25 de março de 2012

Recordações inventadas


"Afirma Pereira que o conheceu num dia de verão. Um magnífico dia de verão, soalheiro e arejado, e Lisboa resplandecia…". Eu conheci-o, tardiamente, graças ao filme Afirma Pereira, de Roberto Faenza, adaptado do romance homónimo, protagonizado por Marcelo Mastroianni. E, depois, perseguindo a sombra de Vila-Matas em Mastroianni-sur-Mer perseguindo a sombra Tabucchi, passos rápidos, olhos baixos, alheado do mundo, perseguindo, por sua vez, a sombra de Pessoa pelos cafés da Baixa de Lisboa onde, tal como o poeta antes da sua morte, num delírio de ser outro, esperava encontrar os mesmos fantasmas que haveriam de ajudá-lo a escrever o Requiem de Pessoa. 

"Que língua falam os mortos que regressam à força?", pergunta Tabucchi. Ou, como diria Roberto Bolaño: "Que livro teria coragem de oferecer a um condenado à morte? "Que afirmaria Pereira, em memória de Tabucchi que, parece, cultivava a elegia dos escritores desaparecidos? Talvez afirmasse, como um dia afirmou o seu amigo José Cardoso Pires, que "de conto em conto de Tabucchi, de estação em estação, adentramo-nos nos derradeiros continentes, que são os sonhados por outros solitários: Pessoa ao desdobrar-se em várias máscaras, Scott Fitzgerald e o seu bando de desesperados vivendo a literatura na Riviera da dolce vita". Pereira desdobrando-se em Mastroianni no filme de Faenza, Tabucchi desdobrando-se, através sua recordação inventada, nos heterónimos de Pessoa com uma "assombrosa lucidez / em que como outro a gente está", como escreveu Pessoa ele mesmo no seu Cancioneiro

E eu, agora, sem jeito para elegias fúnebres, reinventando as recordações inventadas de Tabucchi no legendário bar oceânico Peter's Café Sport, na cidade da Horta, bebendo um fulminante gintonic, e apropriando-me daquele "sonho em forma de carta", espécie de Moby Dick em miniatura como chamou Enrique Vila-Matas a esse breviário atlântico que é a Dama de Porto Pim que, de vez em quando, me leva num velho baleeiro à deriva entre ilhas e recifes a ver as "montanhas de fogo, vento e solidão" dos Açores. E, depois, ali, naquela taberna atlântica, à hora do crepúsculo, sob o reflexo da luz declinante lá fora, escutar como num búzio a velha guarda de baleeiros que perderam as graças do mar narrando histórias, reais e outras imaginadas, de baleias e "homens que às vezes cantam, mas só para eles, e o seu canto não é uma reclamação mas sim uma forma de lamentação desgarrada (...) se afastam deslizando em silêncio e é evidente que estão tristes". 

Ficções breves, escavações na memória, anotações metafísicas, notas de pé de página, cartografias, crónicas, bibliografias. Mais do que uma geografia das ilhas dos Açores, toda uma geopoética da alma açoriana. E a recordação inventada de Antero de Quental - influenciada, talvez, pelas Vidas imaginárias de Marcel Schwob ou pelas Vidas de Dubin, de Malamud - que num delírio de querer ser outro e não o conseguir, regressado de Lisboa a Ponta Delgada, naufraga de si mesmo num banco verde em frente do mar, disparando por duas vezes contra si próprio um revólver. 

Volto a pensar no que afirma Pereira que numa tarde de Outono visitou Tabucchi para lhe contar a sua história de tomada de consciência política e mudança existencial e recordo que, para além de inventor de recordações e de fazedor ficções, Tabucchi foi, também, um escritor comprometido com o seu tempo, denunciando Berlusconi e o falso mundo do espectáculo político que criou a seus pés graças ao seu império mediático. 

Custou-lhe cara essa denuncia, pois farto do espectáculo infame em que se transformara a cena política italiana, acabaria por refugiar-se em Lisboa onde não mais deixaria de perseguir Pessoa, indo ao encontro da sua íntima vocação de fazer da sua obra um lugar de encontro entre duas culturas, tornando-se, como diria Pessoa num "fantasma errante em salas de recordações" entre a sua Lisboa povoada de heterónimos pessoanos e as ilhas dos Açores "povoadas por gentes que veneram paixões e adoram deuses como o amor ou o ódio ou o Deus do ressentimento, mas que, como num mapa interior, são reais apenas num sonho em forma de carta", como escreveu Enrique Vila-Matas. 

