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25 de dezembro de 2010

Passeantes de Dezembro



Herisau, dia de Natal de 1956. Entre faias e abetos, na ladeira que desce do Schochenberg, um homem jaz no chão confundindo-se com o deserto branco que o rodeia. A neve é o mais perfeito esconderijo. Depois de ter almoçado no sanatório, errara durante horas até ao coração do bosque, perdido. Ao longe, talvez, o toque lamentoso de um sino. A cabeça está apoiada sobre a raiz de um abeto que emerge da neve. Não há tristeza no seu rosto. Apenas a réstia de um olhar eternamente extasiado perante a neve pura, com o espanto de quem descobre, finalmente, o mais secreto dos desejos. Daqui a pouco, um grupo de crianças encontrará um corpo num bosque gelado e saberemos tratar-se de Robert Walser, o «poeta mais escondido que alguma vez existiu», como escreveu Elias Canetti. E que num nos dos seus romances, Os irmãos Tanner, pusera premonitoriamente na boca de um personagem uma elegia a Sebastião, o poeta encontrado morto na neve: «Com que nobreza escolheu a sua tumba! Jaz no meio de esplêndidos abetos verdes, cobertos pela neve. Não quero avisar ninguém. A natureza inclina-se a contemplar o seu morto, as estrelas cantam suavemente à volta da sua cabeça e as aves nocturnas grasnam: é a melhor música para alguém que não tem ouvido nem sensações».

No mesmo dia de Natal, em 1956, há cinquenta e três anos, portanto, morria o avô de W. G. Sebald - o escritor passeante através de paisagens solitárias, que morreu como o seu avô e como Walser, também, num dia Dezembro de 2002 – que tinha saído de sua casa para dar um passeio pela neve e tombou sobre ela quase à mesma hora em que o outro passeante, Robert Walser, caía, também, fulminado sobre a neve, numa paisagem de faias e abetos.

Neste Natal de 2010, recordo não os silêncios dos passeantes mortos em Dezembro, mas as palavras que nos legaram entre ruínas de um passado que remete para a totalidade do mundo. E olhando à minha volta, enquanto se fazem os preparativos para o fogo de artifício que há-de incendiar a noite da passagem do novo ano que aí vem com os seus relâmpagos e fulgores luminosos efémeros, retenho da leitura daqueles passeantes de Dezembro que partiram no mesmo ano em que eu cheguei, a sua esterilidade sentimental em relação às festividades natalícias.

Em Portimão não neva, por isso não haverá o perigo de me perder na neve no dia de Natal. Tão pouco sou um passeante através de paisagens solitárias. Já o escrevi aqui, sou antes um flâneur urbano que não se deixa bafejar pela secura do coração daqueles passeantes em relação ao Natal. Até porque, embora seja avesso a toda a retórica que transforma a época natalícia numa época do mais seco mercantilismo envolto em falsas roupagens de fraternidade e solidariedade, conforta-me a reunião da família, a exposição da minha pequena colecção presépios do mundo, a estética do fogo da lareira, os sabores, os cheiros, o aflorar do passado trazido sempre pelos mais velhos. Por isso, neste Natal continuarei a criar com os amigos e a família uma realidade distinta a partir da realidade inquietante, empobrecida, envolta em papéis cintilantes que serão rasgados no momento da troca de presentes. Porque se ainda é possível um verdadeiro espírito de Natal, ele só poderá ser encontrado se formos capazes de ver os outros no meio da bruma que anda por aí.

Aproveitar, então, o Natal, não para desaparecer na neve comoo passeante Walser, muito menos para nos perdermos nos labirintos do mercantilismo contradidório que nestes tempos de crise anda por aí, mas para, no meio de uma estética de ciprestes, pinheiros, zimbro e coloridas velas trémulas com cheiros que compoêm a paisagem doméstica destes dias, continuarmos a explorar, como passeantes de Dezembro, outras possibilidades para o mundo.

19 de outubro de 2009

Caminhos cruzados



Pergunta-se W. G. Sebald no micro-ensaio «Uma tentativa de restituição» (in Campo Santo) «quais são as relações invisíveis que determinam a nossa vida, como se estendessem os fios» entre acontecimentos distantes ditados por uma estranha lei que nos escapa. O que liga a prosa anímica do caminhante Sebald ao rasto já há muito extinto do passeante Robert Walser, mas que continua visível no papel? Onde se cruzam as suas biografias? Talvez no facto de Sebald ter vivido toda a sua infância com o avô materno, que não só tinha o hábito das grandes caminhadas como Walser, como, ainda, era muito parecido fisicamente com ele e, se não bastasse essa coincidência, ter também ele morrido na neve enquanto passeava solitário numa paisagem semelhante àquela em que Walser sucumbiu fulminado e que distava apenas cem quilómetros de Herisau e, ao que parece, no dia anterior ao do último aniversário do escritor suíço. Talvez, depois, ainda, na circunstância de ambos remeterem para uma espécie de poética da extinção; em Walser através de elegantes fantasias poéticas que vai traçando, tenuamente, a lápis no papel para melhor desaparecer, uma frase fazendo sempre esquecer a anterior; e em Sebald sedimentada em camadas de esquecimento nos escombros que ele vai escavando através de uma prosa pausada e cadenciada para melhor dar conta do desvanecimento da história. Talvez, ainda, porque, um e outro, entreviam o mundo envolto numa estranha quitetude; Walser caminhando solitário sob a luz cristalina da manhã em busca do espírito da montanha; Sebald procurando resgatar uma moral da natureza. Um e outro procurando uma cintilação qualquer no tecido puído do tempo.

Seriam estas as causualidades que levaram Sebald, em 1997, na primeira sessão do ciclo de lições que proferiu na Universidade de Zurique, a evocar o passeio de Carl Seeling com Walser, nos arredores do manicómio de Herisau, no Verão de 1943 – passeio que aquele, depois, relataria na biografia que lhe dedicou -, precisamente no mesmo dia do bombardeamento de Hamburgo descrito em História natural da destruição? «Não são casualidades – diria Sebald se lhe perguntassem sobre o que o liga a Walser – trata-se apenas de existir algures uma relação que de quando em quando cintila por entre um tecido puído».

Como também não é casualidade eu ter terminado de ler os ensaios literários de Campo Santo e me ter interrogado por não encontrar ali qualquer referência Walser – como se a sua biografia fosse tão delicada e a sua prosa tão leve que tornasse quase impossível seguir-lhe o rasto, mesmo para alguém como Sebald tão habituado em fazer incursões fantásticas nos territórios dos excêntricos cujos sedimentos vasculha nas camadas de esquecimento para onde os seus passos de caminhante solitário e de narrador interpelante o levam sempre que se dispõe a ir por aí, entre ruínas – e, agora, chegar às livrarias portuguesas um ensaio do caminhante alemão sobre o caminhante suíço - e que na tradução portuguesa dá nome ao livro - O caminhante solitário (Teorema) [traduzido de Logis in einem Landhaus, Carl Hanser Verlag, 1998], e onde Sebald vai por ali, sem mapa, perseguindo, desde o ponto de vista da fugacidade – a sua e a de Walser -, a prosa dançante de repente levantada como uma poeira trágica do tempo incapaz de escapar ao seu destino de, uma e outra vez, continuar a ser lida por Sebald e, agora que Sebald também já cá não está, por todos aqueles que se adentram numa literatura de consternação.

