27 de novembro de 2011

O anjo da história


Para que serve a literatura? Interroga-se W. G. Sebald no micro-ensaio "Uma tentativa de restituição" que integra o seu livro póstumo Campo Santo. «Talvez sirva apenas para nos lembrar, para nos ensinar a compreender que há estranhas ligações que a lógica casual é incapaz de explicar…», responde. Talvez sirva para dar conta da consternação do escritor ao ver que à sua volta tudo se desumaniza ou desaparece e que inclusive a própria História se desvanece, como observa Enrique Vila-Matas reportando-se àquilo que define em Sebald como uma poética da extinção. Talvez sirva para opor à obsessão moderna pelo esquecimento o imperativo redentor da memória, capaz, ainda, de deixar gravadas no papel um rasto, que não se extinguirá jamais, de um narrador em propulsão atravessando uma paisagem cuja topografia nos sacode, nos interpela, nos propõe uma meditação sobre um amontoado de ruínas, não para nelas sucumbirmos mas para cavar nelas a recordação, a invocação, o lamento, às vezes, a alucinação, vestígios incandescentes de instantes esquecidos que se negam a desaparecer irrompendo na paisagem devastada da nossa modernidade inacabada.

«Escrever é a única maneira de me defender das recordações que tantas vezes e tão inesperadamente me avassalam. Ficassem elas presas na minha memória e o tempo torná-las-ia cada vez mais pesadas, acabariam por me esmagar», confessa Sebald em Os Anéis de Saturno. Para isto serve, então, a literatura escavada por Sebald numa História enterrada viva, sedimentada em camadas de esquecimento, mas que palpita, ainda, sob o amontoado de ruínas que o viandante vasculha. Não para buscar qualquer hipótese de redenção que parece já não ser possível, não para se rebelar contra o nihilismo do existente, mas para afrontar com um olhar melancólico a vertigem do vazio da era moderna sem nele se despenhar. Até porque «grande é a distância entre o ponto onde hoje nos encontramos e esse final do século XVIII, quando a esperança de uma melhoria dos males da humanidade e a convicção de que esta seria capaz de aprender se inscreveram em letras bem desenhadas no nosso firmamento filosófico!» («Uma tentativa de restituição», in Campo Santo).

Talvez isso justifique o seu método de escavação do passado, «adoptando uma perspectiva histórica concreta, esculpindo pacientemente, juntando coisas aparentemente alheias umas às outras, ao jeito de uma nature morte» («Uma tentativa de restituição», in Campo Santo). «Uma espécie de metafísica da história através da qual a recordação voltava a ganhar vida» (Austerlitz , 2001) nos sedimentos depositados em fortalezas, estações de comboios, colunas, manicómios, campos de concentração e extermínio paisagens, bolsas de valores. Rastos de sofrimento atestando «a sombria viragem da história». Fotografias que «surgem do passado como [...] se tivessem memória e se recordassem de nós», libertando a aura benjaminiana de «um tempo que trás consigo um registo enigmático que remete para a redenção» (Walter Benjamin, Sobre o conceito de história). Correspondências, portanto, vestígios da recordação que a presença elíptica, em Austerlitz, de Proust (de La recherche), de Kafka (referência a um episódio biográfico de Kafka em Marienbad) e de Thomas Bernhardt (a natureza melancólica dos personagens) acentua.

Mas «até onde retroceder para encontrar o começo?» pergunta-se Sebald em busca da sua génese, em Nach der Nature (1988)/Sobre a natureza, o seu primeiro livro. «Quando no Dia da Ascenção/ de quarenta e quatro vim ao mundo,/ a minha mãe viu nisso um bom presságio, sem saber/ que o frio planeta Saturno regia a constelação/ do momento e que, sobre as montanhas,/ espreitava já a tempestade [...] logo imaginei uma catástrofe silenciosa que ocorre/ sem que o espectador o perceba». Antes, a mãe com ele ainda no ventre tinha sobrevivido ao bombardeamento e ao incêndio de Nuremberga que Sebald haveria de contemplar cinquenta anos depois num «quadro de Altdorfer, / que representa a mulher de Lot/ e as suas filhas. No horizonte, / um terrível incêndio/ devora uma grande cidade. /O fumo sobe, /as chamas elevam-se ao céu/ e, no reflexo avermermelhado./ vêem-se obscuras/ fachadas de casas», resgatando da sua memória uterina a matéria das duas conferências que sob o título, Guerra aérea e literatura, proferiria em Zurique, em 1997, e que seriam, depois, publicadas postumamente em História Natural da Destruição, 2003).

Quantas viagens a pé terá feito o caminhante saturnino dos seus livros nos escassos cinquenta e sete anos de uma vida prematuramente destruída numa curva de uma estrada de Norwich, em 14 de Dezembro de 2001? Sigamos os seus passos. Em Vertigem (1990): «Em outubro de 1980 viajei de Inglaterra, onde, vivia, então, havia quase 25 anos, numa região que estava quase sempre ensombrada por um céu cinzento, rumo a Viena, com a esperança de que uma mudança de lugar me ajudasse a superar uma etapa da minha vida particularmente difícil. Porém, em Viena descobri que os dias se tornavam demasiados compridos, agora que não eram ocupados pela minha rotina de escrever e tratar do jardim, e literalmente não sabia onde ir. Saía cedo todas as manhãs e caminhava sem rumo nem objectivo pelas ruas da cidade antiga…».