António Tabucchi morreu, hoje, em Lisboa, numa manhã de melancolia, e foi a enterrar no cemitério dos Prazeres, a sua sombra agora definitivamente transformada no heterónimo italiano de Pessoa que já lá estava à sua espera para - quem sabe? - ao crepúsculo, saírem ambos em passeio pela Baixa e depois se sentarem na margem do Tejo "meditando em vão". 

21 de março de 2012

Fogo lento


Se olharmos, actualmente, para os escaparates das livrarias, veremos que o que aí abunda é a redundância na qual se afunda o campo literário indelevelmente rasurado pelas regras do mercado e pelo desejo de uma nova «raça de escritores, imitadores do já feito», em permanecer na «eternidade preguiçosa dos ídolos», como escreveu Maurice Blanchot. Por isso, nestes «tempos de redundância», a poesia de Herberto Helder constitui, por si só, um questionamento «intempestivo» do próprio lugar da poesia ante a constelação de vazios que preenche um espaço literário cuja legitimidade não é mais outorgada pela palavra poética mas sim pelas regras do mercado editorial ditadas pelos tais «trapezistas do marketing» de que fala Enrique Vila-Matas em O mal de Montano.

É que Herberto Helder pertence, ainda, a outro tempo. A um tempo em que os poetas ambicionavam constituir-se exclusivamente através da sua obra, fugindo por vontade própria da vida mundana e da vacuidade dos prémios e honrarias. Porque já Séneca dizia que a fama é horrível pois depende do juízo de muitos. E Flaubert: «as honrarias desonram». E Herberto Helder, numa remota entrevista: «O prestígio é uma armadilha dos nossos semelhantes. Um artista consciente saberá que o êxito é prejuízo». E, depois, noutra rara entrevista: «Há quem se ponha no centro de câmaras ecoantes: e os ecos chegam de todos os lados: as respostas caóticas, o êxito, o erro, a morte da alma». Por isso, nas últimas décadas Herberto Helder vem cegando todo o espaço mediático à sua volta: nem entrevistas, nem aparições públicas, nem conversas com leitores, nem prémios. Apenas um intransigente silêncio em que se dissolve não apenas a sua biografia mas também qualquer tentativa de aproximação hermenêutica à sua obra através da sua autoridade autoral.

Daí a decisão radical de ter como única morada a poesia, fazendo do auto-apagamento, da dissolução biográfica, da recusa da interpretação da sua obra, o trabalho de toda uma vida. «Não moramos autenticamente senão aí onde a poesia tem lugar e dá lugar», escreve Blanchot em O livro por vir. E, antes dele, Hölderlin: «…é poeticamente que o homem permanece». E noutro verso ainda: «Mas o que permanece, os poetas o fundam». Insondável morada esta habitada pelo «idioma bárbaro» de Herberto Helder que sustenta o bruxulear de uma luz, abre a vacilação de um caminho em direcção ao «poema absoluto» através do qual o poeta busca a superação do mito com uma violência nietzschiana: «Até que Deus [seja] destruído pelo extremo exercício da beleza».

E o que funda Herberto Helder através da radical redução da Poesia Toda (1981) operada, primeiro, em Ou o Poema Contínuo (2001) e, mais recentemente, em A Faca Não Corta o Fogo - como se a sua obra fosse um «poema contínuo» crepitando num fogo lento donde se soltam «as notas impreteríveis para que da pauta se erga a música, uma decerto não muito hínica, não muito larga nem límpida música, mas este som de quem sopra os instrumentos na escuridão», como ele próprio já advertia na "súmula" primeira? Talvez, sempre, os mesmos «punti luminosi poundianos, ou núcleos de energia assegurando uma continuidade do sensível» que antes dele já Pessoa perseguira, deixando aberta a ideia da literatura como utopia ou, se se preferir, arriscando uma concepção mallarmiana do livro por vir que encontramos no livro homónimo de Blanchot.

20 de março de 2012

Um poeta do Sul


Haverá algum fio invisível a ligar António Ramos Rosa  a Walser, Emmanuel Bove, Sebald, também eles cultores de uma metaliteratura? Teria Ramos Rosa lido estes escritores angélicos? Liga-os, talvez, a ideia de que o poeta é o que sacrifica tudo pela sua obra. Não que o poeta tenha cultivado como aqueles o desaparecimento, a ocultação do seu corpo, mas porque sempre viveu recatado, privilegiando uma existência sedentária, solitária, à fugacidade das experiências geográficas ou às poses efémeras em vazios cenários mundanos. O mundo para onde desertou foi sempre o da interioridade povoada por seres reais e alteridades poéticas: Desertei da biografia e dos relógios.

