25 de setembro de 2009

Jantando com Bolaño


Do meu diário chileno, recupero um jantar com Bolaño, e assim me (re)compenso da minha ausência, logo à noite, na Ler Devagar (Lx Factory), na festa de lançamento do "2666".

Segundo dia numa Santiago radiante apesar dos colegiais fardados, dos carabineros de olhar distante, da mesma matilha de cães vadios errando na Alameda. E as mulheres formosas de olhos de uva, essas ainda não as vi. Mas comecemos pelo princípio. Ontem, ao jantar, esbocei com Daniel um arrojado plano de evasão rumo ao sul, no rasto de Chatwin. Não ao sul profundo dos páramos gelados, mas aonde seria possível ir nos dois dias que destinaria para isso. Talvez Pucón ou Puerto Mont ou Coyhaique. Hoje, descobri que todos os voos estavam esgotados. Os lagos, os vulcões, as florestas araucanianas terão de ficar para outra evasão.

Vou, por isso, a Bellavista, o bairro boémio de Santiago, dizem. Compro algumas jóias em lápislazuli. Visito a casa de Neruda, La Chascona. Depois, imitando um conto instantâneo de Bolaño que caminha ao meu lado, ao último atardecer en la tierra, atravesso uma Santiago provinciana, cruzo ruas de casas ajardinadas, evito umbrais de bares coloridos, ignoro esplanadas nervosas na calçada. E escolho o Galindo para jantar com este companheiro fortuito politicamente incorrecto que, à medida que o vou conhecendo, se revela mais mexicano e, sobretudo, mais latino-americano que chileno. Mas é sobre o nocturno chileno que ele abandonou em 1974, depois de sair de uma prisão de Pinochet, que falamos.

Entretanto, trazem-me uma paila marina escaldante e é como se tivesse todo o Pacífico à minha mesa, com uma fauna de mariscos conhecidos e outros cuja identidade não ouso adivinhar. Através das janelas atravessa um segundo entardecer menos nervoso que o de ontem. Bolaño conta-me agora dos novos escritores chilenos que obstinadamente procuram escapar à sombra tutelar de Huidobro, de Neruda, de Gabriela Mistral, de Violeta Parra. E menos de Nicanor Parra que não é um fantasma. E sobre Isabel Allende diz-me que "no es una escritora, sino na escribidora"; e Skármeta, “un personaje de televisión“. Espero não vir a ler, um destes dias, na revista catalã Ajoblanco, uma crítica desapiedada sobre este jantar, como retribuiu Bolaño a Diamela Eltit que o convidara para jantar em sua casa. Julgo que o facto de ter viajado no avião para o Chile com os seus detectives salvajes jogará a meu favor. E também o meu interesse súbito pela modernidade visceral do nocturno chileno e das ruas do exílio mexicano. Por isso, conta-me, ainda, el secreto del mal, evocando o eterno diálogo com a literatura argentina, Arlt, Piglia, os fantasmas de Borges, as vanidades literárias. E também la canalla sentimental. Mas da vanidade do tempo não me apercebi eu.

Saio, então, para rua e reparo que o personagem de Soldados de Salamina, de Javier Cercas, já não caminha ao meu lado, na noite infrarrealista de Bellavista. Apenas grupos de jovens escondidos atrás de enormes garrafas de cerveja Escudo como se estivessem numa estação do inferno. Uns riem-se como se soubessem que o mundo está para acabar e só eles suspeitam desse destino quebrado. Outros olham as mesas vermelhas, flutuando sobre abismos duvidosos. Não vejo ali nenhum dos rostos que conheci nas filas das cabines telefónicas de Estocolmo. E ficam felizes, indiferentes aos meus passos incertos, agora que Bolaño me deixou só nesta parcela do nocturno chileno.

22 de setembro de 2009

Fazendo a mala com Bolaño



Porque anda por aí uma certa bolañomania , recupero um excerto do meu diário chileno que me caiu dos dias:


(...) Levo Bolãno na minha mala transatlântica. E porquê Bolaño? Porque depois dos abismos de Vila-Matas que acabo de explorar, este livro é um precipício azul que abre para a nova literatura latino-americana depois do boom do realismo mágico, contrariado pela Rayuela, de Cortázar, de que este romance é, ironicamente, o mais perfeito «contrário». E porque Los Detectives Salvajes é, escreve Vila-Matas, «uma brecha que abre para o mundo infernal de uma geração agrilhoada», a nossa. E porque Bolaño, que já cá não está, ocupa agora a minha «biblioteca do quarto escuro», ao lado de Bioy Casares, um autor do seu universo literário, também aqui hoje chamado para a elaboração deste plano de evasão. E porque quando estiver em Santiago do Chile, irei eu próprio, como um detective selvagem, procurá-lo «na rua Banderas, esquina Ahumada», onde Vila-Matas diz que «parece tê-lo visto observando esse mendigo que ali está sempre e se diz neto de Léon Tolstoi», embora isso seja inverosímil porque àquela data já Bolaño teria ido «embora deste mundo em silêncio».