Depois, prossegue a viagem através do norte de Itália. E ali indaga, interpela, alucina-se, escava vestígios da passagem de Kafka por aqueles lugares, convoca outras biografias de escritores, Stendhal, Casanova, Ernst Hölderlin, Robert Walser, Thomas Mann, Peter Weiss. Depois, em Os Emigrantes (1992) relata uma viagem a Deauville em busca de algum «resíduo do passado» para confirmar que «essa praia outrora lendária está em pleno declínio como todos os sítios que hoje se visita, seja qual for o país ou continente, arruinados pelo tráfego automóvel, pelos estabelecimentos comerciais e por essa sanha de destruição sempre insaciável.»; e nessa viagem a pé, ainda, o pretexto para a evocação desoladora dos fugitivos e dos exilados que sob o signo da melancolia se vêem trasladados das suas terras de origem para os quatro cantos do mundo. Depois, em Os Anéis de Saturno , 1995) («Em agosto de 1992, quando os dias caniculares se aproximavam do fim, caminhei pelo distrito de Suffolk, com a esperança de dissipar o vazio que se apodera de mim de cada vez que concluo um trabalho») oferece-nos uma cadenciada meditação intercalada por breves ensaios tão diferentes quanto magistrais sobre Roger de Casement e as infâmias do regime de Leopoldo no Congo, as primeiras aventuras no mar de Joseph Conrad, a natureza da guerra, o ciclo de vida dos arenques, a destruição das grandes florestas do mundo. Finalmente, em Campo Santo (2003) - o trabalho que interrompeu em 1995 para escrever Austerlitz -, viaja pela Córsega reflectindo sobre a dor, o luto e a memória.

«Portanto, para que serve a literatura?» Para dar conta do que contempla, horrorizado, o anjo da história ao olhar, na curva do caminho, uma vez mais para trás. Para dar conta da consternação de Sebald contemplando, como Hölderlin, «um reino por demais abstémio onde impera o lamento enganador do lustro traiçoeiro, onde se contam as horas lentas de gelo e de seca e onde só suspiros prezam a imortalidade» («Uma tentativa de restituição», in Campo Santo).

15 de novembro de 2011

Desditosas pontes


Há alguns anos atravessei de comboio o território que corresponde hoje ao mosaico de novos países que resultaram da desagregação da antiga Jugoslávia e a imagem que ainda guardo dessas terras corresponde à lenda que agora leio relatada por Ali-hodza Mutevelic´no romance de Ivo Andric´, A ponte sobre o Drina [Cavalo de Ferro], um território cuja superfície foi arranhada pelas garras do demónio, formando «profundos rios e ravinas, dividindo umas terras de outras e separando os homens, impedindo-os de viajar por essa terra que Alá lhes tinha dado para seu governo e sustento». Por isso, conta-nos, ainda, o hodza, «o maior e mais abençoado bem-fazer é construir uma ponte (…) e o maior pecado é mexer nelas».

E, por estes dias em que as pontes de Mitrovic que separam as secções sérvia e albanesa da cidade se encontram encerradas pelos soldados da KFOR para prevenir males maiores na sequência da proclamação unilateral da independência do Kosovo – festejada bizarramente nas ruas de Pristina com bandeiras de países estrangeiros -, vou entrando no Hotel zur Brücke, sobranceiro ao Drina, onde, no romance de Andric´, converge o universo multi-étnico de Visegrad, e pergunto-me quais os demónios que vieram arranhar com as suas garras esta terra, cavando os abismos de medo e ódio que aí estão à espera que os anjos estendam de novo as suas asas para que os homens os possam franquear, como na lenda contada pelo hodja.
As histórias d´A ponte sobre o Drina passam-se na pequena cidade bósnia de Višegrad, e têm por palco a desditosa ponte fronteiriça que a partir de 1992 foi lugar de execução pública de muçulmanos que eram lançados à corrente tumultuosa do Drina por extremistas sérvios [como se retrata no filme homónimo de Xavier Lukomski que passou, creio, num DocLisboa recente], numa encenação trágica da mesma limpeza étnica que os cetnici de Milosevic e Karadzic iam multiplicando por toda a Bósnia transformada num teatro da crueldade cujo palco principal foi a cidade dilacerada de Sarajevo. Aquela Sarajevo cuja paisagem entre ruínas atravessámos no filme de Theo Angelopoulos, O olhar de Ulisses, onde Harvey Keitel empreende uma espécie de jornada épico-catártica de um Ulisses contemporâneo em busca do passado e do sentido para a própria existência desolada: «Quando eu voltar será nas vestes de outro homem. O meu regresso será inesperado…»

Destes episódios não conta o romance, nem poderia contar porque Ivo Andric´ já não os testemunhou. Nesse magnífico fresco que é A ponte sobre o Drina, Andric´ conta-nos sim do bulício humano na cidade de Visegrad – sérvios ortodoxos, croatas católicos, judeus sefarditas, turcos, muçulmanos e, no último escalão social, uma chusma de ciganos utilizados como carrascos em matanças incendiadas pelos ventos dissonantes da história – cujo destino se traça em torno da «eterna ponte, eternamente igual a si mesma, [sobre] as águas verdes, espumosas e agitadas do Drina». E conta-nos, também, episódios tormentosos conduzidos, então, pelos muçulmanos contra os sérvios durante o longo período de ocupação otomana – de que a cruel cena do empalamento do hajduk sérvio relatado no romance constitui metáfora absoluta -, mas que a manipulação mediática actual tem silenciado por considerar politicamente incorrecta a divulgação dessa outra face da história.