16 de outubro de 2009

Desaparecidos em trânsito



Desse caminhante solitário que ocupa um lugar muito particular na minha biblioteca de quarto escuro, W. G. Sebald, chega, agora, às livrarias portuguesas, Logis in einem Landhaus (1998) [Hospedagem numa casa de campo] que na edição da Teorema se apresenta com o título de um dos ensaios que integra o livro, O caminhante solitário, belíssima homenagem a outro caminhante solitário, Roberto Walser - seu vizinho no meu quarto escuro, ambos escritores sem qualidades que partiram em trânsito deste mundo, Sebald numa curva de uma estrada de Norwich, num dia de Dezembro de 2001, e Walser, também num dia de Dezembro de 1956, durante um passeio pela neve nos arredores do manicómio de Herisau onde se refugiara para desaparecer – a quem Sebald descreve como um ente querido que aos poucos se vai dissolvendo no ar «suavemente e sem ruído até um reino mais livre», ou como um familiar próximo que lhe recorda o seu avô Josef Egelhofer: «Walser sempre me acompanhou em todos os caminhos. Apenas necessito suspender um dia de trabalho quotidiano, para logo ver meu ao lado, nalgum lugar, [a sua] figura inconfundível […] olhando à sua volta».

6 de agosto de 2009

No território do lápis


Herisau, dia de Natal de 1956. Entre faias e abetos, na ladeira que desce do Schochenberg, um homem jaz no chão, confundindo-se com o deserto branco que o rodeia. A neve é o mais perfeito esconderijo. Antes, depois de ter almoçado no sanatório, errara durante horas até ao coração do bosque, perdido. Ao longe, talvez, o toque lamentoso de um sino. A cabeça está apoiada sobre a raíz de um abeto que emerge da neve. Não há tristeza no seu rosto. Apenas uma réstia de um olhar eternamente extasiado perante a neve pura, com o espanto de quem descobre, finalmente, o mais secreto dos desejos. Daqui a pouco, um grupo de crianças encontrará um corpo num bosque gelado e saberemos tratar-se de Robert Walser, o «poeta mais escondido que alguma vez existiu», como escreveu Elias Canetti. E que num nos dos seus romances, Os irmãos Tanner, pusera premonitoriamente na boca de um personagem uma elegia a Sebastião, o poeta encontrado morto na neve: «Com que nobreza escolheu a sua tumba! Jaz no meio de esplêndidos abetos verdes, cobertos pela neve. Não quero avisar ninguém. A natureza inclina-se a contemplar o seu morto, as estrelas cantam suavemente à volta da sua cabeça e as aves nocturnas grasnam: é a melhor música para alguém que não tem ouvido nem sensações».

Conta Max Brod que um dia Kafka apareceu em sua casa para dar conta do seu entusiasmo pelo livro Jakob von Gunten, de Robert Walser. E conta, ainda, como Kafka leu, depois, em voz alta, fragmentos desse livro, rindo às gargalhadas, com o mesmo riso de quando leu O processo aos seus amigos. A irmandade entre Kafka e Walser seria comentada por Robert Musil como «um caso particular do modelo de Walser». Em Jakob von Gunten [tal como A rosa, O salteador e O ajudante, editados em Portugal pela Relógio d´Água], o protagonista é aluno do Instituto Benjamenta, inventado Walser, uma escola para formar criados. Em vez de formar a personalidade dos alunos, o instituto apaga-a. O principal obstáculo a ultrapassar é o da própria consciência. Por isso, praticam a repetição, em obediência mimética. Obedecem a toda e qualquer ordem para não pensar. O seu objectivo é apagar-se. Jakob pensa: «Se me afundo e me desmorono, o que é que se perderá? Um zero». Li de um só folgo este romance-diário com uma prosa despojada de clímax narrativo e densidade psicológica, uma espécie de emanação lúdica segregada pela sucessão de derivas mentais e livre associação discursiva, mas também com um lado sombrio e funesto, delicadamente omnipresente. «Uma história singularmente delicada», segundo Walter Benjamin, em que Jacob descreve os seus colegas, passeia pela cidade, observa o autoritário director e a sua irmã Lisa, penetrando no mistério das suas vidas, numa experiência, ao mesmo tempo, real e onírica que nos faz lembrar, precisamente, Kafka que provavelmente «teria sido ligeiramente diferente se não tivesse, ele próprio, lido Robert Walser», como escreveu Enrique Vila-Matas. «Um escritor verdadeiramente magnífico que nos parte o coração», segundo Susan Sontag, cuja obra desdobrada em quinze livros é «um estranho e fascinante espelho da vida». De uma vida que foi um percurso de incompreensão, de penúria, de dor, mas da qual nunca se queixa nos seus livros em que um niilismo aparente é atravessado por uma ingenuidade espontânea.

«A singularidade de Robert Walser como escritor», escreveu Canetti, «consiste em nunca falar de motivações. É o mais oculto dos escritores. Está sempre bem, sempre encantado com tudo», cultivando a insignificância da qual, achava, poderia extrair algo «vivificante e purificador». Por isso, entre os seus múltiplos empregos de subalterno, trabalhou como empregado bancário, escriturário, empregado numa livraria, operário numa fábrica de máquinas de costura e, finalmente, mordomo numa castelo na Silésia. Mas o seu único capital era a sua bonita caligrafia, minuciosa e precisa. Todas as noites, depois do trabalho, num pequeno quarto de pensão, Walser continuava a escrever. Em vez de ordens de compra, cartas comerciais ou registos contabilísticos, escrevia peças de teatro, poemas, contos, romances com uma micrografia que cada vez se aproximava mais da extinção. Uma escrita em que as palavras eram a corrente natural da sua imaginação, com paixão total, onírica. Às vezes, ocultava-se em Zurique, na sua «Câmara de Escrita para Desocupados», e aí sob a luz crepuscular de um candeeiro de petróleo deixava que a sua mão indecisa o conduzisse pelos territórios do lápis, cujo traço o empurrava lentamente para o desaparecimento, para o eclipse, mimetizando-se para não ser descoberto.

Numa espécie de vagabundagem estilística, indecisa, associativa, feita de ligações imprevistas e ricochetes - «Caneta, se não me ajudas, não sei como avançar» -, Walser devolve a escrita à sua precariedade, enquanto ele próprio se vai consumindo escrevendo, «na sua busca de libertação da consciência de Deus, do pensamento, e de ele mesmo», como escreveu Vila-Matas, em Doutor Pasavento. À semelhança de Hölderlin que passou os últimos trinta anos da sua vida encerrado nas águas-furtadas do carpinteiro Zimmer, em Tübingen, praticando a ilegibilidade, também Walser se dá como desaparecido, passando os últimos vinte e oito anos da sua vida num «manicómio, o mosteiro da época moderna», primeiro em Waldau, depois em Herisau, escrevendo em tudo o que encontrava à mão - envelopes usados, cartões de visita, formulários oficiais, margens dos jornais, farrapos de papel - numa caligrafia microscópica, secreta, uma espécie de retratos de momento, esse género literário tão apreciado por Witold Gombrowicz, os 526 microgramas que só muitos anos depois haveriam de ser decifrados e publicados sob o mais walseriano dos títulos, Território do lápis.

17 de julho de 2009

Projecto para uma roda de leitura perigosa



Confessa Roberto Bolaño em Entre parêntesis [Anagrama) que é «muito mais feliz lendo que escrevendo». E eu - que também me confesso esse leitor feliz e dilatório, não o leitor interactivo dos livros da moda, mas o leitor iterativo, assediado pelos labirintos de tinta embebida nos livros da minha biblioteca de quarto escuro - imagino-me, momentaneamente, o engenheiro Agostino Ramelli carregando no pedal e volto a fazer girar a sua Roda da Leitura [cf. Agostino Ramelli: projecto para uma roda de leitura. Paris, 1588] com sete livros de escritores sem qualidades cuja leitura proponho para este Verão.

