29 de novembro de 2009

Isto é um homem


[A pretexto do Dia Internacional da Solidariedade com o Povo da Palestina que hoje se assinala, recordo aqui um episódio protagonizado por Haruki Murakami, em Fevereiro passado, na Palestina]

Contrariando o pedido que lhe fora endereçado por um grupo pró-palestiano para não ir a Israel receber o Jerusalem Prize, o escritor japonês Haruki Murakami decidiu [em Fevereiro passado]ir porque queria ver «com os seus próprios olhos». E foi e viu um muro alto e grande serpenteando na paisagem bíblica, dividindo, espartilhando ruas e estradas, quintais, hortas, vizinhanças, incendiando ódios na «terra prometida». E, então, disse que «se há um muro alto e grande e um ovo que se parte contra ele, não interessa o quão certo está o muro ou quão errado está o ovo, eu ficarei do lado do ovo. Porquê? Porque cada um de nós é um ovo, uma alma única, encerrada num ovo frágil. Cada um de nós confronta-se com um grande muro. O grande muro é o sistema. […] Somos todos seres humanos, indivíduos, ovos frágeis».

Os palestinianos, menos que isso, diz-me Fuad, um amigo palestiniano que conheci um dia em Aman: «Em Israel, os palestinianos agora são vistos como menos que humanos». Almas quebradas contra um muro «demasiado grande, demasiado escuro, demasiado frio», erguido por israelitas com idade para se lembrarem do que significou na história enlouquecida do século XX a palavra «undermenchen». Foi esta expressão – menos que humano - que antecipou os campos de extermínio nazis, a chave que abriu as câmaras de gás para milhões de judeus e que, agora, estes, que mais do que qualquer outro povo a deviam calar, pronunciam, indiferentes ao sofrimento, à dor que infligem aos seus vizinhos.

A muralha de ódio que vai rasgando a paisagem bíblica da Palestina, contra a qual Murakami viu partirem-se os ovos frágeis dos palestinianos, é justificada por uma retórica de auto-defesa israelita; a mesma retórica que justifica os bombardeamentos indiscriminados de populações indefesas do outro lado do muro. Ou será que os israelitas acreditam que ali, todos, mulheres e crianças inclusive, se encontram armados? É que se assim não for, então, já só os pensam como menos que humanos. E é por aí, pela insensibilidade, que começa o extermínio. Primeiro, «um muro demasiado grande, demasiado escuro, demasiado frio». E depois, no lado de lá do muro, uma paisagem de ruínas sem fim, paredes calcinadas, sedimentos de morte e dor espalhados sobre aquele pedaço de deserto abandonado por Deus.

Por isso, como Murakami, esquivo-me às codificações racionais de uma guerra assimétrica e envolvo-me emocionalmente no sofrimento palestiniano. Por isso, esquivo-me ao juízo sobre se o que está certo ou errado é o muro ou os ovos que se quebram contra ele. É que, conhecendo Fuad e escutando as suas palavras, umas vezes gritadas outras vezes apenas balbuciadas, só poderei dizer, evocando Primo Levi, também ele «uma alma única, encerrada num ovo frágil», isto é um homem.

Nos cornos da actualidade


A pretexto do Dia Internacional da Solidariedade com o Povo da Palestina que hoje se assinala, reedito um texto antes publicado n´ O que cai dos dias, a propósito de uma reportagem de Clara Ferreira Alves publicada na Única (Expresso, de 21 de Julho de 2007), com o título Vidas Ocupadas, que convoquei, na ocasião, para ilustrar como é possível, ainda, um certo jornalismo capaz de agarrar os cornos da actualidade.