E refugiou-se na linguagem, geografia única onde é possível seguir o seu rasto sem que a água ou o ar alguma vez o possa apagar: uma geografia onde o real foi destruído, onde a única realidade é a própria linguagem, colocando-a sob o signo de Rimbaud, da liberdade plena da imaginação, da demiurgia absoluta, capaz de fazer ouvir, como num búzio, a maresia do mundo. Pertence António Ramos Rosa completamente à poesia, tal como Walser se desintegrou nos microgramas que escrevia em Herisau. E pertence, também, ao Algarve, pois essa é a única geografia exterior que deixa rasto na sua poesia, o espaço mais luminoso onde a "nudez" é uma palavra que terá correspondência com a paisagem algarvia.

Onde situar, então, esta poesia luminosa que o poeta classifica de cognitiva e metapoética? Recordemos que se deve a António Ramos Rosa a reposição da pulsão modernista na poesia portuguesa, quando nos anos 50, fosse como poeta fosse como crítico (leia-se, sobretudo,  O poema, sua génese e significação que agrupa diversos artigos) fez das revistas Árvore, Cassopeia e Cadernos do Meio-Dia, que dirigiu, veículos privilegiados de uma nova linguagem poética como um ser próprio, um dinamismo próprio. Diz Eduardo Lourenço que onde Pessoa acaba, começa Ramos Rosa que é um poeta solar. Eu sou algarvio, nasci no Sul [...] o espaço mais luminoso de Portugal, sim, terá tido alguma influência na minha obra poética onde a "nudez" é uma palavra que terá talvez alguma correspondência com a paisagem algarvia.

A fulgurância das coisas mais simples irrompe nos versos, na imaginação deste poeta no nosso Sul, em que o muro branco, a cal, a espuma das ondas se reflectem no poema, sem, contudo, ofuscá-lo de realidade. Este o Ramos Rosa que, sobretudo, nós algarvios, nos cumpre celebrar, mesmo que o poeta, agora, procure a ocultação, não o desaparecimento.

17 de março de 2012

A actualidade fabricada


Um artigo inédito de Albert Camus sobre jornalismo livre, censurado em 1939, e publicado esta semana pelo Le Monde, recupera o olhar crítico e a isenção do autor de O estrangeiro e revela uma extraordinária pertinência face à forma como o jornalismo actual vem respondendo aos acontecimentos, renunciando ao compromisso de se afirmar como um "contra-poder" quer dos jogos políticos, quer de inconfessados interesses económicos quer, ainda, de si próprio.

Ora, a constituição da experiência contemporânea é cada vez mais determinada pelas máquinas mediáticas que nos dão a ilusão de estar em todo o lado ao mesmo tempo. Quer queiramos quer não, estamos imersos na actualidade "fabricada" pelos media contemporâneos que tendem a produzir uma espécie de delírio colectivo universal em torno de acontecimentos processados mediaticamente em função de inconfessados interesses que pouco têm a ver com a ética jornalística enunciada por Camus.

Numa época em que a França já paralisada pelo medo da invasão nazi e quando as suas elites políticas e jornalísticas se dispunham à renuncia sem pudor ao Terceiro Reich, Albert Camus propunha uma ética jornalística assente em quatro princípios: lucidez, desobediência, ironia e obstinação. A lucidez que "supõe a resistência aos mecanismos do ódio e da ira e ao culto da fatalidade". A desobediência que "face à crescente maré de estupidez, é necessário também opor". "A ironia que é uma arma sem precedentes contra os demasiados poderosos". E "um mínimo de obstinação para superar os obstáculos que mais desanimam", a saber: "a permanência da absurdo, a abulia organizada, a estupidez agressiva".

Ora, 73 anos depois, embora não haja censura, o manifesto jornalístico de Albert Camus continua actual face à promiscuidade entre as classes políticas, empresariais e mediáticas e à renuncia dos media em se afirmarem como "contra-poder" de si próprios como, também, já defendera Karl Kraus na Viena dos princípios do século XX.

