Mostrar mensagens com a etiqueta Mallarmé. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Mallarmé. Mostrar todas as mensagens

22 de março de 2007

Filologia do inútil



Ler, então, para ir construindo a minha biblioteca de quarto escuro. Aquela onde gosto de me perder como quem se perde numa cidade ou numa floresta, mas «com educação», como diria Walter Benjamin - que é como quem diz, com o propósito íntimo de, mais tarde, dar conta de uma qualquer leitura singular, acidental, arbitrária como deve ser toda a leitura «doméstica e privada», já dizia Montaigne. A biblioteca obscura onde reúno as minhas afinidades electivas e, por isso, uma biblioteca limitada, correspondendo à ideia de Mallarmé de que deveria bastar-nos apenas um livro, já que, a partir da sua leitura, se poderia escrever todos os outros livros por vir.

Na escuridão, pegar, às vezes, ao acaso, num livro, e deixar-me ir por ali através daquele labirinto vegetal embebido na tinta dos livros, «perseguindo uma imagem, somente», como Gerard de Nerval. Leitura tangencial, mas que me leva ao centro, ao nó de rizoma. Ponto e ponte de fuga donde me escapo furtivamente para as margens, expandindo o texto na geografia virgem da página. Reconfigurações ao acaso, cruzamentos, bifurcações. Citações, glosas, anotações, remissões, indexações, comentários, enfim, toda uma trama alheia, fragmentária, labiríntica que traz em si não apenas o estigma dos cruzamentos e da enxertia, mas também a nostalgia do todo de onde saltou e de que me apropriarei, depois, como um filólogo do inútil, para formar a trama híbrida de um novo texto, assumindo um destino de princípe de que tudo o que escreverei aprendi nos livros.

E, então, finalmente, contaminação suprema, escrever um livro a partir do enamoramento com os livros da minha biblioteca de quarto escuro. Será isto a leitura? Será isto o ensaio - o livro de ensaios por vir- cujo rasto persigo, primeiro, nas margens anotadas dos livros da biblioteca de quarto escuro e, depois, na geografia do acaso dos meus cadernos?

18 de março de 2007

O livro por vir


Perguntar-me-ão, agora - ao quarto post -, aqueles que nestes dias aqui têm vindo se, contrariando a ideia expressa de apenas querer mostrar formulações alheias, não terei, também, algo a dizer, isto é, o desejo efectivo de perseguir uma formulação ficcional pessoal através da qual o «fait accompli» dos textos que aqui for deixando, porque controlados por uma certa diegese, todos somados - ver-se-á mais adiante -, mais do que mostrar, não corresponderão antes a uma tentativa de construção do ego, não direi de um escritor, mas de um escrevente que se mostra, ele sim, através de uma escrita confessional forjada numa leitura entendida como substância autobiográfica deste leitor sem qualidades. E mesmo que não tivesse nada a dizer, será que isso seria impeditivo de escrever? «Quem decidiu que se deve escrever só quando se tem alguma coisa que dizer?», escreveu Gombrowicz que não tendo nada para dizer escolheu escrever o imprevisto.

Por isso, não escondo uma certa veleidade, não de me confundir com esse escritor, mas pelo menos, circunstancialmente, de me mostrar como uma espécie de ladrão na noite cuja autobiografia fragmentada se vai construindo através da montagem literária de citações alheias roubados de infindáveis bibliotecas que, depois, assomam aqui com sentidos diferentes. Este o método ou a estratégia metaficcional que também persigo. Então, talvez, se vislumbre, aqui, uma estimulante travessia através dos territórios da leitura. Desconfiando da superfície brilhante das palavras, ir livros adentro, escavando em profundidade como um bibliotecário furtivo que vai coleccionando vastas citações, glosas e comentários, até ao momento em que alguma epifania suprema (e haverá sempre uma epifania à espera do leitor) as chame para as inscrever com sentidos diferentes num novo texto.

E não será essa a «arte» menardiana que todo o leitor sem qualidades deve perseguir? - «a arte retardada e rudimentar da leitura: a técnica do anacronismo deliberado e das atribuições erróneas» (Jorge Luis Borges, Pierre Menard, autor de Quixote). A apropriação das palavras alheias para «purificar o sentido das palavras da tribo», segundo Mallarmé. Ou, perseguir - como o caminhante Sebald - «o rasto já há muito extinto no ar ou na água» para depois - tentação de escrevente -, torná-lo visível, primeiro, no ecrã e, depois -(quem sabe?) - revelando um inconfessado programa de escrita - num livro por vir?