São sete livros perigosos que compõem uma pequena biblioteca giratória, intensiva e portável, que retiro de uma prateleira sombria e que, aqui, proponho aos leitores subversivos e relutantes que neste Verão arrisquem - ao invés de se deixarem atrair pela superfície brilhante das palavras - atravessar o bosque escuro e sem nome e, por momentos, «viverem errando / na penumbra dos bosques / com a novela perigosa», como se pode ler nuns versos que Pushkin escreveu. Sete livros para serem, talvez, relidos como se os estivéssemos a ler sem que nunca os tivéssemos lido. Porque, como poderia ter dito Heraclito, nunca mergulhamos no mesmo livro duas vezes.

Que vasos comunicantes entre estes livros? Desde logo, o facto de partilharem, na minha biblioteca de quarto escuro, o canto mais sombrio. E também a circunstância dos seus autores pertencerem a uma certa geografia, a da Mitteleurope que mais do que uma condição espacial corresponde, sobretudo, a uma certa ideia de literatura. Depois, porque são autores que ocultaram a sua biografia para melhor poderem afirmar a sua obra. E, ainda, porque todos habitaram de uma forma ou de outra «as regiões do destino onde reina a solidão». Finalmente, porque talvez encaixem na categoria de livros a que Robert Walser se referia quando escreveu em O Salteador (Relógio de Água, 2003): «Às pessoas saudáveis faço o seguinte apelo: não teimem em ler apenas esses livros saudáveis, travem um conhecimento mais estreito, também, com a literatura dita doentia, que vos transmitirá, decerto, uma cultura edificante. As pessoas saudáveis deviam sempre expor-se um pouco ao perigo. Senão, com mil raios, para que serve ser saudável?»

Talvez a vida destes escritores tenha sido «doentia», mas não os seus livros que parecem duplicar a vida que não tiveram inventando outras vidas. «Um romance é a vida secreta de um autor. O obscuro irmão gémeo de um homem», escreveu Faulkner. E não será isso a literatura? Inventar outra vida, inventar um duplo. A dissidência de si mesmo, então, levada a cabo por escritores que, contra todas as aparências, adoptaram os versos de Roberto Juarroz: «Às vezes parece/ que estamos no centro da festa/ Contudo/ no centro da festa não há nada/ No centro da festa está o vazio/ Mas no centro do vazio há outra festa» (Poesía Vertical). E que, por isso, não quereriam ver-se confundidos com nihilistas.

Nem eles nem este leitor sem qualidades que como um bibliotecário-oleiro põe agora a girar esta roda de leitura perigosa e vos propõe as seguintes notas de rodapé:

1. O homem sem qualidades, Robert Musil [1921] (D. Quixote, 2007: um livro sem as «qualidades» dos cânones literários da época. Um livro insuportável devido à sua «monstruosidade» literária que estilhaçará as fronteiras do género para desagrilhoar o humano na tentativa utópica de alcançar a totalidade do mundo;
2. Jacob von Gunten, Robert Walser [1909] (Assírio & Alvim, 2005): o fascinante livro do extravagante escritor suíço precursor de Kafka que escrevia lápis para melhor poder ausentar-se;
3. O castelo, Franz Kafka [1926] (Relógio d´Água, 1999)): um romance inacabado sobre a burocracia institucionalizada que triunfa sobre os homens sem qualidades;
4. As lojas de canela, Bruno Schulz [1933] (Assírio & Alvim, 1987): um livro de contos que transfiguram a pequena cidade de Drohobycz numa espécie de Macondo polaca onde se respira o ardor intenso da fantasia e das metamorfoses contra a colmeia de nevroses e de loucura onde o autor se encontra encerrado;
5. Fuga sem fim, Joseph Roth, [1927] (Difel, 1985): um livro que narra a viagem de errática de um desaparecido, na sua própria viagem de ocultação enquanto autor;
6. Diario, Witold Gombrowicz, [1968)] (Seix Barral, 2005): o diário do escritor polaco escrito durante os vinte e quatro anos que passou na Argentina onde nos são oferecidos aqueles instantes de deslumbramento que Gombrowicz designou por retratos de momento;
7. Os anéis de Saturno, Sebald, W. G. [1995] (Teorema, 2006): um livro onde o passeante Sebald contrapõe à obsessão moderna pelo esquecimento o imperativo redentor da memória, capaz, ainda, de deixar gravado no papel um rasto, que não se extinguirá jamais.

17 de janeiro de 2008

Uma vida crepuscular


A duração das minhas viagens de avião mede-se pelo número de páginas dos livros que escolho para ler durante o trajecto. Umas vezes, uma viagem nocturna - de ida e volta - pode durar as 609 páginas de Los detectives salvajes, de Roberto Bolaño [Anagrama, 2006] que me levaram desde Lisboa via Zurique até Santiago do Chile e regresso, descontando os «sueños, no pesadillas, sueños musicales, sueños de preguntas transparentes, sueños de aviones esbeltos y seguros que [cruzam] Latinoamerica de punta a punta por brillante y frío cielo azul». Outras vezes, apenas as 172 páginas da edição de bolso de Mes amis, de Emmanuel Bove [Éditions Note bene, 2002], que dura a viagem entre Lisboa a Paris e volta, sem contar com o sono matinal, em ambos os trajectos, sobre os Pirinéus, interrompido pelas hospedeiras da Aigle Azur a perguntarem-me se queria café ou chá.

Vou a Paris, então, numa viagem de 172 páginas, para dobrar o ano em boa companhia, levando comigo Les amis que Emmanuel Bove [1898-1945] escreveu em 1924 e a antecipação de errâncias por uma cidade que já não existe, embora a deambulação solitária do protagonista aconteça num mapa que me é sempre familiar: «J´aime errer au bord de la Seine. Les docks, les bassins, les écluses me font songer à quelque port lointain où  je voudrais habiter». Também eu, em Paris, gosto de errar ao longo dos cais do Sena e para lá me leva este voo de 172 páginas. Vou, acompanhado, ao encontro de amigos que vão estar à minha espera no aeroporto, ao contrário do que sucede a Victor Bâton, o alter-ego de Bove que, igual a um vagabundo solitário, se passeia pelas ruas cinzentas de Paris com uma obsessão boviana pela amizade que vai falhando como se tal sortilégio lhe fosse para sempre vedado: «La solitude me pèse. J´aimerais à avoir un ami, un véritable ami, ou bien une maîtresse à qui je confierais mes peines».

E à medida que o avião avança, este Bove crepuscular, passeante sem escapatória de ruelas becos e parisienses que leio pela primeira vez - e que me foi oferecido por Enrique Vila-Matas que mo apresentou logo na capa de Doutor Pasavento, numa fotografia tirada no Jardin du Luxembourg onde aparece com a sua filha Nora, de sobretudo escuro e chapéu  -, vai-se parecendo cada vez mais com o passeante Robert Walser, só que Bove mais solitário que aquele, porque - ao contrário do escritor suíço que aos domingos dava longas caminhadas pelos arredores do sanatório de Herisau na companhia do seu amigo Carl Seeling - falhou sempre a sua busca obsessiva de amizade.

