28 de dezembro de 2014

Um conto de Natal


Há quem diga que foi Charles Dickens quem inventou o Natal conforme ao espírito de fraternidade com que hoje lhe atribuímos. Ou que, pelo menos, foi ele quem no seu Conto de Natal  (1843) acendeu as primeiras luzes natalícias numa época em que a sua celebração era obscura e nada solidária. Melhor que qualquer outro escritor, Dickens compreendeu o significado do espírito natalício, criando uma mitologia que, sem negar a sua natureza messiânica, empresta ao Natal uma espécie felicidade cósmica de natureza pagã. Mais do que uma celebração religiosa fundada em argumentos teológicos, o Natal dickseniano converte-se numa festa que apela à generosidade e à expiação do egoísmo e da cobiça, com a promessa de mudança e redenção.

O tempo de Dickens, como ele o descreve no vertiginoso arranque de História de duas cidades, “era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos, era a idade da sabedoria e também da loucura, a época das crenças e da incredulidade, a primavera da esperança e o inverno do desespero”. Como o tempo em que vivemos hoje, afinal. Daí que fantástica história do avarento Scrooge que, na sua sombria casa, numa noite de Natal, viu aparecerem-lhe quatro fantasmas que o conduziram numa viagem de redenção onde lhe seria revelada a sua maldade, as feridas da sua infância, reencontrando-se com as pessoas e com as coisas que poderiam mudar a sua existência inútil, a alegria dos desamparados nessa data ritual e o desejo de, também ele, poder, ainda, encontrar alguma felicidade, seja considerado o conto de Natal por excelência.

É por isso que por estes dias natalícios, em que aconchegado junto ao calor da lareira, no meio de uma estética de zimbro, pinheiro, coloridas velas trémulas com cheiros silvestres e mesa posta com pastéis de batata-doce que compõem a minha paisagem doméstica, regresso ao jubiloso conto que Dickens apresenta assim: "Com este breve conto de fantasmas, tratei de evocar o espectro de uma ideia que oxalá não amargue os meus leitores, os confronte uns aos outros, os predisponha contra estas festas nem contra e autor. Confio em que leve aos seus lares um feitiço tão agradável como duradoiro. Seu leal amigo e servidor, Charles Dickens".

Sabia Dickens, já naquele tempo, que a ficção era mais forte do que a própria realidade e era capaz de impor-se nas consciências dos homens bem melhor do que qualquer panfleto contra o trabalho infantil. E sabia, também, Dickens quando devia utilizar o libelo acusatório e quando devia usar a ficção. Por isso, primeiro, acusou: "Oh, economistas utilitários, comissários de realidades, elegantes incrédulos...se continuardes enchendo de pobres a vossa sociedade e não cultivardes neles a esperança, quando tiverdes conseguido arrancar das suas almas todo o idealismo e eles se encontrarem a sós com a sua vida vazia, a realidade converter-se-á num lobo e devorar-vos-á". E, depois, escreveu um conto de mistério, piedade, humor e sabores e aromas natalícios tão contrário à narrativa actual imposta pelos novos mercadores do templo obstinados em nos fazer comprar o gadget de última geração que nos abrirá as portas da felicidade. 

E sabemos nós, hoje, 171 anos depois daquele Conto de Natal, que a única diferença entre os usurários dos Tempos difíceis de Dickens e os usurários de agora, é que os de antes se chamavam utilitaristas e os de hoje chamam-se neoliberais, e que uns se reviam em Stuart Miller e os outros revêem-se em Milton Friedman. Os pobres e desamparados, esses, são os mesmos de sempre e outros de agora que vieram juntar-se-lhes. Outra diferença é que Dickens já cá não está para escrever um conto de Natal dos nossos dias capaz de fazer ver aos Scrooge de agora um túmulo com o seu epitáfio e nenhuma flor, para que possam, ainda, redimir-se a tempo e converter-se em gente de bem, todos os dias e não apenas pelo Natal. E mesmo que estivesse, sabemos nós também que os contos não têm fim, mas que continuam depois de virada a última página, no modo como soubermos dar-lhe continuidade como escritores da nossa própria vida, cujo fracasso, também o sabemos, consiste, Natal após Natal, em não sermos capazes de tornar a ficção dickseniana em realidade.

21 de dezembro de 2014

Gente de Montevideu


Talvez por estarmos a entrar na curva descendente do ano em que se celebrou o centenário do nascimento de Julio Cortázar e de Adolfo Bioy Casares, lembro-me de, um dia, em Montevideu, ter falhado a possibilidade de me cruzar com os personagens que um e outro, respectivamente, em La puerta condenada e em Un viaje ou el mago inmortal, fizeram pernoitar num misterioso quarto de um hotel espectral cujo primeiro rumor me haveria de chegar, alguns anos mais tarde, através de uma crónica de Enrique Vila-Matas publicada numa edição da revista Atlântica