«Croata por origem e católico por fé, sérvio por adopção, bósnio por nascimento e pelos matizes da sua própria obra, jugoslavo por determinação e identidade» - como o retrata escritor croata Predag Matvejevic, em Le monde “ex” [Fayard] -, há quem critique em Andric´uma visão que tende a apresentar a época otomana retratada na sua obra, em coerência com a historiografia nacional sérvia, como um período de singular sofrimento sérvio, extigmatizando assim os muçulmanos da Bósnia como «renegados» por terem adoptado a cultura do invasor, comparando-o com Emir Kusturika cuja posição relativamente à questão bósnia sempre foi muito apreciada em Belgrado. Talvez por isso, os nacionalistas croatas o tenham acusado de ter traído a sua própria nação; e os nacionalistas sérvios dele se tenham apropriado, ignorando a sua visão comospolita; e os nacionalistas bósnios muçulmanos lhe tenham reprovado ter descrito o sofrimento da população cristã sob o domínio turco.

Mas estas, sim, todas elas, visões parciais e desfocadas de um escritor que, acima de tudo, foi sempre «balcânico e integrador» como o definiu o escritor triestino Claudio Magris: «Sérvio pareceu-lhe ser a expressão que melhor equivaleria a jugoslavo e esta, por sua vez, não é mais que a ambição de bósnio, essa forja de história e vida, essa unidade captada nas diferença e construída, também, através do conflito, que ele aprendeu na sua terra natal» [Utopia y desencanto, Anagrama]. Isto é, na Bósnia, que sempre foi para ele a dolorosa metáfora da existência e da convivência atraiçoadas, para a qual se exigia, como ele dizia, «quatro vezes mais de amor e de compreensão mútua» que para o resto dos países. Porque a Bósnia era – ainda será? - um mundo baseado na fragmentação e na rejeição de qualquer programa de inclusão globalizadora, que haveria de degenerar na homogeneidade étnica agrilhoada dentro da rigidez das fronteiras cavadas após a última guerra balcânica que «apenas o ódio consegue transpor», estilhaçando a utopia cosmopolita de Sarajevo.

O que verdadeiramente nos conta Andric´é a vida dos homens e mulheres que construíram a ponte de Visegrad e a vida daqueles que ao longo de cinco séculos foram protagonistas, ou apenas vítimas, dos muitos conflitos que assolaram aquela região dos Balcãs: «tais acontecimentos foram recordados e contados juntamente com as histórias sobre a construção da ponte durante muito tempo (…) por fim, passaram a lenda, como a das fadas, Stoja e Ostoja e outras maravilhas semelhantes» – que se revelam ao longo de séculos nessa desditosa ponte transformada em lugar de passagem, de encontros, de conversas, de conspirações, de suicídios, de execuções; de trânsito de exércitos em debandadas, uma vezes, de desfilada de exércitos vitoriosos, outras vezes, testemunhando o desmoronar de Impérios e o surgir de novas nações, enquanto «a ponte sacudia de si, como quem sacode o pó, todos os traços que nela deixavam os caprichos humanos ou os acontecimentos efémeros e permanecia, depois de tudo passar, inalterada e inalterável».

E nesse contar Ivo Andric´ lembra o grão-vizir Mehemed-Paxá que mandou construir aquela ponte sobre o Drina. É que o vizir era ele próprio bósnio de nascença, de uma cidade da montanha; e era um menino de dez anos de idade, cristão, quando os turcos o levaram para Istambul como tributo de sangue; mais tarde tornou-se almirante e genro do sultão. Mas «aquela estranha dor que trouxera da infância na Bósnia, na barca de Višegrad, o punhal negro, lancinante, que de tempos a tempos lhe cortava o peito em dois» nunca o abandonaria. Tal como a sua identidade bósnia que de vez em quando lhe fazia sentir que nele próprio vivia também um outro, constituindo a ponte que mandara construir aquilo que ligava as duas metades de si. Ora, Andric´ foi, também ele, um construtor de pontes, como ele próprio confessa numa crónica intitulada, precisamente, As pontes: «De cada vez que evoco as pontes vêm-me à memória não aquelas que eu atravessei, mas aquelas (…) onde o homem se confronta com obstáculos. (…) Grandes pontes de pedra, testemunhos de épocas esgotadas nas quais, se nelas tivesse vivido, penso, tê-las-ia construído de outro modo» [cit. por Predag Matvejevic, op. cit.]. Talvez, por isso, por não se rever nas pontes desditosas erguidas entre o Oriente e o Ocidente que, parece, já só o ódio consegue franquear, Ivo Andric´tenha nos últimos anos da sua vida preferido dar-se como desaparecido numa terra cavada pelos abismos negros de todos os nacionalismos.

10 de setembro de 2011

Retóricas do 11-S


Foi há dez anos que a queda das Torres Gémeas, em Nova Iorque, inaugurou de forma tragicamente espectacular o novo milénio, trazendo consigo o regresso da História depois do seu «fim» proclamado por Francis Fukuyama e de um período em que se assistiu a uma espécie de «greve dos acontecimentos», segundo a fórmula de Baudrillard. O espectáculo de fogo mortal, visível em tempo real em todo o planeta, superaria todas as ficções, tornando-se na grande metáfora de um mundo com anemia moral e alimentado pela hipocrisia e pela felicidade engarrafada, mas irremediavelmente ferido a partir do 11de Setembro de 2001.