[Conta-nos a reportagem que] há uma muralha de ódio que vai rasgando a paisagem bíblica da Palestina, espartilhando judeus e árabes. E desde logo, a reportagem conta menos do que mostra. E ao preocupar-se com o mostrar responde expeditamente ao «acontecimento» que é a construção da «muralha» de mil quilómetros de comprimento por oito de altura que se vai fechando sobre as vidas de 300 mil palestinianos. Clara Ferreira Alves mostra-nos a mesma Jerusalém que Amos Oz descreveu como «uma desordem mental muito arreigada… uma espécie de "síndrome de Jerusalém": uma pessoa chega, inala o ar puro e maravilhoso da montanha e, de repente, inflama-se e pega fogo a uma mesquita, a uma sinagoga ou a uma igreja». Quando CFA lá esteve a fazer esta reportagem era Outono e uma luz morna derramava-se sobre as torres, muros e minaretes da cidade como vergando-a ao peso das religiões. CFA mostra-nos tudo rigorosamente vigiado, polícias e soldados nas ruas, grupos de judeus ordodoxos conspirando nas esquinas contra uma parada gay que iria realizar no dia seguinte, uma tensão no ar prestes a explodir a qualquer momento; mostra-nos judeus às arrecuas diante do Muro das Lamentações que parecem saídos do qualquer «shtetl» de Varsóvia; mostra-nos a Esplanada das Mesquitas onde começou a terceira Intifada depois da provocação de Sharon; e, mostra-nos, sobretudo, uma muralha serpenteando como uma mancha na paisagem abandonada por Deus, cortando ruas e estradas, quintais, hortas, vizinhanças, mas também feridas abertas, ódios acesos. Medo. «Sou contra, mas é eficaz», diz o poeta Israel Eliraz . Uma nova forma de roubar a terra e a água palestinianas, uma humilhação, dizem os palestinianos. E as duas respostas são verdadeiras, diz-nos CFA que nos mostra, ainda, que «quando o Muro estiver terminado, a Cisjordânia será dividida em bantustões». E mostra-nos o fraticídio entre a Fatah e o Hamas, transformando Nablus num lugar assustador, balas assobiando no ar, ambulâncias a recolher feridos. E muito dinheiro sujo. CFA mostra-nos o que viu à saída de Nablus, ela uma mulher europeia identificada sofrendo nas «filas de mulheres e homens debaixo de um calor tórrido, gente de todas as idades aguardando como animais a passagem da cancela, e sendo tratadas de modo displicente pelos soldados israelitas, um bando de miúdos malcriados […] rapazolas humilhando mulheres mais velhas […] tocando-lhes como se fossem gado […], crueldade e medo».

Estes os sinais da actualidade que CFA leu na sua passagem por Jerusalém e pelos territórios ocupados. Sinais, sobretudo, de vidas ocupadas. Dos dois lados. Sim, mas mais do lado dos palestinianos, porque, dizia-me há semanas Fuad, um palestiniano que mora em Hebron e que conheci em Amann, «a paz sim, claro, quando nos devolverem os territórios». Mas também Amos Oz cuja História de Amor e Trevas me mostrou outras possibilidades de pensar o conflito.

Este um jornalismo que toma posição sem afecção pelo politicamente correcto, como esta reportagem de CFA, cujo ponto de vista não é seguramente o da «objectividade» jornalística que muitas vezes mais não é do que uma forma nihilista de não questionamento «acontecimento». Aqui, mais do que dizer o muro, o importante é «dinamitá-lo», mostrando o drama das mulheres da Palestina que intentam atravessá-lo. E a CFA estava lá e nós, leitores de jornais,com ela. E isso é o jornalismo ainda capaz de forçar a pensar. Porque mostra, retraça sinais, posiciona-se, ajuízam sem afecção pelo politicamente correcto e, nessa forma de mostrar o acontecimento mostra-se ela própria como jornalista capaz de apanhar os cornos da actualidade.

[Entretanto, logo à noite, pelas 21horas, o canal Odisseia lembra a data programando o premiado documentário To See If I’m Smiling (2008) do realizador israelita Tamar Yarom, confrontando-nos com os testemunhos dolorosos de seis mulheres-soldado que quebraram o muro de silêncio e denunciaram os abusos do exército israelita contra as populações indefesas].