A experiência contemporânea mediatizada constitui-se não em função do acontecimento em si, mas através da construção de uma ficção jornalística que visa a identificação gratuita do público com o acontecimento despolitizado e abordado em função das convulsões dos seus protagonistas. Vistas assim as coisas, o jornalismo, hoje, responde ao acontecimento não para para lhe dar tonalidade expressiva e retraçá-lo racionalmente, mas para nos introduzir nele como espectadores obscenos cujo ponto de vista é sempre incitado, e excitado, por formas mediáticas demagógicas e manipuladoras da opinião pública, que originam as várias e contraditórias patologias de posição que somos coagidos a adoptar, marcadas por uma ilusão paranóica de poder sobre os protagonistas do acontecimento.

Lemos e vemos as notícias que nos são oferecidas com a ilusão de penetrar na intimidade do outro como se, momentaneamente, nos fosse concedido o direito de tudo julgar sem que para isso tenhamos de ser confrontados com a nossa responsabilidade moral. Daí, a banalização lúdica da violência, da crueldade, a exposição da intimidade, a reivindicação divertida da futilidade diariamente servida nas televisões. Mas daí, também a urgência de - contrariando Karl Kraus que dizia que "o jornalismo come o pensamento" - pôr o jornalismo a pensar, porque quer queira quer não essa é a sua essência. Porque, como escreveu Camus, "se [um jornalista] não pode dizer tudo o que pensa, pode [pelo menos] não dizer aquilo que acredita que é falso".

10 de março de 2012

A tentação do fracasso


A partir da vida fracassada de um jovem com ar de Dylan, um espectro do passado, alguns fantasmas do futuro e um Arquivo Geral do Fracasso, Enrique Vila-Matas, regressa de Dublin - para onde tinha dada o salto inglês, melhor seria dizer irlandês - a Barcelona, ao seu próprio bairro nas imediações da Pasaje Pellicer ("Na realidade quando me mudei para este bairro, vivi indirectamente esta história. Dediquei-me, por isso, a contá-la, modificando apenas alguns pormenores. Real na sua essência, como a própria vida", confessa em entrevista à revista El Cultural) para nos brindar com Aire de Dylan (numa evocação à ampôla de vidro com ar de Paris que Duchamp construiu para oferecer a uns amigos e à qual deu o nome de Air de Paris) que a Seix Barral lançará na próxima 3ª feira em Espanha e a Teodolito, a nova editora de Veiga Ferreira, publicará em Portugal, parece, ainda este mês.

Segundo o editor, um romance em que Vila-Matas convoca os seus melhores argumentos retóricos com humor, ironia e sarcasmo para, através de uma intriga negra, com assassinos e assassinatos, dirigir uma crítica à pós-modernidade. E um romance, ainda, cuja história "dialoga - segundo o próprio autor - com o jovem que escreveu História abreviada da literatura portátil que girava em torno de uma sociedade secreta". Uma sociedade secreta preguiçosa, que se contenta em "ter uma ideia por dia", mas sem nunca levá-la a cabo para - digo eu - não fracassar na sua tentação de fracassar.

"Alguns entram muito tarde no teatro da vida, mas quando o fazem parece que entram sem rédea e directamente para o final da obra", assim arranca Aire de Dylan. Outras frases soltas que me chegaram, como "O fracasso é prefiguração natural do escritor", antecipam a ideia da tentação do fracasso que parece alimentar a vida do protagonista do romance, o jovem Vilnius, conhecido como o pequeno Dylan, mistura do cantor americano com o poeta Rimbaud.

Segundo a sinopse do editor, um prolífico escritor vai a um congresso, para o qual recebeu convite, com alguma estranheza e uma certa inquietação. Nesse congresso, participa, em substituição de Juan Lancastre, uma espécie de "Hamlet fitzgeraldiano pós-moderno", o seu filho Vilnius, um jovem criativo com um certo ar de Dylan, que tem como objectivo último da sua vida atingir o mais total e absoluto fracasso, tema que preside ao invulgar congresso. Mas fracassar absolutamente não é tarefa fácil, como, imagino, se verá no livro.

A partir desse extravagante congresso literário sobre o fracasso, acompanhamos a história de Vilnius que acredita que se encontra possuído pelo espectro do pai. Como ainda não li o livro, ponho-me a imaginar que Vilnius tentará imitar Lancastre, cultivando a impostura de viver como se fosse ele. E imagino que Vilnius fracassará no empenho de levar por diante uma vida emprestada, fracassada. E que no seu duplo fracasso, o de querer fracassar mas fracassar no empenho de fracassar, Vilnius se assemelhará ao escrevente Bartleby - o personagem do conto homónimo de Herman Melville - na sua fracassada tentativa de escrever "um decálogo da não acção".