A vida nova depois do 11-S, simultaneamente maculada e redentora, tem dado origem a uma repetição dos discursos sobre o acontecimento, visando a sua «legibilidade», à luz de interesses variados e, muitas vezes, antagónicos, legitimadores da resposta ocidental à «barbárie» de um Islão desfigurado, perseguida pelo «profeta electrónico» Bin Laden, cujas aparições foram acontecendo na única realidade do nosso tempo, a televisão. Que caminhamos agora entre os vestígios de uma catástrofe cuja onda de choque continua a repercutir-se no mundo já o sabemos. Só não sabemos é se a catástrofe ficará por ali, sepultada junto ao ground zero nova-iorquino, agora irremediavelmente ameaçado pelo novo skiline mercantil em construção no mesmo lugar ou se continuará, como uma onda de choque imparável, a desmoronar cidades e vidas longe daquele epicentro.

Haverá, ainda, redenção possível depois de tanta ruína? Se, num estado próximo do sonambulismo, W. G. Sebald caminhasse depois do 11-S sobre os mesmos tijolos calcinados, talvez voltasse a dizer: «Demasiados edifícios ruíram, amontoou-se demasiado entulho, são intransponíveis os sedimentos e as moreias» [Os Anéis de Saturno, Teorema, p. 172].

Mas será que o 11-S, nas suas causas e efeitos, constituiu uma cesura radical na narrativa moderna? Ou não terá sido antes mais um episódio de esbanjamento trágico do potencial redentor da humanidade? Foi, seguramente, um regresso ao fundamentalismo religioso incentivado pelo «choque das civilizações» (Samuel Huntington, O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial, Gradiva, 1999) ou «choque dos preconceitos» - como corrigiu Edward Said (Orientalismo, Cotovia, 2004] -, marcado pela tendência para a «teologização do político» e para a «instrumentalização política da religião» [Alain Badiou, Circunstances, Éditions Léo Scheer, 2004] tão presente nos discursos maniqueístas dos protagonistas desta tragédia global. Seja como for, cesura ou continuidade histórica, neste tempo de ebulição catastrófica, ganham adeptos as teorias salvícas que vão hipostasiando um «nós» ocidental contra um Islão desfigurado pela violência fundamentalista, fazendo-nos, assim, roçar um abismo cujo fundo negro desconhecemos. Multiplicam-se, por isso, os discursos que visam a «legibilidade» do 11-S à luz dessas mesmas teorias que conduzem a um perigoso resvalar para territórios de liberdade condicionada no mundo ocidental, refém, sempre, da maldição moderna do petróleo.

Eis a retórica dominante na efeméride negra do 11-S, como se o acontecimento apenas pudesse ter «legibilidade» através de um discurso legitimador da resposta americana enviesada, não tanto contra o terrorismo, mas contra um «inimigo providencial» (Carl Schmidt, Théologie politique, Gallimard, 1969), em cujas fileiras se contam já milhares de vítimas inocentes, iraquianas sobretudo, mas também soldados das forças internacionais, enquanto deixa os sequazes de Bin Laden à solta no Afeganistão e no Paquistão. Ou, num sentido oposto, nos discursos negacionistas de uma certa esquerda, anacrónica, e também ela maniqueísta, só que invertendo os pólos do bem e do mal.

E qual retórica da literatura sobre o 11-S? Tem sido ela capaz de retraçar o acontecimento dando conta da consternação do «mundo ocidental» pós 11-S? No epicentro da catástrofe, vários escritores americanos publicaram romances sobre a vida depois do 11-S. «Ela falou da torre […] claustrofobicamente, o fumo, os corpos desmembrados, e compreendeu que podiam falar daquelas coisas somente entre eles» - escreve Don DeLillo em Falling Man, um romance circular a várias vozes : a de um sobrevivente do atentado, a de sua mulher e de um terrorista. E Claire Messud, em The Emperor’s Children: «aquele imenso buraco parecia una extensão da sua própria dor». E Jay McInerney, em Good Life. E Jonathan Safran Foer, em Extremely Loud & Incredibly Close/Extremamente alto & incrivelmente perto (Quetzal, 2007).

Claro que mesmo nesta literatura estamos, ainda, diante de visões hipostasiadas de um «nós» que exclui os outros, enraizadas na experiência ocidental do acontecimento, visões parciais, portanto, mas que nem por isso deixam de constituir outras formas de retraçar o acontecimento, preferindo a ficção à interpretação, a experiência individual do acontecimento à sua explicação alegórica, a sua subjectivação discursiva à sua «legibilidade» compulsiva, sem cair na tentação didáctica, mas, como cabe à literatura, expondo-nos destinos tiritantes que poderiam ser os nossos, num mundo caminhando alegremente para um «pôr-do-mundo» cada vez mais desvanecido e alheado (Peter Sloterdijk, Alheamento do mundo)

25 de julho de 2011

As coisas mais simples


Dizem que o poeta tem seis sentidos: «os sentidos, com os seus traços lineares,/ são cinco como os quatro elementos mais/ o éter dos alquimistas. À volta deles anda o sexto/ que nasce da ideia do homem/ de que falta sempre qualquer coisa para atingir/ a perfeição».