Bove, o Walser de Paris, portanto, sem «point d´amis», perdido no meio da chusma humana dos boulevards que passa sem o ver, mas que lhe dá a verdadeira medida da sua solidão. Emmanuel Bobovnikoff, Bove, o inventor da auto-ficção naturalista, descendo a rue Saint-Jacques desde o seu hotel no número 298 - que já não existe -, metendo depois pela rue Soufflot, para ser detido mais adiante pela polícia de Clemenceau. Bove, ocioso, sob a máscara de Bâton: «Un homme comme moi, qui ne travaille pas, que ne veut pas travailler, sera toujours détesté. J´étais dans cette maison d´ouvrier, le fou, qu´au fond, tous auraient voulu être. J´étais celui qui se privait de viande, de cinéma, de laine, pour être libre. J´étais celui qui, sans le savoir, rappelait chaque jour aux gens leur condition misérable. On ne m´a pas pardonné d´être libre et de ne point redouter la misère». Bove, pelos passos de Bâton, errando livremente pela rue de Seine, pela rue Gît le Coeur, que levam ao parapeito do Sena.

Ou Bove, «o Walser da rue Vaneau», como pensou Vila-Matas, por aquele ali ter vivido - teria? - na mais estrita solidão, durante o ano de 1928, no rez de chaussé do mesmo prédio onde vivia também André Gide. Sempre la bonne rumeur - diria Bove - da rue Vaneau, que cabe na minha estante dentro de um livro de Vila-Matas, nela cabendo também o mundo inteiro. E por isso, enquanto vou folheando este relógio de páginas que escolhi para medir o tempo deste voo, decido que num qualquer dia desta semana parisiense terei de ir à rue Vaneau, onde para além de Gide e Bove viveram ainda Marx e Saint- Éxupéry e se alojam, hoje, no Hotel de Suède, os escritores do editor Christian Bourgois, logo Lobo Antunes incluído, nas suas passagens por Paris, o que faz dessa rua um estranho tecido de destinos e de obras, a cujo significado só poderá aceder quem «viva já nas costuras do ruído mundano». As mesmas costuras que depois de ler Doutor Pasavento haveriam de me levar à estrada de Damasco. Mas isso são outras imbricações que apenas os que vêem neste blogue uma modesta tentativa de auto-ficção poderão, talvez, descortinar. Já a comparação de Bove com Walser que aqui se foi intrometendo me parece mais verosímil. Se não, digam-me lá se esta possibilidade de apagamento do sujeito na rua não faz lembrar Walser? «J´errai dans les rues, l´âme joyeuse et vivant seule, sans les yeux».

E sobre Bove, escreveu Peter Handke, num dia de chuva, em Petit-Clamart, nos arredores de Paris, uma carta-prefácio que seria enviada, depois, desde os correios de Bièvre para Jean-Luc Bitton, co-autor (com Raymond Cousse) da biografia [La vie comme une ombre, Le Castor Astral], «[qu´il] devrait devenir le patron-saint des écrivains (purs), plus que  Kafka, et de la même façon que Anton Tchecov et Francis Scott Fitzgerald». E aqui a imbricação entre a realidade de estar agora num avião que avança para Paris, a ficção do livro que vou lendo e um prefácio à biografia do autor, escrito e enviado, precisamente, da mesma localidade onde irei ficar nesta semana parisiense, Bièvre, o que mais uma vez vem mostrar que as coincidências nunca são acidentais, e que até numa crónica se podem «plasmar as estranhas combinações estranhas da vida», como disse Gerard de Nerval que não me consta que tenha andado por Bièvre, mas que também era dado a errâncias parisienses. Assim, terei escolhido Bove para ler no avião porque vinha para ficar em Bièvre ou ficarei em Bièvre porque trouxe comigo Bove que me levou a Jean-Luc Bitton que me levou a Peter Handke que escreveu um prefácio bièvrois para a biografia de Bove? O que sei, no final deste romance, é que voltarei a errar por aí com este Emmanuel Bove crepuscular.

10 de dezembro de 2007

Escrita vegetal




Leio traçando a lápis, simultaneamente, linhas de fuga e de intromissão sob os labirintos de tinta embebidos das páginas dos livros, como diria Walter Benjamin. Deixo, assim, a presença fragmentária da minha mão no corpo do texto, como se cada página fosse um território por medir, por interpretar, à espera do rasto vegetal - madeira e carvão - que vou deixando no chão da escrita, também ele vegetal - papel -, incitado (e excitado) pela leitura que, lentamente umas vezes, sofregamente outras, avança através dos labirintos de tinta impressa. Aqui e acolá, escapo-me furtivamente para as margens, território virgem da página onde deixo impressões de leitura: anotações, remissões, indexações - espelhos quebrados do texto onde mais tarde regressarei para me rever como co-autor de um livro que não escrevi. Então, como o Agrimensor de Kafka [in O Castelo], também eu ando de margem em margem, e passo de uma anotação para outra, de um comentário para outro, adentrando-me nos trilhos vegetais que fui abrindo durante a primeira leitura.

Devo, portanto, ao lápis essa possibilidade infinita de não mais me perder nos labirintos de tinta embebidos, impressos, nas páginas dos livros. O lápis, então, como ferramenta preparadora de outros textos que hão-de vir em forma de pequeno ensaio ou de crónica de momento que convoca a paráfrase, a citação, preparadas transitoriamente pelo trilhar a lápis do pensamento que toda a leitura incita (e excita). Como esta crónica breve sobre a escrita a lápis que nasce da anotação vegetal o fabricante de lápis, na margem da página 17 de Fuga sem fim, de Joseph Roth [Acantilado, 2003]; ou a referência ao agrimensor K. suscitada por uma outra anotação à página 156 de O mal de Montano, de Enrique Vila-Matas [Teorema, 2002]. Sublinhar, anotar a lápis, então, não para desaparecer como pretendia Robert Walser com os seus microgramas, mas para abrir afluentes vegetais que hão-de embeber, depois, a tinta, os cadernos moleskine por vir.

Nos cadernos moleskine prefiro escrever a tinta, com caneta de aparo, uma art pen que me que me transforma momentaneamente no escritor húngaro Dezsó Kosztolány que num café, em Budapeste, enquanto escrevia Cotovia [Dom Quixote, 2006], em vez de pedir ao empregado um café, pedia tinta: - « Garçon - dizia - tinta, s´il vous plaît!».

A caneta de aparo como extensão da mão, do corpo, um fio de tinta, ziguezagueante, a embeber a página, com cheiro, e mudando de cor no rasto das oscilações da alma, deitando depois o pensamento no chão do caderno onde desaguam os afluentes vegetais que brotam das margens dos livros lidos. Como evocaria Kosztolány, primeiro a tinta e, depois, no computador, se como um agrimensor literário não tivesse antes deixado uma anotação vegetal na margem de Cotovia?

E só depois utilizo o computador. Pelas suas infinitas possibilidades de permuta e de substituição de palavras, de frases e de períodos; de cristalização sintáctica e morfológica da escrita. Enfim, de estabilização racional do pensamento ondulante no espelho quebrado do monitor onde vou colando citações, fragmentos, ecos de leituras a que acrescento frases e ideias próprias que me vão sendo incitadas  - e excitadas - pelo fio de anotações que foi brotando, primeiro a lápis e depois a tinta, como uma respiração de ideias fragmentárias no chão do caderno moleskine, para se cristalizar, finalmente, numa crónica autónoma, pessoal, mas onde se escutará sempre o eco inaugural da leitura.

