18 de agosto de 2009

Um poeta do sul



O que há de comum entre António Ramos Rosa e alguns escritores cujas qualidades apresentei nos textos anteriores? Haverá algum fio invisível a ligar o poeta a Walser, Emmanuel Bove, Sebald, também eles escritores que se deram como desaparecidos?… Teria Ramos Rosa lido estes escritores angélicos? Liga-os talvez a ideia de que o poeta é o que sacrifica tudo pela sua obra. Não que Ramos Rosa tenha cultivado como aqueles o desaparecimento, a ocultação do seu corpo, mas porque sempre viveu recatado, privilegiando uma existência sedentária, solitária, à fugacidade das experiências geográficas ou às poses efémeras em vazios cenários mundanos.

O mundo para onde desertou foi sempre o da interioridade povoada por seres reais e alteridades poéticas: «Desertei da biografia e dos relógios». E refugiou-se na linguagem, geografia única onde é possível seguir o seu rasto sem que a água ou o ar alguma vez o possa apagar: uma geografia onde o real foi destruído, onde a única realidade é a própria linguagem, colocando-a sob o signo de Rimbaud, da liberdade plena da imaginação, da demiurgia absoluta, capaz de fazer ouvir, como num búzio, a maresia do mundo. Pertence Ramos Rosa completamente à poesia, tal como Walser que se fundiu nos microgramas que escrevia em Herisau. Mas pertence Ramos Rosa, também, ao Algarve, pois essa é a única geografia exterior que deixa rasto na sua poesia, o espaço mais luminoso onde a “nudez” é uma palavra que terá correspondência com a paisagem algarvia.

Onde situar, então, esta poesia luminosa que o poeta classifica de cognitiva e metapoética? Recordemos que se deve a Ramos Rosa a reposição da pulsão modernista na poesia portuguesa, quando nos anos 50, fosse como poeta fosse como crítico (leia-se, sobretudo, O poema, sua génese e significação, que agrupa diversos artigos) fez das revistas Árvore, Cassopeia e Cadernos do Meio-Dia, que dirigiu, veículos privilegiados de uma nova linguagem poética como um ser próprio, um dinamismo próprio. Diz Eduardo Lourenço que onde Pessoa acaba, começa Ramos Rosa que é um poeta solar. «Eu sou algarvio, nasci no Sul [...] o espaço mais luminoso de Portugal, sim, terá tido alguma influência na minha obra poética onde a “nudez” é uma palavra que terá talvez alguma correspondência com a paisagem algarvia». A fulgurância das coisas mais simples irrompe nos versos, na imaginação deste poeta no nosso Sul, em que o muro branco, a cal, a espuma das ondas se reflectem no poema, sem, contudo, ofuscá-lo de realidade. Este o Ramos Rosa que, sobretudo, nós algarvios, nos cumpre celebrar, mesmo que o poeta, agora, procure a ocultação, não o desaparecimento.

10 de agosto de 2009

Bartleby ou o eclipse da palavra


«Escrever poesia depois de Auchswitz é bárbaro», afirmou Adorno. E Paul Celan, que viveu em carne viva a experiência do extermínio, repetiu até à própria laceração de si mesmo, até ao emudecimento total, a mesma promessa angustiante: «Se viesse, / se viesse um homem / se viesse um homem ao mundo, hoje, com / a barba de luz dos / patriarcas: só poderia, / se falasse deste tempo, só / poderia balbuciar, balbuciar / sempre sempre / só só». Caídos neste torvelinho de terrível impotência, num tempo de silêncio e destruição, a que Hanna Arendt chamou a «banalidade do mal», escritores houve que sucumbiram à derrocada da razão e da linguagem, calando a sua fala, negando-se a escrever, abraçando o silêncio depois de ter proferido palavras de um modo que anunciava a promessa de novas palavras, como um rio que de repente tivesse secado deixando apenas no leito pedregoso a nostalgia do nunca mais dito. Como se escrever, acrescentar mais alguma semântica à desordem do mundo, mais não fizesse do que aumentar a catástrofe.