O poeta habita uma casa na Mexilhoeira Grande. No quintal do poeta há uma figueira onde ele colhe, ao amanhecer, «os figos de S. João, os primeiros, que se colhem/ com um gesto só, ficando inteiros na mão». Na biblioteca do poeta há um livro de D. H. Lawrence onde este aconselha que se parta «um figo/ em quatro pedaços, para o comer, depois de deitar fora/ a casca». Mas o poeta que conhece «múltiplas formas de comer um figo» vai mais longe do que Lawrence e pensa também na figueira.

Primeiro, os figos - mas poderia ser «a mulher da fotografia avançando até ao fim do molhe», ou um homem encostado «à porta do palheiro», ou ainda, e sempre, a presença obsessiva do mar, do litoral, ou mesmo a visão das «ruas cheias de gente» de uma cidade qualquer - as coisas mais simples, portanto, como matéria impura que o poeta recolhe dos dias que passam. Depois, «a árvore» que lhe «agarra a alma com os seus ramos ásperos» que o poeta afasta, «a mão transformada num prolongamento da figueira». A mesma mão com que o poeta traça «o ângulo da frase», que mostra as coisas mais simples, assim como o seu avesso, ou a sua transcendência, porque «o que é simples também pode ser o/ seu contrário». A mesma matéria impura que se estilhaça em «mil pedaços pelo chão» como um espelho quebrado da realidade que irrompe no poema, literal e figuradamente, inscrevendo um paradigma narrativo através do qual o prosaico invade o poético. Agora a mão do poeta afasta os ramos da figueira e atravessa a «fronteira de vida rasgada pelas coisas». Dos mil pedaços em que o espelho partido reflecte as coisas mais simples, solta-se «um sopro metafísico» que empurra o poema ao encontro da sua substância mais profunda e o impede de ganhar «a ferrugem do tempo».

Na casa do poeta cresce o deslumbramento diante de coisas tão simples como os figos do quintal ou «a mulher da fotografia» - o quotidiano irrompendo furtivamente no poema para logo ser desfocado, transfigurado, através da alegoria, do devaneio. «O tronco da figueira/ [é agora um] corpo de mulher nua; […] e o figo que o poeta tem na mão [fá-lo] sentir os seus seios macios»; há também a intertextualidade que o poeta convoca desde a sua biblioteca numa busca da essencialidade poética – D. H. Lawrence, Shelley, os poetas gregos. Há um trabalho sobre a história; há navegações errantes, partidas e chegadas, regressos, há um «conceito de paisagem» e uma «imagem da cidade por entre as ruas cheias de gente».

Na casa da Mexilhoeira Grande, Nuno Júdice escreve um livro «à luz do apocalipse,/ as primeiras linhas do ocaso»: descrições, narrações, personagens, memórias, odes, uma carta. O livro chama-se As coisas mais simples e foi escrito com os cinco sentidos mais um, aquele que só os verdadeiros poetas têm.

Na curva da noite, arrumo as páginas do livro que o poeta escreveu. «Limito-me a deixar tudo no seu lugar» - a figueira, a fotografia, a biblioteca do poeta - «como se nunca aqui tivesse entrado, e volto a sair,/ pela abertura redonda, para a grande praia do poema» onde tudo recomeça.

30 de março de 2011

Outras rosas mais tarde



Se havia alguém que pudesse «ser terrível, nostálgica, desesperada e furiosamente moderno no interior da pós-modernidade em que todos vivemos», esse alguém, mais do que qualquer outro, era Eduardo Prado Coelho. Por isso, o seu percurso intelectual caracterizou-se por uma insaciável curiosidade, uma quase incontrolável necessidade de testar e desafiar convenções através de uma escrita iluminante, fosse no sentido de abrir clareiras no universo da crítica e dos autores que nos foi dando a conhecer, fosse no sentido do brilho que a suas próprias palavras irradiavam. Moderno nas convicções e na visão cosmopolita do mundo e pós-moderno na atitude arriscada e pouco ortodoxa como encarava a crítica, a ele se deve a divulgação em Portugal dos grandes debates intelectuais das últimas décadas, assim como de um conjunto de ensaios incontornáveis para o estudo da literatura portuguesa. Da leitura do seus ensaios fica-nos, às vezes, uma sensação de excesso bibliográfico e de obsessão pela novidade, mas isso não diminui em nada a originalidade e, sobretudo, a espontaneidade crítica do «oficiante mais brilhante e activo» da «pequena ou grande capela da cultura portuguesa», como o via Eduardo Lourenço. A profusão bibliográfica, as citações que convocava, constituíam aberturas, fugas para outros livros, para outros autores que EPC generosamente partilhava connosco. Ora «do pecado da generosidade ninguém se deve arrepender», disse Eduardo Lourenço. Nem queixar. Antes agradecer.