Ao mesmo tempo, acompanhamos o escritor que, por sua vez, deseja pôr um ponto final na sua já vasta obra e atingir o silêncio total e definitivo. "Tinha decidido secretamente mesmo antes de conhecê-los, confessei-o a Débora, não escrever nenhum outro livro, pois estava muito arrependido, quase magoado, com todos os que tinha publicado durante a minha vida" (Aire de Dylan). Enfim, sucumbir perante o síndroma de Bartleby essa "pulsão negativa ou atracção pelo nada que faz com que certos criadores [...] renunciem à escrita [...] e fiquem, um dia, literalmente paralisados para sempre" que Vila-Matas já recenseara nesse "caderno de notas de pé de página" a que deu o nome de Bartleby & Companhia (Assírio & Alvim). Fascinado por Vilnius que terá escrito, o escritor, e Vila-Matas, segue-lhe o percurso e observa-lhe os estratagemas para chegar ao fracasso.

Ponho-me, então, a imaginar que com a esta improvável união, rodeados e isolados por uma teia de personagens, um e outro se sentirão cada vez mais tentados pelo fracasso, o que será um êxito. Este paradoxo fará, imagino, que a distinção entre fracasso e sucesso resulte em algo em que não nos devemos fiar. Tal como também não será de fiar esta minha tentativa de escrever esta nota de pé de página sobre um livro que ainda não li mas cujo desejo de ler me vai fazendo sucumbir à tentação do fracasso de o escrever para, assim, poder antecipar a sua leitura, no que, certamente, como bom escrevente bartlebiano fracassarei.

Levado pela tentação do fracasso de escrever, seguindo os preceitos avançados por Pierre Bayard em Comment parler des livres que l'on n'a pas lus?, sobre um livro que não li, nem poderia ter lido porque ainda não foi publicado, mas não querendo fracassar nesse empenho, encontro no Diário Volúvel algo com um certo ar de Dylan. "O mundo é uma ilusão, um cenário onde todos temos frases para dizer e um papel  para representar. Certa classe de actores, ao constatar que fazem parte de uma peça, continuarão a representá-la apesar de tudo; outra classe de actores, escandalizados com a descoberta de estarem participando numa impostura, tratarão de sair de cena e da peça. Os segundos enganam-se. Enganam-se porque fora do teatro não há nada, nenhuma vida alternativa que possamos incorporar. O espectáculo, tal como o teatro kafkiano de Oklahoma, é, pode dizer-se, o único que está em exibição. E a única coisa que alguém pode fazer é continuar representando o seu papel, ainda que talvez com uma nova consciência, uma consciência cómica.”

Restará saber (e isso poderia ser a tese do romance se eu me fizesse passar por Vila-Matas) -, mas essa resposta deixarei que seja o autor a dá-la, afinal o romance é seu e eu não pretendo continuar a imitar Vilnius, ele tomando o lugar de Lancastre no congresso sobre o fracasso, e eu tomando o lugar de Vila-Matas na escrita deste livro - se neste teatro kafkiano de Oklahoma, o prolífico escritor, numa atitude semelhante à dos personagens de Roberto Arlt, se sentirá, no final do romance, livre de qualquer sentimento de culpa ou responsabilidade relativamente ao seu fracasso literário, exibindo-se perante os espectadores ou se, ao contrário dos fracassados exibicionistas arltianos, adoptará a atitude de Oblomov - o personagem do romance homónimo do escritor russo Ivan Goncharov -, um jovem desamparado aristocrata incapaz de levar a sua vida por diante, inspirando aqueles "jovens poéticos e doentes, notórios Oblomovs, perdidos no vazio cultural do seu mundo e com tendência a ser, até insuspeitados limites, preguiçosos e avessos ao esforço" (Aire de Dylan). Nisto reside "a alma moderna, o ar de Dylan, a essência da nossa época" (Aire de Dylan).

Dir-me-ia Vila-Matas, se lesse este texto, que fracassei na minha tentação de escrever sobre Aire de Dylan sem o ter lido, já que houve aqui uma certa impostura da minha parte ao citar, e glosar, o que nunca poderia ter citado, e glosado, devido à evidência física de não possuir o livro. Como, então terei sucumbido à tentação de escrever sobre um livro que não li? Ficando, esta noite, quieto em casa como bom discípulo de Kafka que, numa noite, em Praga, escreveu "Não é necessário que saias de casa. Fica à tua mesa e escuta. Nem sequer escutes...", apanha apenas o ar de Vila-Matas.