 [Ilustração ao alto, de Rachael Caiano©]

9 de agosto de 2007

No Bairro portátil do senhor Tavares (IV): periferias


Por analogia com o seu homónimo que procurava o desaparecimento, o eclipse, este Walser [O Senhor Walser, Gonçalo M. Tavares, Caminho, 2006] é mais dado ao recato que os primeiros povoadores do Bairro. Por isso, manda construir a sua casa «a uns bons quilómetros do bairro mais próximo», no que se assemelha ao Walser-outro, também ele instalado numa casa nos arredores de Herisau, durante vinte e oito anos, apenas saindo, aos domingos, para dar longos passeios no bosque circundante, com o seu amigo e editor Carl Seeling. Eis, agora, então, o Senhor Walser, na sua nova casa: «Mal se abre a porta de sua casa — sente ele — entra-se noutro mundo. Como se não fosse apenas um movimento físico no espaço — dois passos que se dão — mas também uma deslocação — bem mais intensa — no tempo. [...] Quando fechava a porta atrás de si, Walser sentia virar as costas à inumana bestialidade (de que saíra, é certo, há biliões de anos atrás, um ser dotado de uma inteligência invulgar — esse construtor solitário que era o Homem) e entrar em cheio nos efeitos que essa ruptura entre a humanidade e a restante natureza provocara; uma casa no meio da floresta, eis uma conquista da racionalidade absoluta” (p. 13). Todo o seu mundo está agora ali dentro daquela casa, fora do mundo, onde a «racionalidade absoluta» tudo incorpora. Por isso, Walser, ao contrário dos outros senhores, não se enreda em pensamentos, em raciocínios que desembocam quase sempre no absurdo. E a sua ingenuidade não o leva a agir, mesmo quando o mundo exterior invade a sua casa contra a «racionalidade absoluta» ou por causa dela. Mesmo nessa situação, limita-se a esperar e a ter expectativas. «Não estou aqui para escrever, mas para enlouquecer», escreveu Robert Walser no mais curto micrograma de sempre. «Não estou aqui para agir, mas para ter expectativas», escreveria o Senhor Walser se fosse dado à escrita.

13 de julho de 2007

Projecto para uma roda de leitura perigosa

Intrometo-me no book crossing que anda por aí e atrevo-me a propor alguns livros para serem postos a  girar, este Verão, numa Roda da Leitura como a que a imagem acima reproduz [cf. Agostino Ramelli: projecto para uma roda de leitura. Paris, 1588]. Basta colocá-los na roda, carregar no pedal e, depois, ir lendo ou relendo os cinco livros que aqui recomendo contra a rasura das novidades. Cinco livros que fazem uma pequena biblioteca giratória, intensiva e transportável, escolhida para levar para férias, com o mar do sul ao fundo, procurando novos caminhos bifurcados em páginas talvez já lidas mas sempre à espera de serem de novo abertas, manipuladas, perseguidas por gente que acredita que nelas se espelham mundos. Que cumplicidades tecem, então, estes livros entre si? Desde logo, o facto de partilharem, na minha biblioteca pessoal, a mesma prateleira. E também a circunstância dos seus autores pertencerem a uma certa geografia, a da Mitteleurope que mais do que uma condição espacial corresponde, sobretudo, a uma certa ideia de literatura. Depois, porque são autores que ocultam a sua biografia para melhor poderem afirmar a sua obra. E, ainda, porque todos  habitaram de uma forma ou de outra «as regiões do destino onde reina a solidão».

Finalmente, porque talvez encaixem na categoria de livros a que Robert Walser se referia quando escreveu n´O Salteador (Relógio d´Água, 2003): «Às pessoas saudáveis faço o seguinte apelo: não teimem em ler apenas esses livros saudáveis, travem um conhecimento mais estreito, também, com a literatura dita doentia, que vos transmitirá, decerto, uma cultura edificante. As pessoas saudáveis deviam sempre expor-se um pouco ao perigo. Senão, com mil raios, para que serve ser saudável?»

Talvez a vida destes escritores tenha sido «doentia», mas não os seus livros que parecem substituir a vida que não tiveram por uma espécie de duplicação do mundo. E não será, afinal, esta a vocação de toda a literatura?

1. Robert Musil, As perturbações do  Jovem Törless [1906] (Dom Quixote, 2006), uma quase autobiografia da juventude do autor, uma espécie de Werther pessoal e uma «necrologia profética»;

2. Robert Walser, Jacob von Gunten [1909] (Assírio e Alvim, 2005), o extravagante escritor suíço que escrevia lápis para melhor poder ausentar-se;

3. Kafka, O desaparecido [1927] (Relógio d´Água, 2004), onde se persegue o sonho de um emigrante preso numa engrenagem donde cada vez mais é impossível escapar;

4. Bruno Schulz, As Lojas de Canela [1933] (Assírio e Alvim, 1987), cujos contos transfiguram a pequena cidade de Drohobycz numa espécie de Macondo polaca onde se respira o ardor intenso da fantasia e das metamorfoses  contra a colmeia de nevroses e de loucura onde o autor se encontra encerrado;

 5. Joseph Roth, A Lenda do Santo Bebedor [1939] (Assírio e Alvim, 1997), outro polaco, da Galitzia, que aqui narra a vida e a «morte suave e bela» do seu Santo Bebedor, tão contrária à sua própria morte.

[Deixo o desafio a todos os que por aqui passarem para pôrem a andar nos comentários a sua Roda de Leitura]

20 de junho de 2007

A retórica do eclipse

Sou o Doutor Pasavento, assim se apresentou Enrique Vila-Matas, na Póvoa de Varzim/Correntes d´Escrita. Mas em qual Pasavento encarnou o escritor que ao longo do texto parece fundir-se em múltiplos sujeitos - Pasavento, Ingravallo, Pynchon - num processo narrativo em que o sujeito não é mais do que uma construção temporal e a identidade algo que o autor constrói e destrói permanentemente: havia tantos Pasaventos em palco que seria impossível localizar-me, perder-me-ia entre eles (pág. 273). Ou evocando, ainda, a construção heteronímica de Pessoa, também ele um escritor desaparecido de si próprio que reaparece, depois, multiplicado, nas suas máscaras. Trata-se de um processo narrativo que recorre a uma espécie de hipertextualidade circular em que a ocasionalidade de um encontro, por insignificante que seja, combina-se com o seguinte numa espécie de vasos comunicantes invisíveis, que interligam realidade e ficção que aqui não são mais entidades diferenciadas. De encontro em encontro, tal como Pessoa, também o meta-narrador-autor do Doutor Pasavento se desdobra em várias personalidades, vários lugares - Madrid, Sevilha, Nápoles e a fictícia Lokunowo -, para regressar sempre à enigmática rua Vaneau, em Paris, onde viveu Marx, e onde se cruza com outro escritor português, António Lobo Antunes, sem nunca, contudo, trocar a sua profissão de psiquiatra e vago escritor, mas inventando-lhes outras genealogias. Neste projecto de desaparecimento, enquanto o escritor ortónimo se desvanece, outros Pasaventos emergem  projectando as múltiplas personalidades de Vila-Matas (como ele próprio o confessaria em entrevista publicada recentemente no Notícias Magazine), sejam autobiográficas sejam ficcionais, reconstruídas, isto é, afectadas pelo seu labor literário. E por trágica ironia do destino, não viria, o próprio Vila-Matas, a estar quase a desaparecer por motivo de doença - o que levaria ao extremo a sua identificação enquanto autor com as suas personagens, vítimas do síndroma de Bartebly -, para renascer, diferente, noutro Vila-Matas herdeiro do Doutor Pasavento, como o próprio viria a confessar?