Hoffmansthal abriu o vertiginoso século XX mostrando o seu próprio desconcerto face à impossibilidade da comunicação através da escrita, prometendo na sua Carta de Lord Chandos, em 1902, nunca mais escrever. Kafka alude, depois, à impossibilidade da literatura, sobretudo nos seus Diários. Borges cita o poeta argentino Enrique Banchs, de quem diz: «Na cidade de Buenos Aires, em 1911, Enrique Banchs publica La urna, o melhor dos seus livros, e um dos melhores da literatura argentina: depois, misteriosamente, emudece. Há vinte e cinco anos que emudeceu». Seriam, afinal, cinquenta e sete anos. E essa mesma experiência de impotência e renúncia, desencanto e ocultação é sucessivamente reiterada ao longo do século por escritores com medo de existir diante da anormalidade da escrita: Robert Walser, Robert Musil, Bruno Schulz, Juan Rulfo, J. D. Salinger, Henri Roth… Tal como os seus antepassados Hölderlin, Joseph Joubert, Rimbaud. Rimbaud cuja insensata santidade o levou a pronunciar o mais belo manifesto de vida: «sobretudo fumar, beber licores fortes como o metal fundido» e, com uma singular precocidade, a escrever toda a sua obra até aos dezanove anos para depois partir para a aventura abissínia.

A interrupção da escrita, o silêncio, a renúncia da palavra de «um sector importante da literatura ocidental moderna», eis o que rastreia Enrique Vila-Matas em Bartleby & Companhia [Assírio & Alvim, 2001], uma espécie de catálogo de instantes fulgurantes dessa «pulsão negativa ou atracção pelo nada que faz com que certos criadores [...] renunciem à escrita [...] e fiquem, um dia, literalmente paralizados para sempre». Tendo como base Bartleby, o escriturário – o personagem do conto homónimo de Herman Melville – que, quando alguém pretendia encarregá-lo de alguma tarefa, respondia invariavelmente «Preferia não o fazer» - espécie de formulação não exaltante da negatividade moderna -, Vila-Matas oferece-nos um caderno de notas de pé de página, «notas sem texto», como ele lhe chama, sobre o síndroma de Bartebly, esse «mal endémico das letras contemporâneas», uma espécie de fresco onde se respira um humor shandiano cuja principal virtude é a de avivar-nos a memória e o desejo de revisitar as paisagens literárias que vai povoando e seguir no rasto de Rimbaud, Walser, Roth e tantos outros escritores que formam a nossa biblioteca obscur

Entretanto, se alguém quiser adentrar-se mais no significado desta renúncia bartlebyana deverá visitar os ensaios de Giorgio Agamben [Bartebly o della contigenza, Macerata, 1993] ou Gilles Deleuse ["Bartleby ou la formule", in Critique et Clinique, Les Éditions de Minuit, Paris, 1993].

O síndroma de Bartlebly


Olho para os cartazes eleitorais que apresentam Manuela Ferreira Leite numa postura de braços cruzados e lembro-me, cada vez mais, de Bartleby, o escriturário, o personagem do conto homónimo de Herman Melville que, quando instado a realizar um qualquer trabalho, respondia impreterivelmente «Preferia não o fazer». É que o mesmo se vai passando com a líder do PSD que, sempre que alguém lhe pede um comentário sobre um qualquer episódio político ou que revele qual o seu programa eleitoral, responde, invariavelmente, que preferia não o fazer, numa atitude de exaltação da passividade política que a própria iconologia política (isto é, a sua imagem nos cartazes) vem, agora, corroborar, coincidindo, assim, com a atitude de inactividade discursiva traduzida numa mímica pessoal que já se tornou numa espécie de fórmula expressiva sem autor, logo, também, sem conteúdo.

Trata-se, então, de um estilo, entendido como conjunto de traços formais ou discursivos, algo que tem que ver com o modo inconfessado de fazer qualquer coisa, e não com o que é feito ou dito, ou não dito - que é o que, no caso de MFL, sucede na maioria das situações em que é interpelada pelos jornalistas.

Assim, tendo em conta esse seu catálogo pessoal de instantes fulgurantes de «pulsão negativa ou atracção pelo nada» na política - de que ausência de apresentação de programa eleitoral constitui o grau máximo da inacção discursiva -, a questão que me coloco é se não sofrerá, então, Manuela Ferreira Leite de uma espécie de «síndroma de Bartleby» - noção shandiana que peço emprestada a Enrique Vila-Matas [in Bartleby & Companhia, Assírio & Alvim] e que aplico aqui à política - que a leva a renunciar ao discurso político para melhor esconder a ausência de soluções governativas, numa vertigem de silêncio que visa evitar o compromisso político, preferindo apostar, apenas, na erosão do adversário - isto é, na erosão de Sócrates, cujo discurso prolixo nos trouxe um cansaço imenso - e, por isso, mais exposto à contradição entre a forma e o conteúdo?