17 de setembro de 2009

Bolaño no seu labirinto



Às vezes tenho a sensação de que A invenção de Morel, de Bioy Casares, continua funcionando nalguma dobra recôndita do mapa bolañiano onde a realidade e a ficção se bifurcam. E que Ulisses Lima perdido, sem mapa, em Cauquenes, segue no encalço de Arturo Belano… e que um e outro são, afinal, o fantasma de Mário Santiago e o alter ego de Bolaño que já cá não estão, porque foram, talvez, reunir-se com Cesárea Tinajero nos desertos de Sonora, continuando a epopeia realista visceral de Los detectives salvajes, e que eu -, que comecei a descobrir Roberto Bolaño no avião que que, não há muito tempo, me levou ao Chile e o procurei, primeiro, como um «detective selvagem», em Santiago, seguindo as indicações de Enrique Vila-Matas, «na rua Banderas, esquina Ahumada», onde o escritor catalão disse que lhe pareceu «tê-lo visto observando esse mendigo que ali está sempre e se diz neto de Léon Tolstoi» e, depois, nas suas palavras testamentárias, reunidas em pequenos ensaios, apontamentos, entrevistas que trouxe na minha mala de viagem chilena, - me vou transformando num expedicionário do mapa bolañiano que me foi estendido por pelo escitor catalão. São livros póstumos, El secreto del mal, La Universidad desconocida, Entre paréntesis, Bolaño por el mismo, que me chegam, não por acaso, porque, diz Bolaño, «a la literatura nunca se llega por azar. Nunca, nunca. Que te quede bien claro. Es, digamos, el destino, ¿sí? Un destino oscuro, una serie de circunstancias que te hacen escoger. Y tú siempre has sabido que ese es tu camino».

Um destino obscuro de leitura, eis para onde me conduzem os caminhos bifurcados desta estranha cartografia literária que, a avaliar pelo que circula na net, no youtube, na blogosfera, em sites sobre o autor chileno (talvez mais mexicano que chileno), vem secundado por um efeito Bolaño que vai transformando os leitores ocasionais em seguidores fiéis de uma obra tragicamente inconclusa, fragmentária, testamentária - a cujos segredos vão acedendo postumamente, como se escutassem na caixa negra de um avião acidentado uma voz derradeira atravessando com inteireza as turbulências da viagem final. Vão em busca, talvez, de um Bolaño que não existiu, mas cuja existência seria ironicamente refundada após a sua morte prematura, aos 50 anos, num hospital de Barcelona, através de um processo de reconstrução de uma biografia que começa a roçar a lenda, como diz Enrique Vila-Matas. Não tanto aquela lenda, duradoura, que durante o frenesi monástico dos últimos anos de vida o próprio Bolaño foi tenazmente escrevendo contra a morte, e para a qual o próprio sentido etimológico da palavra lenda remete ao significar o que deve ser lido. Mas a outra, seguramente efémera, forjada na propensão mitómana dos meios literários, somada ainda à propensão hiprócrita de falar bem dos que já não estão e que, por isso, não incomodam.

E quanto a isso não restam dúvidas, pois sucedem-se por todo o lado as reedições dos seus livros que conquistam, sobretudo, uma juventude leitora que se revê na errância desesperada das suas personagens, através dos abismos de um tempo em desagregação, cujo umbral atravessamos através de uma estranha efabulação, simultaneamente, realista e lírica, fundadora de um estilo que já conquistou um nome próprio, o de «modernismo visceral». Sobretudo quando esse umbral dá para o quotidiano nocturno das ruas do México DF em cujo mapa nos adentramos em Los detectives salvajes e nesse tremendo romance com mil páginas - que vai chegar às livrarias portuguesas no próximo dia 26 de Setembro -, estruturado em cinco partes que constituem uma pentalogia, que é 2666 e que parece responder definitivamente à questão levantada por Julio Cortázar no conto Apocalipsis en Solentiname relativamente ao devir da literatura latino-americana: continuar a explorar o filão do realismo mágico, transmitindo uma visão ingénua, etnográfica da realidade, ou testemunhar o horror de um continente, de um mundo, resvalando para o abismo?

Bolaño escolheu a segunda possibilidade, rompendo, como afirma Vila-Matas, «com a literatura latino-americana dos galos da Amazónia e das virgens em levitação», preferindo explorar o imaginário apocalíptico da América Latina, dos anos setenta, em Estrella distante, em Nocturno de Chile - considerado por Susan Sontag, à data da sua publicação, como «o mais autêntico e singular romance contemporâneo destinado a ocupar um lugar permanente na literatura mundial» -, e nos contos mercenários de Llamadas telefónicas, antes de empreender a viagem sem retorno através dos territórios assombrosos de Los detectives salvajes ou de ser arrastado para o último abismo, 2666, espécie de buraco negro do crime múltiplo sem solução cuja cratera se situa em Ciudad Juárez e que nos legou, não para nos confortar, mas nos confrontar com os maelstroms do mundo que nos arrastam para o mal.