6 de março de 2012

O outono do patriarca


No início de Agosto de 1966, conta Gerald Martin em Gabriel García Marquez - Uma vida (Dom Quixote), García Márquez e Mercedes foram aos correios para enviar para Buenos Aires o manuscrito acabado de Cem anos de solidão. "Pareciam dois sobreviventes de uma catástrofe. O embrulho continha 490 páginas dactilografadas. O funcionário que estava ao balcão disse: ´Oitenta e dois pesos´. García Márquez olhou para Mercedes a procurar o dinheiro na carteira. Tinham apenas cinquenta pesos, e só puderam enviar cerca de metade do livro: García Márquez pediu ao homem que estava do outro lado do balcão para tirar folhas como se fossem fatias de toucinho fumado, até os cinquenta pesos serem suficientes. Voltaram para casa, empenharam o aquecedor, o secador de cabelo e o liquidificador, regressaram aos correios e enviaram a segunda parte. Ao saírem dos correios, Mercedes parou e voltou-se para o marido: ´Hei, Gabo, agora só nos faltava que o livro não prestasse´." 

Mas o livro prestaria, dando a conhecer ao mundo o fabuloso território literário de Macondo que García Márquez, descobrira 16 anos atrás durante a viagem que fez com a sua mãe desde Barranquilla até Aracataca, no Caribe colombiano, para vender a casa dos seus avós maternos com quem viveu até aos oito anos. Nessa viagem em que ficou "à mercê da nostalgia", como conta na sua autobiografía Viver para contá-la (Dom Quixote), partiram de noite numa embarcação através da Ciénaga Grande de Santa Marta e continuaram no dia seguinte de comboio. Quando chegaram à aldeia situada numa clareira do bananal que mal deixava ver o sol, Gabo deu-se conta que o tempo havia parado na sua memória. E foi nesse dia que, através da janela do comboio, desviou os olhos do livro de Faulkner que ia lendo e viu, pela primeira vez, o nome de Macondo num letreiro que indicava uma quinta. Logo intuiu a "ressonância poética" da palavra, de tal modo que passaria a ser o nome do universo onde habitariam todos os lugares e todos os tempos da sua obra. O seu aleph borgesiano que concentra todas as maravilhas, prodígios, milagres.

Soube, então, que fora ali que, alguns anos antes, nascera para ser escritor. "Foi a tua avó que te fez descobrir que ias ser escritor?". Não, foi Kafka, que, em alemão, contava as coisas da mesma maneira que a minha avó. Quando, aos 17 anos, li A metamorfose, descobri que ia ser escritor. Ao ver que Gregorio Samsa podia acordar uma manhã transformado num gigantesco escaravelho, pensei: ´Não sabia que isto era possível. Mas se assim é, escrever interessa-me`, contou García Márquez a Plinio Apulleyo Mendoza em O aroma da goiaba (Dom Quixote). Anos mais tarde, confessaria que se não tivesse sido escritor, teria sido pianista: "tudo estava envolto na penumbra, um homem tocava piano na sombra, e os poucos clientes que havia eram casais de namorados. Nessa tarde soube que se não tivesse sido escritor, teria desejado ser o homem que tocava piano sem que ninguém pudesse ver o seu rosto, apenas para que os namorados se desejassem mais". Talvez esse secreto desejo de ser pianista, o tenha levado a escrever contos da mesma maneira que um pianista toca diariamente piano, preparando-se para um grande recital  Por isso, classificou-os como um "um género de prática". "Exercícios de piano".

Tornar-se-ia jornalista, em 1948, no El Universal de Cartagena das Índias, depois, no El Heraldo de Barranquilla e, mais, tarde, no El Espectador de Bogotá, escrevendo reportagens como quem escreve romances e romances como quem escreve reportagens. Segundo Ryszard Kapuscinski, "o seu grande mérito foi ter conseguido demonstrar que a grande reportagem é também grande literatura". Para ele, as palavras serviam para contar histórias e, com elas, transformar o mundo. Como se de um grande caleidoscópio se tratasse para mostrar a realidade multifacetada mas ordenada em vistosas caixas coloridas, mágicas, cambiantes, multiplicadas por enganadores espelhos", explicou Ricardo Escavy Zamora no congresso Quinhentos anos de solidão.

E essa foi, também, a impressão com que fiquei quando, ainda adolescente, li a prodigiosa e desassossegante epopeia dos Cem anos de solidão, impregnada de nihilismo que me levou numa viagem à solidão da estirpe dos Buendía que se confunde a solidão das nossas próprias estirpes condenadas aos cem anos de solidão deste mundo cada vez mais alheado de si próprio, contraditoriamente transformado numa Macondo global de onde já não poderemos escapar.