EPC foi, talvez, disse Pedro Mexia, «o último crítico», num tempo de desagregação do pensamento jornalístico cada vez mais desprezado em nome de uma retórica exclusivamente informativa e de uma ética de insustentável «objectividade». Um crítico capaz de se adentrar por qualquer território: do cinema à poesia e à ficção, da crítica literária - que teve nele o seu cronista mais mediático e plural - à filosofia que, sob o signo de Foucault e Derrida sobretudo, enquadraria a sua utopia intelectual. E, claro, também pelos territórios movediços da política, porque a disposição do mundo sempre lhe impôs o exercício do juízo e do posicionamento cívico, recusando os lugares fixos e contemplativos de um certo nihilismo pós-moderno onde se fixam a maioria dos nossos académicos. Daí que na política, como noutros territórios, nada lhe fosse estranho, como provam as várias patologias de posição que a afecção pela novidade intelectual lhe foram sugerindo ao longo da vida, o que lhe valeu, algumas vezes, a incompreensão e mesmo a acusação de carreirista político, facto que pouco ou nada o incomodava, pois sentia «a mais soberana indiferença por quase tudo o que pensavam ou escreviam a seu respeito».

E a ele se deve, ainda, a reabilitação da perigosa e movediça crónica jornalística diária sobre temas mais ou menos «mundanos», que vinha escrevendo no Público desde 1998, sob o título O Fio do Horizonte: «cenas da vida quotidiana, memórias envolvidas na nostalgia do tempo, transformações do mundo quotidiano, polémicas, movimentos de humor, análise política, inventário cultural», tudo lá se encontra graças à sua capacidade rara de apanhar o dia de modo expedito, respondendo à urgência da «actualidade», na tentativa de «tornar mais puras as palavras da tribo», como propusera há muito tempo Mallarmé. Dos dias que passavam caía-lhe sempre um tema - porque «a vida à nossa volta dá-nos inúmeras sugestões» - que ele transfigurava depois em matéria de crónica, umas vezes provocatória outras laudatória, umas vezes impertinente outras apaziguadora, mas sempre respondendo ao acontecimento através de uma tonalidade política que dava espessura a uma escrita jornalística onde ia acumulando os farrapos que se amontoavam no fio do horizonte e que generosamente distribuía depois em forma de crónica curta.

Da sua vasta obra ensaística destacam-se O Reino Flutuante (1972), Os Universos da Crítica (1983, versão da sua tese de doutoramento), A Mecânica dos Fluídos (1984), A Noite do Mundo (1988), os dois volumes do diário Tudo o que não escrevi (1992 e 1994), O Cálculo das Sombras (1997), A Razão do Azul (2004) e Nacional e Transmissível (2006).

EPC morreu num dia de Verão, deixando-nos não as Sete Rosas Mais Tarde, título inspirado em Paul Celan para a nova coluna literária que se dispunha a publicar no Ípsilon, mas muitas outras rosas que continuaremos a colher no seu jardim de palavras.

28 de março de 2011

Sem medo de Virginia Woolf


Há 70 anos, numa dia como o de hoje, uma mulher ainda jovem, magra, branca, feminil, caminha solitária na margem do rio perto da sua casa na aldeia de Rodmell, em Sussex, onde se tinha refugiado com o seu marido Leonard fugindo aos bombardeamentos alemães sobre Londres. E enquanto vai pisando a areia grossa da margem, vai colhendo com as suas longas mãos de louca tranquila, como se flores fossem, as pedras com que vai enchendo os bolsos do casaco. Desliza, depois, rio adentro, deixando-se abraçar pelas águas profundas do rio, para, finalmente, escapar ao medo.

Quem assim entrou no suicídio, com medo de viver, foi Virginia Woolf, a romancista inglesa que gostava de passear nas margens da vida sob um céu sombrio e triste, e que, fosse em Londres, na velha mansão de família no bairro de Bloomsbury, fosse na casa perdida na paisagem verde negrejante de Sussex, num e noutro lugar sempre rodeada de enfermeiras, de malas para partir e regressar, de festas e convidados, escreveu romances, contos, ensaios, cartas e diários, antecipando-se a James Joyce no modo de forjar o monólogo interior e a polifonia de vozes que murmuravam tanto nos textos que escrevia como na sua mente bipolar.

Por isso, não ter medo de ler Virginia Woolf, que numa época de moral vitoriana vestia calças de homem, era sufragista, fumava em público cigarros egípcios, dava conferências em círculos operários e, como se isto não bastasse para fazer dela alguém desajustado aos olhos da sociedade, ter, também, mantido uma relação lésbica com a sua amiga Vita Sackville West, poeta e mulher de um lord.

O seu fim foi coerente com a sua existência inconformista e radical. Depois de uma noite sem bombardeamentos nazis, o dia 28 de Março amanheceu luminoso, transparente, frio. Antes de sair em direcção ao rio, Virginia ainda roubou à morte as três derradeiras cartas dirigidas a Leonard e à sua irmã Vanessa. Depois, tranquilamente, deixou-se abraçar pelas águas para não mais voltar a ver a claridade do dia.

Vinte dias depois, um grupo de crianças haveria de encontrar o seu corpo numa das margens do rio Ouse. Talvez naquele 28 de Março, temendo voltar a sofrer uma crise de loucura e não poder suportá-la, a alma de Virginia tenha, finalmente, decido não mais afrontar o inafrontável. Essa realidade intangível que nunca chegou a compreender nem mesmo através da sua obra.