«Cuidado, tudo é perigoso, mas não igualmente ao mesmo tempo», eis a frase de Foucault que poderia resumir os livros de Bolaño, espécie de poeta desesperado, traficante ocasional em busca absoluta da origem do mal, e por ele irremediavelmente «condenado desde el principio», porque sabe que «en el fondo a felicidad es inexistente», mas que, como Borges, não desiste de procurar no labirinto de palavras embebidas na tinta obscura dos seus livros, única forma de atravessar o mal do mundo como testemunha de um tempo em desagregação e, depois, ir-se embora do mundo, em silêncio, deixando-nos a todos um pouco mais à mercê dos labirintos reais, lá fora, no mundo.

13 de setembro de 2009

A caixa negra de Bolaño



«Estoy seguro de que moriré inédito», anotou, sem esperança, no seu diário, Roberto Bolaño, seis anos antes de morrer. Estava redondamente enganado. Depois dos livros póstumos - El secreto del mal, La Universidad desconocida, Entre paréntesis, Bolaño por el mismo e 2666 - que eu trouxe d uma recente viagem ao Chile, a voz fragmentária e testamentária de Bolãno ressoa, agora, na caixa negra do seu voo tragicamente inconcluso, convidando a adentrarmo-nos através da estranha cartografia dos seus livros por vir. É que depois do agente Andrew Wylie ter anunciado a descoberta, na caixa negra bolañiana - ou se se preferir, por corresponder melhor ao cânone, na sua arca pessoana -, do romance inédito El Tercer Reich, a editar em breve, leio em La Vanguardia a notícia da descoberta de mais dois romances inéditos do assombroso escritor chileno: Diorama e Los sinsabores del verdadero policía o Asesinos de Sonora. «El futuro del archivo, un mar de libretas y cuadernos de todos los tamaños, una vez inventariado, será seguramente una universidad. Adentrarse en sus páginas requiere la paciencia del paleólogo o del domador de pulgas», pode ler-se em La Vanguardia.

6 de setembro de 2009

Do sentido da possibilidade



A literatura, então, como «uma tentativa de tornar real a vida», escreveu Pessoa. Ignorava o poeta que, algumas décadas mais tarde, Enrique Vila-Matas haveria de fazer da possibilidade de introduzir o real na ficção uma marca do seu estilo pessoal através da qual a aparência de verdade levada até ao extremo converte aquilo que no início é apenas verosímil numa nova forma de realidade que não necessita de nenhuma outra explicação que a da evidência da ficção. E de uma ficção que questiona o nosso limitado conceito de verosimilhança e nos transforma em exploradores mentais de mapas obscuros em cuja cartografia abismal nos adentramos para nos aproximarmos mais da verdade.

Trata-se, então, aqui, de um conceito de verosimilhança que remete não tanto para aquilo que verdadeiramente entendemos por realidade, isto é, aquilo que acontece, mas mais para aquilo que poderia ter acontecido, que poderá acontecer, introduzindo, assim, na ficção «um sentido de possibilidade» musiliano que transforma as personagens «correntes e vulgares» de Exploradores do abismo em expedicionários de mundos paralelos, protagonistas de vivências nunca experimentadas que sobrepõem ao tédio quotidiano com a insolência de quem possui a fórmula mágica que o há-de esconjurar.

Lembram estes exploradores vilamatianos «esses homens [musilianos] do possível [que] vivem, como se costuma dizer, numa trama mais subtil, numa teia de névoa, fantasia, sonhos e conjuntivos» (p. 41) que constituem simulacros de sentido num mundo que Musil sabe sem sentido mas que insiste em narrar em O homem sem qualidades (Dom Quixote) apesar de «tudo ter deixado de ser narrável e não seguir já nenhum fio» (p. 827). E lembra-nos Vila-Matas - que se cruzou com Musil à beira de um abismo mental no final de O mal de Montano - que se trata de «um novo modo de narrar que se constitui em permanente ensaio da vida» e que «abriu, sem fechar, o mais amplo horizonte que se oferece ao romance moderno» respondendo (tal como Hermann Broch) àquilo a que Kundera classificou como o apelo do pensamento, «não para transformar o romance em filosofia, mas para mobilizar, com base narrativa, todos os meios, racionais e irracionais, narrativos e meditativos, susceptíveis de esclarecer o ser do homem; de fazer do romance a suprema síntese intelectual».

Um convite, então, não para um passeio romanesco ao passado, mas para uma longa expedição através dos mapas obscuros do «apocalipse alegre» (expressão que sintetiza, segundo Broch, a forma como os austríacos viveram nihilismo de fin de siècle) cujos abismos cacanianos me disponho agora a explorar num programa de leitura para afrontar o vazio deste «mundo de qualidades sem homem» em que vamos vivendo. Isto é, escolhendo a qualidade de leitor sem qualidades, aberto a toda contingência, a toda a possibilidade de leitura que pode surgir numa qualquer dobra das duas mil páginas da monumental edição da Dom Quixote, numa autorizada tradução de João Barrento.