O personagem de Vila-Matas empreenderá uma viagem metaliterária de ocultação, hesitando constantemente entre o desejo de ser esquecido e a resistência a sê-lo. Se em Montaigne - que inventou o ensaio, esse género literário que, com o tempo, acabaria por se ligar à construção da subjectividade moderna -, convocado logo no início do livro, como que a querer afirmar outra dissolução - a do romance no ensaio -, o objectivo era o desejo de construção da sua identidade através do ensaio, pelo contrário, o que fascina em Pasavento é esse projecto inverso de desaparecimento do sujeito através da escrita, traduzido no acto de escrever a lápis como processo de apagamento progressivo da própria identidade: De repente, decidi que devia deixar-me de rodeios e desaparecer eu mesmo. Só que Pasavento experimenta uma contradição insanável ao afirmar que na história da desaparição do sujeito moderno, a paixão por desaparecer é ao mesmo tempo um desejo de afirmação do eu. Por isso, o escritor-psiquiatra debater-se-á no paradoxo insolúvel de estar e não estar sempre em cena. Donde vem essa tua paixão por desapareceres? É a pergunta repetida que institui o tema desta espécie de meta-romance-ensaio reinventado por Laurence Sterne a partir de Montaigne: Sterne fascinava-me, com esse romance que quase não parecia um romance mas sim um ensaio sobre a vida, um ensaio tecido com um fio ténue de narração, cheio de monólogos onde as recordações reais ocupavam muitas vezes o lugar dos acontecimentos fingidos, imaginados ou inventados.


Assim enuncia o autor, logo nas primeiras páginas do texto, o seu propósito moral, o desaparecimento, e o método literário a seguir, o meta- romance-ensaio. Paradoxalmente, vamos, contudo, percebendo que o discurso do apagamento do sujeito encerra, afinal, uma tentativa de afirmação do autor através da literatura, cuja essência é escapar a qualquer vontade de estabilização e de controlo. Neste exercício de montagem literária, portanto, em que se convoca a figura ficcional do eclipse do sujeito, levada ao extremo de reflectir, a partir de Maurice Blanchot, sobre o desaparecimento da própria literatura, ou sobre o grau zero do autor - que existiria apenas no universo da criação literária, isto é, sem biografia, nem reconhecimento -, o que Vila-Matas procura, afinal, é fugir, como se verá adiante, ao controlo institucional e mundano sobre si próprio enquanto autor. Ironicamente, a Doutor Pasavento seria atribuído o Prémio para o Melhor Romance publicado em Espanha em 2006 e o Prémio da Real Academia Espanhola, não escapando assim, o seu autor, a todas as mundanidades que acompanham esse reconhecimento.: Escrever para ser sobretudo fotografado, amargo destino (pág. 61). Logo, a ocultação como projecto impossível, porque, independentemente da vontade, a literatura convoca sempre a figura do autor,  sobretudo quando este utiliza a subjectividade ensaística que recusa a neutralidade aparente da terceira pessoa, como é o caso neste meta-romance-ensaio de contornos biográficos, o que, ainda, o torna mais paradoxal, face ao projecto de desaparecimento anunciado e enunciado desde as primeiras páginas e para o qual são chamados como referências literárias, sobretudo Robert Walser e W.G. Sebald, autores que remetem para uma espécie de poética da extinção, da consternação do escritor ao ver que tudo à sua volta se desumaniza ou desaparece e que inclusive a própria História se desvanece.


Esta afectação ficcional, mesmo que confundida com a realidade, evoca, então, uma outra figura pessoana, a do fingimento, o que nos conduz a outra pergunta: será que este eclipse vilamatiano não é mais do que um fingimento para que o autor possa fechar a sua trilogia metaliterária (O mal de Montano, Bartebly & Companhia e Doutor Pasavento) onde reflecte sobre os mecanismos da criação literária através de um escrita culta, lúdica e irónica, em que partilha com Borges essa busca do leitor inteligente e cúmplice para quem a literatura é algo que não se encerra na teoria dos géneros?


E porque ligar essa reflexão metaliterária à ocultação do sujeito no manicómio? O que atrai Pasavento ao manicómio de Herisau, a sua Patagónia pessoal? E a outros manicómios? Primeiro, na evocação do hospital Miguel Bombarda, em Lisboa, onde António Lobo Antunes escreve em formulários de prescrição médica; depois, no lar para loucos em Nápoles, onde Morante escreve microtextos; e, finalmente, em Herisau. Com uma frase de Robert Walser, internado no manicómio de Herisau, Pasavento constrói o microtexto mais curto da história da literatura: não estou aqui para escrever, mas para enlouquecer. É que este romance-ensaio é também uma contínua reflexão sobre a loucura como forma de desaparecimento, sobre a relação entre a loucura e a criação artística e, como afirmou Canetti, como fuga possível para os escritores cansados de habitar esse circo de vaidades e vanidades que é muitas vezes a mundanidade literária, confirmada por Pasavento ao afirmar que Robert Walser não estava louco, mas que simplesmente tinha decidido viver tranquilo no manicómio, imitando a mesma escolha dos supostamente loucos Holderlin, Nietzsche, Artaud que não o eram, mas sim excêntricos discursos literários que escolheram um modo de se comunicar pouco comum, mais lúcido provavelmente (pág. 181). O que é, então, o manicómio para Pasavento? Enquanto refúgio evoca a concepção de manicómio de Foucault como simulacro do mundo exterior e, ao mesmo tempo, do louco como autor consciente do seu próprio desaparecimento de um mundo irracional que tende a asfixiá-lo. Daí, o desejo de desaparecer, eclipsar-se para não ter que viver no meio das desesperantes intrigas do mundo literário. 


No final, fica um meta-romance-ensaio onde se respira a mesma ironia shandiana dos livros anteriores de Vila-Matas, agora utilizando um estilo mais sóbrio, menos impertinente, através do qual reflecte sobre a desconstrução do autor, concluindo a sua trilogia metaliterária, e ao mesmo tempo, nos convida a viajar, seja ao fim do mundo, a uma Patagónia imaginada, seja às regiões inferiores de Robert Walser, que escrevia a lápis para estar mais perto do desaparecimento, do eclipse (pág. 14), de Emmanuel Bove, que parecia estar sempre à espera que o esquecessem (pág. 339), de Thomas Pynchon, que se esconde em Nova Iorque (pág. 353), de Kafka, que queria era continuar a existir sem ser incomodado (pág. 271), de Salinger, o escritor que vive em paz, oculto (pág. 61), de W. G. Sebald, para quem o desaparecimento sempre existiu (pág. 40), de Joseph Roth, que narra a viagem de errática de um desaparecido (pág. 80), na sua própria viagem de ocultação enquanto autor.

16 de maio de 2007

No bairro portátil do Senhor Tavares: desaparecido em trânsito

O Senhor Walser é o mais recente inquilino do Bairro que Gonçalves M. Tavares vem povoando, correspondendo a um programa de «alojamento» ficcional de contornos lúdicos com avatares filosóficos de escritores famosos. Trata-se agora da saga doméstica do Senhor Walser, numa clara evocação do escritor suíço Roberto Walser que cultivou um estilo de vida e uma escrita que visava a ocultação. Tal como Robert Walser, que passou os últimos vinte e oito anos da sua vida no manicómio de Herisau, junto à floresta de Appenzel, também o senhor desta história procura ocultar-se numa casa no meio da floresta, onde espera criar um espaço de «conquista da racionalidade absoluta» contra o caos circundante. Contudo, ironicamente, o caos acabará por se infiltrar no interior da habitação levado pelos trabalhadores que no dia da inauguração da casa, supostamente, viriam pôr tudo em ordem.