É verdade que García Márquez se tornou, entretanto, num produto de exportação colombiano. Como o café. Como Shakira. E que a sua presença hegemónica deixou na sombra várias gerações de escritores colombianos e latinoamericanos e que, ainda hoje, a sua aura é insustentável para os jovens escritores emergentes latinoamericanos. E que o realismo mágico se transformou num produto de contrafacção literária vendido por imitadores e aduladores e outros trapezistas da literatura franqueada. E que outros, pretendendo romper com  "com a literatura latino-americana dos galos da Amazónia e das virgens que levitam", como bem notou Enrique Vila-Matas, confundiram García Marquez com os seus sucedâneos, deixando-se tentar por uma espécie de parricídio nunca, contudo, concretizado. E é verdade, finalmente, que o seu último romance, Memórias das minhas putas tristes (Dom Quixote) é um livro folhetinesco, para mim, decepcionante.

Mas é ainda mais verdade que García Máquez nos deu O outono do patriarca, Ninguém escreve ao coronal, O amor nos tempos da cólera, alguns contos memoráveis e, se isso não chegasse, Cem anos de solidão, seguramente um dos livros que mais contribuiu para a minha formação de leitor sem qualidades.

García Márquez, Gabo como também é conhecido, nasceu faz hoje 85 anos, e cumprem-se, também, hoje, 60 do seu primeiro conto, A terceira resignação, 45 de Cem anos de solidão, 30 do Prémio Nobel e 10 da publicação das suas memórias Viver para contá-la. Todos números redondos neste seu outono do patriarca.

4 de março de 2012

Extremamente alto e incrivelmente perto


"Todos os livros são sobre a perda", diz Jonathan Safran Foer, um dos mais promissores escritores norte-americanos, segundo a revista Granta, tal como Nicole Krauss, sua mulher, autora de A história do amor (Dom Quixote). Os livros que W. G. Sebald escreveu, esses são, seguramente, sobre a perda. Livros sobre a consternação do mundo, sobre as ruínas que o nosso tempo vai amontoando. Tijolos sobre tijolos. E ninguém na paisagem desolada. Apenas a literatura para gravar no papel o desvanecimento da História. Num outro registo narrativo, também Jonathan Safran Foer tenta em Extremamente alto e incrivelmente perto, romance reeditado pela Bertrand que vem publicando a obra deste autor norte-americano, uma meditação sobre a perda e sobre o luto num mundo que - literalmente - desabou à sua volta. 

Em Extremamente alto e incrivelmente perto (adaptado ao cinema por Stephen Daldry e protagonizado por Tom Hanks e Sandra Bullock), Oskar é um órfão do 11 de Setembro, "o dia mais triste de todos os tempos": o seu pai desabou com as torres gémeas e com elas também os arquétipos de uma criança que não consegue parar de inventar mundos paralelos; noutra história, contada através das cartas escritas pelos avós, é a paisagem de destruição de Dresden durante a Segunda Guerra Mundial que surge carregada de fantasmas do passado. O que nos poderia levar a Sebald (História natural da destruição) evocando as marcas da destruição de Berlim se o livro de Jonathan Safran sobre a consternação do mundo e sobre o luto do pós 11-S tivesse sido um pouco mais apocalíptico e um pouco menos integrado nos circuitos  comerciais.

Contudo, embora permeável ao sucesso mediático, outra maneira de abordar a questão será considerar Jonathan Safran como um jovem escritor que pega no lastro de uma certa literatura, retraçando a partir daí o que antes já fora traçado de outra forma. De resto, o autor não recusa a influência de Sebald, cuja escrita compara a "um machado afiado". Ou a aproximação à agudeza judaica de Philip Roth do período de O complexo de Portnov (não esquecer que Jonathan Safran é judeu e a sua, ainda, curta obra persegue o lastro dessa herança, reinterpretando-a à luz da actualidade). Ou a inspiração em Bruno Schulz cujo conto "A rua dos crocodilos" serviu de base ao seu mais recente livro A tree of codes, "um livro-objecto que joga com o vazio fisico e com palavras e frases arrancadas do conto". Ou a integração de um sopro surrealista que não destoaria de algumas páginas de Kurt Vonnegut. Ou, talvez, antes de tudo, a auto-referenciação a uma certa arquitectura narrativa que evoca Laurence Stern.