27 de novembro de 2009

Marilyn, a madame Bovary de Hollywood



Há um livro sobre Marilyn Monroe – um romance, não uma biografia – escrito por um autor-psicanalista, Michel Schneider, que persegue os seus últimos anos de vida com uma nostalgia proustiana em relação à actriz. «Não me interessa a verdade histórica, mas a verdade ficcional. Não me interessa saber como Marilyn morreu, interessa-me saber como viveu. [...] Por isso o romance pareceu-me a escolha mais justificada. Poder dar às personagens emoções». Marilyn, as últimas sessões [Difel] evoca a relação, no ambiente de Hollywood – onde se fundem os mundos do cinema e da psicanálise, – entre Marilyn e Ralph Greenson, o psiquiatra freudiano que a analisou de Janeiro de 1960 a Agosto de 1962. O livro chega depois de muitas biografias, depois da ficção voluptuosa de Norman Mailer que a descreve como «sweet angel of sex, and the sugar of sex came up from her like a ressonance of sound in the clearest grain of a violin», depois de Blonde [Círculo de Leitores], o pesadelo fantasmagórico de Joyce Carol Oates que num registo ora factual ora ficcional persegue um fio de solidão e fragilidade.
Schneider leu tudo isso e muito mais, como se constata na bibliografia que apresenta, mas o seu livro não se deixa engolir pelos outros porque o que ele procura não é uma nova versão ou explicação da morte de Marilyn, mas a revelação de alguém que se foi dando como desaparecida enquanto a morte anunciada não chegava. Alguém que quis desaparecer do corpo, se ausentar da tela, para procurar a salvação nas palavras, mas roçando sempre o abismo para onde seria atraída «uma noite ao deitar-se quando se sentiu sozinha/ou suspeitou que tinha errado a vida», como diz Rui Belo no belíssimo poema A morte de Marilyn. Schneider deita Marilyn no divã e fá-la, finalmente, escrever o livro que nunca escreveu: «A literatura, aliás, sempre esteve na sua vida, de uma forma caótica», escreve Schneider. E Marilyn foi casada com Arthur Miller, um dos mais famosos dramaturgos americanos; conheceu o escritor Vladimir Nabokov e, depois desse encontro, interpretou My heart belongs to daddy (em Let´s make love/Vamo-nos amar, de George Cukor), onde diz: «My name is… Lolita»; e pediu a Wilder que a deixasse representar a Grushenka dos Irmãos Karamazov. «Nos últimos tempos, ela própria colocou o corpo de lado. Para se dedicar às palavras. Por isso fiz este livro: para lhe poder dar a palavra», confessa Schneider. As palavras que já não pôde dizer quando na noite de 5 de Agosto de 1962 «a mão da solidão [caiu como] pedra [no seu] peito». Uma morte prematura nunca verdadeiramente explicada, mas que para Norman Mailer foi urdida pela CIA e pelo FBI; a primeira vítima de uma série de assassinatos políticos: Kennedy, Malcolm X, Martin Luther King.

Recentemente, revi Marilyn em The seven years itch/ O pecado mora ao lado, de Billy Wilder], e não pude deixar de recordar o poema de Ruy Belo : «a mais bela mulher do mundo/ tão bela que não só era assim bela/como mais que chamar-lhe marilyn/devíamos mas era reservar apenas para ela/ o seco sóbrio simples nome de mulher/ em vez de marilyn dizer mulher». E a sua imagem de inocente do próprio desejo que a sua imagem acendia em Tom Ewell. E dentro dessa imagem quem lá estava não era a Norma Rae (nascida na periferia de Los Angeles, em 1926, orfã de pai, abandonada depois pela mãe num orfanato, antes de entrar na espiral do medo que seria a vida de Marilyn desencontrada de Norma Rae). Essa há muito que havia partido. Nem era já a personagem que ela representava, mas a própria Marilyn (a máscara): «Quem é que tu tens aí escondida? Marilyn Monroe?» O mito dela própria. Uma espécie de Madame Bovary holywoodesca, cuja aura nem Mailer nem Wahrol (no seu famoso retrato) nem ninguém foram capazes de captar.