26 de abril de 2007

Ensaio sobre a loucura



Há dias, contava-me Gonçalo M. Tavares que num encontro com leitores alguém teria dito que ele era louco, pois só um louco escreveria histórias como as dos seus livros negros. Com a lucidez que se lhe conhece, Gonçalo esclareceu que ele era um e quem escreve-narra nos seus romances é um outro que não se confunde com o autor. Ora se isto é verdade no campo da construção romanesca em que narrador e personagens são, como dizia Barthes, pessoas de papel, já não o será no campo das ideias que atravessam os seus livros sempre escritos num registo teórico, ora reflexivo, como acontece nos livros negros que vão povoando O Reino, ora lúdico, como na série o Bairro.

Gonçalo M. Tavares não constrói uma biografia de ocultação do sujeito atrás da sua obra, nem pratica o desaparecimento do autor como, por exemplo, Enrique Vila-Matas, um dos seus escritores preferidos, mas isso não o impede de ir construindo a mais profícua genealogia literária contemporânea que vai povoando de inquilinos literários o seu Bairro (os senhores Valéry, Brecht, Henri, Juarroz, Kraus, Calvino, Walser... numa clara evocação, sobretudo, dos ambientes desses escritores, que tanto podem ser lidos pelo mais cerebral dos leitores como por crianças), nem de nos arrastar pelas paisagens mais sombrias da natureza humana, pelo Reino negro da violência, da crueldade, da guerra [Um homem Klaus Klump (2003); A máquina de Joseph Walser (2004); Jerusalém (2005).

Confesso que cheguei tarde a Gonçalo M. Tavares de quem comecei por ler alguns senhores, (tendo há dias tido o privilégio de assistir, com o escritor, a um ensaio de uma peça de teatro que uma companhia de Portimão [A Gaveta] está a preparar a partir de Valéry e Kraus, com apresentação marcada para Maio, no Teatro da Trindade). E não será fácil seguir a passada editorial de um autor que escreve mais depressa do que os leitores serão capazes de ler (mais de duas dezenas de livros publicados em cinco anos). Para mais, um autor que não se oculta, mas antes se dá a ver através de uma construção que poderíamos classificar como heteronímica, mas que rejeita a retórica metaliterária associada que, noutro sentido, tão bem foi representada por Pessoa.

Desses heterónimos, conheci a semana passada aquele que narra Jerusalém e foi como se ele me tivesse dado um murro no estômago, tal a intensidade dramática de uma escrita que oscila entre o romance, o ensaio e o teatro, que dá forma a uma espécie de catálogo do sofrimento humano, feito de doenças, violências, medos e loucuras. No hospício Georg Rosenberg, ao contrário de Herisau já aqui evocado, onde viveu Robert Walser durante 23 anos, não há redenção possível, mesmo que um dia os pacientes sejam dados como curados. Rosenberg é uma espécie de teatro da crueldade, concentrionário, onde enlouquecem quer os que estão dentro do hospício quer os que se julgam no mundo exterior: Theodor, médico e investigador; Mylia, sua esposa, esquisofrénica; Ernst, outro louco; Hanna, prostituta; Hinnerk, ex-combatente, alucinado; Kass, filho de Mylia e Ernst, doente, inadaptada... sucedem-se a um ritmo cortante, áspero, no palco macabro deste teatro grotesco.

Não há, portanto, aqui, qualquer visão romântica do manicómio como refúgio, nem da loucura como estádio de criatividade, como, num certo sentido, interpretou Elias Canetti. Ao contrário, o hospício Georg Rosenberg é um simulacro foucaultiano do mundo exterior, vigiado, controlado e punido, onde aqueles que ousam contrariar a ordem estabelecida não têm qualquer escapatória. Para onde deve o homem dirigir o seu pensamento para não ser considerado louco?, eis o problema colocado pelo doutor Gomperz e sobre o qual agora Theodor Busbeck tenta reflectir: «Estava ali, não apenas um problema terapêutico, dirigido a loucos, mas um problema moral, básico, que dizia respeito a todos os homens. Um homem moral em que assuntos deve pensar? E em que assuntos não deve pensar? Claro que a Igreja já tentara responder a esta pergunta e muito antes dos médicos que vigiam os loucos, já os padres dirigiam a sua vigilância e o seu juízo aos pensamentos, e não apenas às acções humanas. Não bastava responder moralmente à pergunta: que actos devo fazer? Faltava responder com a mesma consistência: que pensamentos devo ter? O doutor Gomperz possuía, assim, da loucura - embora não se atravesse a expressá-lo - uma imagem associada à imoralidade: louco é o que age imoralmente e louco ainda é o que agindo moralmente pensa de modo imoral. A loucura seria, assim, uma pura falta de ética, momentânea, porventura, e portanto curável, ou definitiva, eterna, e portanto: incurável» (págs. 106-107).

À disciplina imposta, corresponderia, então, a normalidade, tornando-se moral a restante imoralidade praticada em nome da moralidade, lembrando a tese de Arno Gruen: «Faço uma reflexão sobre o que quer dizer responsabilidade e confronto-a com o que normalmente é considerado a sua medida: o dever e a obediência [...] só que impede, assim, a aproximação a uma patologia menos evidente e mais perigosa, de cujo método próprio a dissimulação faz parte: a loucura que se encobre a si própria e se mascara de saúde mental. Essa não tem dificuldade em ocultar-se num mundo em que o engano e o ardil são comportamentos adequados à realidade» [Arno Gruen, A loucura da normalidade, Assírio & Alvim, 1995]. Esta, parece-me ser a primeira tese deste romance-ensaio.

A segunda tese será a da «história do horror como substância determinante da História» (pág. 53), defendida por Theodor Busbeck nos cinco grossos volumes em que materializou a sua investigação, no que se aproxima, por sua vez, da tese defendida por Anthony Giddens, antes do seu manequísmo pós-setembrista, sobre o lado sombrio da modernidade: «Na esteira da ascensão do fascismo, do holocausto, do estalinismo e de outros episódios da história do século XX, podemos ver que a possibilidade do totalitarismo está contida dentro dos parâmetros institucioinais da modernidade e não excluída por eles» [As consequências da modernidade, Anthony Giddens, Celta, 1992].

Uma e outra tese - que se complementam - reforçam, então, a tentação ensaística, e por isso mesmo, subjectiva e implicativa, do autor na construção da trama deste livro de difícil classificação, espécie de romance-ensaio que interroga o nosso devir individual e social.