Uma cena quase fulgor



Decido-me pela recomposição da mesma cena sem fulgor que aqui tentei há dois dias e que, subitamente, perdi numa fenda no monitor. Reconstituição de uma paisagem de livros amontoados sobre a escrivaninha, ancoradouro de imagens, descrições, conceitos, fonte de energia visível convocada para um texto a haver. Os livros são de Maria Gabriela Llansol (1931-2008) - O Livro das Comunidades, Finita, Lisboaleipzig 1, Um Falcão no Punho, O Senhor de Herbais, Os Cantores de Leitura - insondáveis moradas de uma escrita que oscila entre o exprimível e o inexprimível - nem ficção, nem poesia, nem drama, nem ensaio, nem autobiografia, talvez tudo isso num mesmo livro -, criando um efeito de estranheza ou mesmo de ilegibilidade a quem ousa atravessar o umbral de uma textualidade que luta contra a narratividade convencional, integrando-a através de uma «escrita laboratório» numa nova ordem ou constelação discursiva que, como diria Blanchot, «[escapa] a toda a determinação essencial, a toda a afirmação que a estabilize». Uma textualidade em que a «escrita salva, redime, sustenta o bruxulear de uma luz, abre a vacilação de um caminho, e a literatura, essa, já começou a ficar para trás», diz Eduardo Prado Coelho. Porque já só «importa saber em que real se entra, e se há técnica adequada para abrir caminho a outros» [Um Falcão no Punho]. E trazê-los ao «encontro inesperado do diverso», através de uma sobre-impressão e anulação de tempos, de lugares, de figuras, também de rasas evidências que põem em andamento um pensamento nómada que prefere o fulgor à verosimilhança. E que acolhe Maria Gabriela Llansol nessa textualidade? «Ando a contar o mal-estar profundo dos seres humanos, dos animais e das plantas, ando à procura de um final feliz. Ando a ver se o fulgor que, por vezes, há nas coisas, é melhor guia do que as crenças sobre elas, ou dos pensamentos que, a propósito delas, nos ocorrem». [Lisboaleipzig 2].

Vou, então, também, à procura de um final feliz nos livros dispostos sobre a escrivaninha, caminhando neles como quem «exercita os pés por entre as imagens e as mãos sobre a escrita.» (O Senhor de Herbais). E os «pés» levam-me aos lugares. Bruges. «Fez-se ali o nó de que depois desfiei o texto. Comecei nas beguinas; destas, passei a Hadewich, Ruybroeck. Destes, a João da Cruz e a Ana de Peñalosa. Fui conduzida por todos eles a Müntzer, à batalha de Frankenhausen e à cidade utópica de Münster, na Vestefália. Nos restos fracassados destes homens encontrei Eckhart, Suso, Espinosa, Camões e Isabel de Portugal. E foi por sua mão que fui até Copérnico, Giordano Bruno, Hölderlin, que todos eles anunciavam Bach, Nietzsche, Pessoa, e outros que a nossa memória ora esquece, ora lembra tão intensamente que me parece outra forma de os esquecer. De esquecer tudo isso.» (Lisboaleipzig 1).

Primeiro, então, os lugares das paragens llansolianas. O béguinage de Bruges, um dos mais antigos lugares da espiritualidade laica flamenca durante a Idade Média, «encruzilhada do espiritual, num sítio ainda vazio», mas onde «havia as mulheres beguinas, ao lado dos portugueses descobridores de novos mundos, tornados oportunistas e comerciantes de especiarias; havia rebeldes ocultos mas já no rasto da liberdade de consciência; havia místicos com um pensamento…» (Lisboaleipzig 1). Ou as livrarias de Lovaina em cujas vitrinas M. G. Llansol descortina a crescente rasura da literatura que vai perdendo o seu sentido teológico e, logo, a sua literariedade: «Há muito que não frequento as livrarias de Lovaina, em que começava a enervar-me a lei do número, o modo de expor, e um certo relento de Universidade. (…) O que me choca é a vastidão dos textos que não ficarão e que, hoje, no espaço fechado da livraria, fazem um ruído ensurdecedor de pacotage que quase tornou inaudível o diálogo entre os livros que falam e mantêm entre si a arte da conversação infindável sobre o entresser.» (Finita). Ou os lugares domésticos povoados pelas figuras dos dias - a cozinha na casa de Joidogne – onde, subitamente, desponta o enigma: «estou em baixo, na cozinha ampla e branca, a preparar uma refeição, voltada para a mesa redonda, e de costas para o armário mural. A cozinha mergulha numa luz que vem do fulgor. A janela, que tem por cortinado uma colcha das ilhas é, atraentemente, uma fonte.» (Finita). Outra casa mais tarde, na aldeia anónima de Herbais, onde se deu como desaparecida para melhor afirmar a sua obra: «Fui para Herbais pedir a esmola do silêncio. Viver em segredo não é crueldade. Mas, para viver em segredo, é preciso um companheiro do mesmo reino.» (Lisboaleipzig 1). Da cidade de Lovaina à vila de Jodoigne e, depois, à aldeia perdida de Herbais. E, finalmente, Colares. Assim, por esta ordem, dos lugares urbanos para a ruralidade, do deserto social para o jardim selvagem do pensamento. Lugares onde nunca estive, mas que irrompem, fulgurantes, na paisagem da minha escrivaninha. Como num quadro de Vermeer.