2 de novembro de 2009

A última caminhada


Que melhor post publicar em 2 de Novembro, data em que tradicionalmente é prestada homenagem aos mortos, se não aquele que editei no meu blogue pretérito a pretexto do livro Campo Santo, de W. G. Sebald?

«O meu primeiro passeio no dia seguinte à chegada a Piana levou-me para fora da povoação, por uma rua que começava logo a descer numas curvas, esquinas e ziguezagues medonhos, ladeando precipícios rochosos quase verticais…». Quem por ali vai caminhando é um narrador que dá pelo nome de W. G. Sebald, o passeante solitário e sensitivo que nos habituámos a seguir em peregrinações errantes através dos mapas devastados da nossa modernidade imperfeita. Na linha de Os anéis de Saturno, Sebald aproveita uma viagem à Córsega, durante uma férias de Verão, para percorrer os territórios de uma ancestralidade onírica, onde mora a melancolia, resgastando em quatro fragmentos de um trabalho inacabado – «todos eles autónomos, [...] um espectro incompleto que não deverá corresponder exactamente ao que viria a ser o livro», como nos informa Sven Meyer, na introdução a Campo Santo, agora editado pela Teorema – a nostalgia de um tempo sedimentado em camadas de esquecimento ao qual ele volta a opor o imperativo da memória como condição de possibilidade redentora.

O método de Sebald é aqui, ainda, o da caminhada a pé enquanto contemplação, investigação e indagação numa paisagem devastada, com o propósito de buscar uma moral na natureza, meditar sobre estilos de vida desaparecidos, dar conta da consternação do mundo. Nesta derradeira viagem, vai primeiro a Ajaccio, «o lugar onde o imperador Napoleão tinha vindo ao mundo», e na casa-museu que lhe é dedicada reflecte sobre as minudências imponderáveis que mudaram o destino da Europa. Depois, visita o cemitério de Piana onde as inscrições das lápides dos túmulos lhe inspiram uma dissertação sobre o desaparecimento do culto dos mortos, sobre a crescente insensibilidade moderna ao luto, a mal disfarçada pressa e mesquinhez com que nos despedimos dos nossos mortos, a exiguidade das suas habitações eternas, sobretudo «nas cidades que avançam inexoravelmente para um número de trinta milhões de habitantes! Para onde vão eles, os mortos de Buenos Aires e São Paulo, da Cidade do México, Lagos e Cairo, de Tóquio, Xangai e Bombaim? [...] Quem se lembrará deles, quem se há-de lembrar?». Finalmente, a contemplação da paisagem fá-lo reflectir sobre a destruição dos antigos bosques alpinos da ilha transformados em reverberações nostágicas – «tempos houve em que a Córsega era toda coberta de floresta» – e a denunciar o «sanguinário desporto» da caça, comparando os caçadores às «milícias croatas e sérvias que lhes tinham destruído a pátria com o seu belicismo desvairado», oferecendo-nos a visão consternada de um mundo em vertigem, através de uma prosa meticulosa e cadenciada que oscila entre a reportagem, a crónica de viagens, o registo antropológico e a anotação de história política e social.

Completa o livro um brilhante compêndio de ensaios literários sobre Kafka, Nabokov, Bruce Chatwin e Jean Améry que constituem, a partir de agora, guias incontornáveis para a compreensão da obra de Sebald e que nos mostram a realidade que existe para lá da literatura mas a que só acedemos se nos transformarmos em caminhantes solitários e sensitivos dos livros que resgatamos da memória para neles nos adentrarmos, uma e outra vez, transfigurados em personagens de uma trama que já não sabemos se lida ou vivida, como na recreação nostálgica da viagem de Kafka e Max Brod a Paris – Via Suíça para o bordel -, que desencadeia em Sebald a recordação da viagem que em criança fizera com a mãe atravessando os mesmos cenários descritos por Kafka nos seus Diários.