosztolány que num café, em Budapeste, enquanto escrevia Cotovia [Dom Quixote, 2006], em vez de pedir ao empregado um café, pedia tinta: – « Garçon – dizia – tinta, s´il vous plaît!». A caneta de aparo como extensão da mão, do corpo, um fio de tinta, ziguezagueante, a embeber a página, com cheiro, e mudando de cor no rasto das oscilações da alma, deitando depois o pensamento no chão do caderno onde desaguam os afluentes vegetais que brotam das margens dos livros lidos. Como teria sido eu capaz de evocar, agora, Kosztolány, se como um agrimensor literário não tivesse antes deixado uma anotação vegetal na margem de Cotovia?

E só depois utilizo o computador. Pelas suas extravagantes possibilidades de ligações, cruzamentos, derivações, substituições, colagens. De hipertextualidade. De montagem literária. Enfim, de estabilização discursiva do pensamento ondulante no espelho quebrado do monitor onde vou precipitando e encadeando citações alheias - às vezes, erróneas - e referências literárias, não só porque servem para criar novos sentidos no texto por vir, mas porque elas são o próprio texto.