6 de agosto de 2009

No território do lápis


Herisau, dia de Natal de 1956. Entre faias e abetos, na ladeira que desce do Schochenberg, um homem jaz no chão, confundindo-se com o deserto branco que o rodeia. A neve é o mais perfeito esconderijo. Antes, depois de ter almoçado no sanatório, errara durante horas até ao coração do bosque, perdido. Ao longe, talvez, o toque lamentoso de um sino. A cabeça está apoiada sobre a raíz de um abeto que emerge da neve. Não há tristeza no seu rosto. Apenas uma réstia de um olhar eternamente extasiado perante a neve pura, com o espanto de quem descobre, finalmente, o mais secreto dos desejos. Daqui a pouco, um grupo de crianças encontrará um corpo num bosque gelado e saberemos tratar-se de Robert Walser, o «poeta mais escondido que alguma vez existiu», como escreveu Elias Canetti. E que num nos dos seus romances, Os irmãos Tanner, pusera premonitoriamente na boca de um personagem uma elegia a Sebastião, o poeta encontrado morto na neve: «Com que nobreza escolheu a sua tumba! Jaz no meio de esplêndidos abetos verdes, cobertos pela neve. Não quero avisar ninguém. A natureza inclina-se a contemplar o seu morto, as estrelas cantam suavemente à volta da sua cabeça e as aves nocturnas grasnam: é a melhor música para alguém que não tem ouvido nem sensações».

Conta Max Brod que um dia Kafka apareceu em sua casa para dar conta do seu entusiasmo pelo livro Jakob von Gunten, de Robert Walser. E conta, ainda, como Kafka leu, depois, em voz alta, fragmentos desse livro, rindo às gargalhadas, com o mesmo riso de quando leu O processo aos seus amigos. A irmandade entre Kafka e Walser seria comentada por Robert Musil como «um caso particular do modelo de Walser». Em Jakob von Gunten [tal como A rosa, O salteador e O ajudante, editados em Portugal pela Relógio d´Água], o protagonista é aluno do Instituto Benjamenta, inventado Walser, uma escola para formar criados. Em vez de formar a personalidade dos alunos, o instituto apaga-a. O principal obstáculo a ultrapassar é o da própria consciência. Por isso, praticam a repetição, em obediência mimética. Obedecem a toda e qualquer ordem para não pensar. O seu objectivo é apagar-se. Jakob pensa: «Se me afundo e me desmorono, o que é que se perderá? Um zero». Li de um só folgo este romance-diário com uma prosa despojada de clímax narrativo e densidade psicológica, uma espécie de emanação lúdica segregada pela sucessão de derivas mentais e livre associação discursiva, mas também com um lado sombrio e funesto, delicadamente omnipresente. «Uma história singularmente delicada», segundo Walter Benjamin, em que Jacob descreve os seus colegas, passeia pela cidade, observa o autoritário director e a sua irmã Lisa, penetrando no mistério das suas vidas, numa experiência, ao mesmo tempo, real e onírica que nos faz lembrar, precisamente, Kafka que provavelmente «teria sido ligeiramente diferente se não tivesse, ele próprio, lido Robert Walser», como escreveu Enrique Vila-Matas. «Um escritor verdadeiramente magnífico que nos parte o coração», segundo Susan Sontag, cuja obra desdobrada em quinze livros é «um estranho e fascinante espelho da vida». De uma vida que foi um percurso de incompreensão, de penúria, de dor, mas da qual nunca se queixa nos seus livros em que um niilismo aparente é atravessado por uma ingenuidade espontânea.