Se na ocasião tivesse, minimamente, suspeitado dos segredos que se escondiam naquele segundo andar onde viveu durante anos, até à sua morte, o poeta e filósofo Emilio Oribe, e onde, também, Jorge Luís Borges confessou ter-se hospedado e sofrido de insónias - "Lembro que fui para Montevidéu. Estava alojado no Hotel Cervantes e às vezes acordava as duas ou três da manhã..." [Alifano, Roberto, Borges, Biografia verbal. Barcelona: Plaza & Janés, 1988] -, talvez a curiosidade me tivesse levado a subir os quatro lances de escadas até ao segundo andar e batido à porta do quarto número 106 onde, talvez, o mais melancólico e irreverente dos escritores uruguaios Juan Carlos Onetti - se, como fez Mario Benedetti, se tivesse "dexilado" para reencontrar em Montevideu a cidade mítica de Santa Maria inventada no seu romance A vida breve -, me recebesse na cama onde nos últimos dias do seu exílio madrileno sempre recebia os amigos. Tivesse eu entrado no quarto 106 e Onetti aí estivesse, talvez ele me confessasse o seu arrependimento por não ter sabido corresponder ao amor de Idea Vilariño, também ela, como ele, poeta da melancolia e da saudade tão montevideana expressa num dos mais belos e dilacerantes ensaios poéticos sobre a despedida:"Ya no será / ya no / no viviremos juntos / no criaré a tu hijo / no coseré tu ropa / no te tendré de noche / no te besaré al irme. / Nunca sabrás quién fui / por qué me amaron otros. / No llegaré a saber por qué / ni cómo nunca ni si era de verdad / lo que dijiste que era / ni quién fuiste / ni qué fui para ti / ni cómo hubiera sido / vivir juntos / querernos / esperarnos / estar. / Ya no soy más que yo / para siempre y tú ya / no serás para mí / más que tú. / Ya no estás / en un día futuro / no sabré adónde vives / con quién / ni si te acuerdas. / No me abrazarás nunca / como esa noche / nunca. / No volveré a tocarte. / No te veré morir" ("Ya no", Poemas de amor, 1957). 

Desconhecendo, ainda, nessa altura, a ressonância amargurada destes dois amantes montevideanos, ladeei a fachada do edifício desocupado que antes fora o Hotel Cervantes - e que acolhe agora o Hotel Esplendor -, afastei-me desse lugar espectral de portas emparedadas, espelhos côncavos e de fantasmas que vivem em dimensões paralelas e caminhei até ao vizinho cinema Rex, detendo-me a observar uma janela do primeiro andar, onde o escritor e músico Felisberto Hernández escreveu os seus contos fantásticos, cujo final nunca se encontrava na última página, enquanto, sem que ele suspeitasse, a sua jovem mulher fazia de costureira durante o dia e, à noite, de espia ao serviço de Moscovo. 

Tendo falhado o aleph que o hotel Cervantes escondia, e pouco dado a enredos de espionagem, procurei uma Montevideu mais arejada, indo nos passos de Mario Benedetti pela rua Sarandí "como un desnudo, con esa desesperada desnudez de los sueños, cuando uno se pasea en calzoncillos por Sarandí y la gente lo festeja de vereda a vereda." (Benedetti, La tregua), e onde, na livraria Más Puro Verso, acolhida numa antiga óptica do século XIX, festejei a compra dos Poemas de amor de Idea Vilariño e, depois, como uma criança a quem foi oferecido um brinquedo há muito desejado, fui deambulando, sem pressa, pelos cafés resgatados da memória que foram lugares de encontro de intelectuais, escritores, artistas, como se a própria Sarandí fosse um grande café, lugar de hábitos metódicos e dos vaivéns casuais: o café Brasileiro, o café Las Missiones, o antigo Sorocabana - hoje reconvertido sob o nome Big Mamma - que foi poiso habitual de Benedetti, lugar de escrita e de tertúlia política e literária." 

Caminhei, depois, pela "Dieciocho", a grande avenida de Montevideu, perseguindo os passos de Benedetti: "Uno tiene la impressión de aquí todos nos conocemos. Caminar por 18 de Julio es como moverse por el patio de la casa familiar (Benedetti, Andamios). Lembrei-me que se ficasse por ali até ao anoitecer, talvez me cruzasse com Mario Levrero no seu vai e vem de vertigem entre alfarrabistas que por ali existiam na mesma avenida onírica que nos haveria de revelar em La novela luminosa. De volta à Cidade Velha, fui observando, como o pintor montevideano Joaquin Torres-García, “os veículos, as praças, a geometria das casas alinhadas, e a árvore, o agente da polícia, os armazéns, e a estação de comboios” até parar na esquina de Ituzaingó e Sarandi, diante do Hotel Pyramides, onde residiu um tal Francois Ducasse, funcionário da embaixada francesa, pai de Isidore Ducasse, que sob o pseudónimo de Conde de Lautréamont escreveu os Cantos de Maldoror. Por detrás do Teatro Solís, descendo em direcção à Rambla, pareceu-me ver a sombra do fantasma de Lautréamont esgueirando-se entre os transeuntes que desciam em direcção ao Mar da Prata, mas o que encontrei foi, apenas, um modesto monumento branco em memória dos três escritores francofones de Montevideu, Isidore Ducasse, Jules Laforgue e Jules Supervielle. 

E já diante da linha de casario ribeirinho, também não vi indícios da conjura de poetas precocemente dadístas e surrealistas encabeçados pelo falso morfinómano Julio Herrera y Reissig que, por volta de 1900, talvez inspirados por Lautréamont, prenunciaram o movimento modernista que agitou a Montevideo a partir de um minúsculo quarto erguido no terraço da casa dos seus pais, com vista para o Mar da Prata,  que baptizaram como“Torre dos Panoramas”. Porque já ali não estava o cartaz que os poetas conjurados de 1900 colocaram junto à “Torre dos Panoramas” e que dizia: “proibida a passagem a uruguaios”, "en ese momento [também a mim] se me afirmó definitivamente la convicción: soy de este sitio, de esta ciudad" (Benedetti, La tregua) e encaminhei-me até a praia de Pocitos e, ali, iluminado pelo brilho metálico do Rio da Prata, com alma suspensa em memórias de leituras e milongas, fui observando aqueles passeantes montevideanos que "nacen junto a la rambla y en la rambla se mueren / y van al paraíso / y claro / el paraíso es también una rambla." (Benedetti, Los Pitucos).