1 de março de 2012

Vila-Matas no país das maravilhas



Nestas noites volúveis em vou lendo as mais de quinhentas páginas de Uma vida absolutamente maravillosa de Enrique Vila-Matas (título de um artigo sobre Marcel Duchamp que V-M publicou no El País), vejo-me tão maravillado como na primeira vez que li El viajero más lento, El traje de los domingos, Desde la ciudad nerviosa y El viento ligero de Parma que integram esta antologia cronológica de artigos e ensaios, agora, recuperados pela Mandadori DeBolsillo.

Um livro absolutamente vilamatiano, no sentido em que V-M é aqui, ao mesmo tempo, um ensaísta que narra e um contista que ensaia, como confirmam os maravillosos ensaios do segundo livro de Diario voluble e, sobretudo, uma espécie catálogo comentado das suas leituras intitulado Para acabar con los números redondos, autêntica galeria de retratos de momento que integram a sua biblioteca de quarto escuro: "Tan descontente estava Alberto Savinio con las enciclopedias que se hizo la suya propria para su uso personal. Lo mismo creo haber yo hecho con la literatura de este siglo, pues en un cuarto escuro de mi casa he reunido a todos mis autores preferidos": Walser, Joyce, Gombrowicz, Céline, Roussel, Kafka, Schulz, entre outros bartlebianos e shandianos. Fecha o livro uma última secção com o título equívoco Notas que dá continuidade à "geografía personal" vilamatiana sem a qual, confessa V-M, "no sabría vivir".

O que me leva, então, a atravessar como um funâmbulo da leitura as cordas que V-M  estende sobre os caminhos da literatura buscando novas estações de luz nos interstícios de metáforas apagadas da experiência quotidiana? Precisamente o processo vilamatiano de «desfamiliarizar uma experiência e dela se apropriar como ficção». Não, portanto, uma qualquer intenção de estilhaçar prescrições formais ou normas de conduta narrativa. Não uma vontade de subversão da realidade e da sua substituição pela fantasia, pelo mágico, pelo mítico. Mas um impulso irresistível de tratar o ensaio conferindo-lhe uma dimensão narrativa, e ficcional, onde convivem o diário, a autobiografia e a biografia inventada, o conto, a digressão, a citação literária enquanto formulações retóricas inventadas para contar uma vida absolutamente maravillosa.  

Uma visão aristotélica de representação ficcional muito próxima da imitação do real. Verosimilhança, portanto. E verosimilhança que em Vila-Matas se manifesta na sua capacidade de assumir o evidente sem pedir explicações à evidência, segundo uma teoria que li já não sei onde. De buscar possibilidades ficcionais na vida de todos os dias. De convocar a sua experiência pessoal, vivida e, depois, efabulá-la. De explorar abismos reais e imaginários, e observar horizontes plausíveis e, às vezes, precipitar-se no vazio. De cruzar personagens reais e fictícias. De navegar à bolina no fragmentário e no rasto do casual ou da memória súbita de livros, vidas, citações perdidas. De convocar o acaso para determinar destinos de vidas alheias, às vezes, a sua própria vida ou a de um narrador que se parece demasiado com ele próprio. De levar-nos a acreditar e, ao mesmo tempo, a duvidar do que julgamos verdadeiro ou falso. De domesticar a fantasia mais inverosímil sob o manto diáfano do real e de esconder a realidade mais verosímil sob a insolência da fantasia mais cintilante. Uma forma e uma fórmula, afinal, de E V-M se posicionar diante da literatura e da vida, como ele próprio confessou no citado artigo sobre Duchamp: "una forma de tener, como minimo, dos versiones de un mismo tema: él mismo. Por eso a veces juego con el gato de Schrödinger que encarna la paradoja cuántica de estar vivo y muerto a la vez. En otras palabras, juego a no ser Duchamp y serlo."

Daí, levar-nos a acreditar, a nós leitores, funâmbulos também na corda bamba da escrita vilamatiana, que toda a ficção é real e que toda a realidade ficcionada é uma nova realidade que somos convidados a explorar como expedicionários de um território que existe «fora daqui» e onde, aí sim, sugere Vila-Matas, nos adentramos na vida. Até porque, como escreveu Pessoa, "a literatura não é mais do que uma tentativa de tornar real a vida".

"Que tengan ustedes muy buenas noches y una vida absolutamente maravillosa", despediu-se E V-M no artigo sobre Duchamp. Eu, certamente, irei ter uma boa noite de leitura maravillosa.