«A singularidade de Robert Walser como escritor», escreveu Canetti, «consiste em nunca falar de motivações. É o mais oculto dos escritores. Está sempre bem, sempre encantado com tudo», cultivando a insignificância da qual, achava, poderia extrair algo «vivificante e purificador». Por isso, entre os seus múltiplos empregos de subalterno, trabalhou como empregado bancário, escriturário, empregado numa livraria, operário numa fábrica de máquinas de costura e, finalmente, mordomo numa castelo na Silésia. Mas o seu único capital era a sua bonita caligrafia, minuciosa e precisa. Todas as noites, depois do trabalho, num pequeno quarto de pensão, Walser continuava a escrever. Em vez de ordens de compra, cartas comerciais ou registos contabilísticos, escrevia peças de teatro, poemas, contos, romances com uma micrografia que cada vez se aproximava mais da extinção. Uma escrita em que as palavras eram a corrente natural da sua imaginação, com paixão total, onírica. Às vezes, ocultava-se em Zurique, na sua «Câmara de Escrita para Desocupados», e aí sob a luz crepuscular de um candeeiro de petróleo deixava que a sua mão indecisa o conduzisse pelos territórios do lápis, cujo traço o empurrava lentamente para o desaparecimento, para o eclipse, mimetizando-se para não ser descoberto.

Numa espécie de vagabundagem estilística, indecisa, associativa, feita de ligações imprevistas e ricochetes - «Caneta, se não me ajudas, não sei como avançar» -, Walser devolve a escrita à sua precariedade, enquanto ele próprio se vai consumindo escrevendo, «na sua busca de libertação da consciência de Deus, do pensamento, e de ele mesmo», como escreveu Vila-Matas, em Doutor Pasavento. À semelhança de Hölderlin que passou os últimos trinta anos da sua vida encerrado nas águas-furtadas do carpinteiro Zimmer, em Tübingen, praticando a ilegibilidade, também Walser se dá como desaparecido, passando os últimos vinte e oito anos da sua vida num «manicómio, o mosteiro da época moderna», primeiro em Waldau, depois em Herisau, escrevendo em tudo o que encontrava à mão - envelopes usados, cartões de visita, formulários oficiais, margens dos jornais, farrapos de papel - numa caligrafia microscópica, secreta, uma espécie de retratos de momento, esse género literário tão apreciado por Witold Gombrowicz, os 526 microgramas que só muitos anos depois haveriam de ser decifrados e publicados sob o mais walseriano dos títulos, Território do lápis.

2 de agosto de 2009

(In)verosimilhanças


Como um funâmbulo da leitura volto a caminhar em equilíbrio instável sobre a corda bamba que Enrique Vila-Matas estende sobre as dezanove estações abismais que integram a cartografia do vazio atravessada pelos Exploradores do abismo (Teorema). Mas, ao contrário da minha primeira expedição em que me deixei ir por ali à deriva, perseguindo elipses e labirintos, em busca da realidade disfarçada na ficção, encaminho-me agora directamente para o centro do vazio – porque é aí «no centro do vazio [que] há outra festa», segundo o verso de Roberto Juarroz citado por Vila-Matas - que se encontra no conto «Porque ela me pediu», em torno do qual se estrutura este livro profundamente vilamatiano que estilhaça as fronteiras da realidade e da ficção, mostrando-nos como até a fantasia mais inverosímil pode ser domesticada através do filtro de metáforas apagadas da vida de todos os dias e, ao mesmo tempo, como a realidade mais verosímil pode ser vivida com a insolência da fantasia que cintila na ficção.

Expedição breve, mas que, ainda assim, permite descobrir que é ali naquela estação que dá pelo nome de «Porque ela não lho pediu» que se encontra o epicentro absoluto da verosimilhança. Vou instável mas ligeiro, primeiro, no encalço da personagem vilamatiana Rita Malú que viaja ao fundo do vazio, nos Açores, em busca do seu próprio fantasma e se enreda numa trama ficcional que se vai tornando verosímil graças às bifurcações das trajectórias das restantes personagens entre o lado de cá e o lado de lá da realidade - ou da ficção? E adiante descubro que essa mesma ficção se transfigura na mais verosímil realidade em que se adentra a escritora Sophie Calle quando decide protagonizar a ficção escrita por Vila-Matas. E, no final desta breve expedição, constato que tudo não passa, afinal, de um embuste para onde fui arrastado num jogo ficcional aberto a todas as possibilidades e onde a verdade e mentira se imbricam num processo vilamatiano de «desfamiliarizar uma experiência e dela se apropriar como ficção».

Mais vilamatiano que isto não há. Quem disse que este Vila-Matas já não era ele mesmo mas outro? O próprio? A verdade da mentira, portanto.