23 de abril de 2007

A escrita dos livros



Como escrevem os escritores? Por que territórios da escrita se aventuram para deixar visíveis os rastos no papel? E a que instrumentos recorrem para gravar a consternação do  mundo? Primeiro, há a página em branco que é a praia onde se derrama a escrita. E que pode ser, também, a figura atrás da qual se escondem os rostos dos escritores. Muitos escrevem na banal folha A4 espécie de praia comum e sem surpresas, pronta a ser apagada pela subida da maré que é como quem diz, a ser jogada no cesto dos papéis sempre que o fluxo da escrita segue um caminho diferente daquele que o escritor procura. Mas a praia, qualquer praia de papel, nunca é virgem, a areia da página já foi percorrida de uma ou outra maneira e a sua geografia condiciona a inscrição da escrita. A lápis, com caneta de tinta permanente, com esferográfica ou, mecanicamente, utilizando a máquina de escrever, ou a tecnologia do computador, o suporte da escrita condiciona a sua inscrição. Heidegger desconfiava da técnica, da máquina de escrever: «A máquina de escrever arrranca a escrita ao domínio essencial da mão, ou seja, da palavra». Outros evocam a máquina de escrever como instrumento de escrita a contra-relógio. «Veio-me à memória um [filme] onde um escritor que não tinha dinheiro encontrava o lugar ideal para escrever, a sala de dactilografia da cave biblioteca da Universidade de Austin. Ali, em filas ordenadas, havia uma dúzia de velhas Remington ou Underwood que se alugavam por dez centavos a meia hora. O escritor metia a moeda, o relógio começava o seu tiquetaque enlouquecido, e o escritor punha-se a escrever como um selvagem para acabar o seu conto antes que o tempo se esgotasse» (in Doutor Pasavento, Enrique Vila-Matas). Nesse tempo havia ainda alguma intimidade entre os escritores e as máquinas de escrever, que até tinham nomes de gente: Remington, Olivetti ou de deuses, como Hermes, o deus das mensagens. Eram nomeáveis e fiáveis, à medida do nosso desejo.  Delas, disse Clarice Lispector que «O ruído baixo do teclado acompanha directamente a solidão de quem escreve». Talvez por isso, Álvaro Mutis continue, ainda, a escrever na mesma Smith Corona onde inventou Maqrol.

Hoje, os computadores, que têm nomes metálicos, baniram as máquinas de escrever, instaurando uma modalidade de escrita sujeita a margens, barras, menus, ferramentas, conexões, links... que tolhem errância na praia deserta da página, deixando-nos mais sós. Ou talvez não. Para Bragança de Miranda, o seu computador «é uma selva de heterónimos, um drama em máquinas», por isso, estima-o como se fosse a «última máquina». Mas se é verdade que por culpa do computador as máquinas de escrever já quase desapareceram, as ferramentas que são uma espécie de extensão da mão - o lápis e a caneta - resistem, deixando os seus rastos em qualquer folha de papel. Como fazia Hermann Hesse que escrevia nas costas de folhas de calendário, em facturas, em provas tipográficas, anúncios, sem fazer esboços ou correcções; ou Novalis que em folhas limpas desenhava belas iniciais como se pretendesse imitar as iluminuras medievais, aventurando-se num romance fragmentário; ou Hemingway ou Bruce Chatwin que escreviam em cadernos Moleskine; ou Robert Walser que escreveu a lápis 526 «microgramas» em folhas separadas:  envelopes, margens das folhas dos jornais, formulários oficiais, etc., autênticos labirintos de escrita que levaram vinte anos a ser decifrados e foram recentemente editados em duas mil páginas, com o título Território do lápis (para quando a sua edição em Portugal?); ou Proust ou Musil cujo fogo da escrita só verdadeiramente incendiava o papel no momento da correcção das provas tipográficas; ou Alexander Kluge que escreve, primeiro, num caderno escolar e só depois trancreve para o computador onde redistribui capítulos; ou António Lobo Antunes que continua a escrever em folhas de prescrição médica do hospital Miguel Bombarda; ou, numa situação extrema, Vila-Matas que numa viagem de avião, tendo esquecido o diário em casa, transformou o saco higiénico da Ibéria num rascunho de ideias destinadas a uma crónica espasmódica. Eis como sempre se escreveram os livros, sujeitos às várias modalidades de deambulação pelos territórios do papel, por geografias secretas cujo itinerário o escritor persegue e onde grava com ferramentas pessoais a memória do mundo. Sim, porque para isso servem os livros que hoje, Dia Mundial do Livro, celebramos.

20 de abril de 2007

Doutor Pasavento (I)


Ainda ontem escrevia aqui sobre a natureza deste blogue como construção do eu e marcação do autor, motivação que, mesmo admitindo sem qualquer presunção que outros também aqui poderão ler o que eu tenho para dizer, interessará, sobretudo a mim mesmo, correspondendo à assunção deste espaço de anotação do que sobra dos dias, dos meus dias, como uma certa cartografia pessoal. 

Remete isto, desde logo, para a noção deste blogue como itinerário onde mais do que dizer, pretendo mostrar parcelas do que me cai dos dias que. Haverá nessa mostra algo de montagem literária, mas entendida tão só da forma que referi no post fundador deste blogue, isto é, algo ficcional, na medida em que, embora assuma este blogue como espaço de anotação de matéria recuperável no futuro, também eu procuro emergir lá mais para a frente com a confiança de que, por acréscimo à construção de uma memória pessoal, tenho algo a dizer, algo que deve ser dito. 

Embora com o risco de me repetir, se retomo o meta-discurso sobre a natureza deste blogue é por me sentir confrontado com as primeiras páginas do livro de Enrique Vila-Matas, Doutor Pasavento, cuja leitura iniciei hoje. Confrontado eu, não o blogue que não tem substância para isso, nem aspira a qualquer confrontação dessa natureza com esta ou com qualquer outra matéria que aqui venha a ser mostrada como despojo de um dia qualquer. Enquanto neste blogue, onde se acumula a espuma dos dias de um sujeito que procura desse modo estar presente, dizendo o que tem para dizer a quem aqui vier ou, pelo menos, a esboçar uma cartografia pessoal da recepção de certos despojos desses dias, se procura deliberadamente uma certa inscrição do sujeito, nem que seja apenas no confronto consigo mesmo, no livro de Vila-Matas alguém procura insistentemente desaparecer.  

Donde vem essa tua paixão por desapareceres? é a pergunta repetida que institui o tema desta espécie de meta-romance-ensaio que desde o início parece rejeitar qualquer classificação canónica. Paradoxalmente, vai-se percebendo que, afinal, este discurso do despojamento encerra uma tentativa de afirmação do sujeito através da literatura, cuja essência é escapar a qualquer vontade de estabilização e de controlo. Montagem literária, portanto, em que se mostra a figura ficcional do desaparecimento, levada ao extremo de se reflectir, a partir de Blanchot, sobre o desaparecimento da própria literatura, ou sobre o grau zero do autor, existindo apenas no universo da criação literária, isto é, sem biografia, nem reconhecimento. 

Mas tarefa impossível, parece-me, porque a literatura convoca sempre a figura do autor, sobretudo quando este utiliza a subjectividade ensaística que recusa a neutralidade aparente da terceira pessoa, como é o caso deste meta-romance-ensaio de contornos biográficos, o que, ainda, o torna mais paradoxal, face ao projecto de desaparecimento anunciado e enunciado desde as primeiras páginas e para o qual são convocadas como referências histórico-literárias, sobretudo, Robert Walser e, depois, W. G. Sebald, expoentes de uma poética da extinção que o autor parece perseguir, mas apenas como topos literário e não como projecto moral, o que, aliás, viria, ironicamente, a ser negado com a atribuição do prémio para o melhor romance publicado em Espanha em 2006, o que constitui um acontecimento, não sei se procurado ou não pelo autor, para a afirmação do sujeito que dizia querer desaparecer. 

Para já, primeiras páginas brilhantes de um artefacto literário experimental, carregado de ironia e excentricidade, com que se vai construindo um simulacro da biografia do autor, enredando a ficção na realidade. De outros despojos deste Doutor Pasavento, certamente, voltarei a falar.