E, depois, nessas paragens vibrantes, rostos, memórias, visões, «hóspedes de rara presença», fulgurações de figuras «intensas» - Musil e Teresa de Ávila, Rilke e Bach, Teresa de Lisieux e Nietzsche, Spinoza e S. João da Cruz – ressuscitados através da escrita para deambularem agora no chão ondulante das moradias dispostas sobre a minha escrivaninha, tão reais como estes dedos que escrevem e tocam a labareda, deixando aqui, neste texto a haver, fragmentos, frases, balbuciamentos dos mundos que o mundo tem.

E eu leitor, legente sim, mas não devoto, que das moradias llansolanianas apenas conheço a casa de fora, a habitação reservada aos não eleitos, ouso deslizar furtivamente para os quartos dos fundos e, por instantes, talvez, vislumbrar «a serenidade e a justeza das coisas evidentes: pão, água, o convívio com as plantas e os animais, alguma luz mesmo de noite, alguma noite no corpo da própria luz. E o amor como partilha do mais difícil.» (Eduardo Prado Coelho, Público, 11 Junho 1991).

Um final feliz? A morte nunca é feliz, mas podemos ir ao seu encontro - como disse um dia Maria Gabriela Llansol - «sem medo do fim que vem depois, e nos deixa sozinhos com a chama da vela na paisagem.»

[Fotografia ao alto, de Álvaro Rosendo]

27 de março de 2011

Uma cena sem fulgor



«Nunca me inquieto se o texto não vem. Posso passar dias sem escrever. Para mim mesma – não sou escritor. Sou uma contemplativa quando o texto chama. Mas custa-me vê-lo partir desde que comece a estar com ele».

Esta a passagem que retiro de Lisboaleipzig para me confortar da perda - devido a um toque descuidado numa tecla interdita do computador - de um texto que acabara de escrever sobre Maria Gabriela Llansol [1931-2008], correspondendo ao seu próprio chamamento e que interromperia o silêncio auto-imposto à escrita deste blogue.

Não uma palavra, uma frase, um apontamento, mas toda uma formulação, uma variação conduzida por filamentos precários que, ingenuamente, deixei cair numa fenda invisível da folha electrónica e que, agora, seguramente, vai brilhando num qualquer buraco negro do ciberespaço, indiferente ao vazio que, subitamente, se instalou na superfície opaca que já nenhuma luz llansoloniana poderá iluminar.

Não haverá, portanto, neste dia em que o CCB lhe dedicou o dia, juntando numa homenagem os amantes do fulgor do seu texto, a pequena fulguração que esteve quase a irromper, aqui, no écran. Fica o desejo de (re)visitação próxima de uma escritora que para melhor escrever «nas margens da língua» se deu como desaparecida das coisas civis.

[ao alto, foto do filme de vera mantero e miguel gonçalves mendes, viagem ao imaginário da escritora maria gabriela llansol]

24 de março de 2011

Frente ao inafrontável


Há muito que nos andam a dar a ler uma narrativa rasurada cujo último capítulo se desenrola à beira de um abismo para onde vamos sendo arrebatados no torvelinho da contenda política. Eis-nos, hoje, enfim, «de pé e enfrentando o caos», como diria Cornelius Castoriadis. E se o confronto com o caos já seria por por si só perturbante e doloroso na estreiteza histórica desta narrativa, o mais desconcertante - parafraseando Enrique Vila-Matas, em Exploradores de Abismos - para quem, como nós, seres comuns que sondam, sem mapa, o horizonte plausível, indagando sobre o que poderá haver fora daqui, isto é, fora deste limbo político em que vamos vivendo, é que os mesmo maquinadores que, em «apocalipse alegre», conduziram o país para o limiar estreito em que, agora, se encontra, estejam - governo e oposição - mais interessados numa perigosa fuga para a frente, do que, e citando uma vez mais Castoriadis, «se confrontar de pé com o abismo.»

Aquilo que nos tem sido dado a ler, mais não é do que um simulacro de contenda política que disfarça uma operação de encobrimento de interesses inconfessados em que assenta a base ideológica dos diferentes jogadores que praticam, ainda que com diferentes convicções, a utopia neoliberal: Passos Coelho ambicionando superar pela direita os génios que levaram à crise especulativa, e Sócrates, qual cata-vento das tendências neoliberais internacionais, sempre pronto a lhes conceder novas oportunidades.

No actual quadro de crise financeira que semeia angústia e medo social, em vez de uma nova atitude de reflexividade social, traduzida em ideias, estratégias e acções capazes nos pôrem na estrada certa, os «falsos maquinistas» entretêm-se em jogos de poder. De um lado, Sócrates com o sua teimosia resiliente, incapaz de aceitar o que seriam as condições mínimas da decência social, isto é, aumentar a progressividade do sistema fiscal, abdicar das mordomias e da distribuição de empregos e favores, renegociar as PPP e as concessões predatórias, e prosseguir uma estratégia credível de contenção orçamental. E do outro, Passos Coelho e a sua utopia neo-liberal que concebe o paraíso de um mercado concorrencial plenamente emancipado de qualquer tutela do estado, propondo a privatização de tudo o que dá prejuízo. E mais à direita, o que Portas acrescenta é a saudade de uma sociedade desigual, a defesa da moral e da autoridade, a retórica populista para seduzir gente com «medo de existir». Enquanto isto, à esquerda (BE e PCP) apenas o clamor contra a precariedade aproveitando a onda de protesto da auto-designada geração à rasca, a pirotécnia política - sobretudo do BE - dissolvendo-se no ar no meio do torvelinho de ideias próximas do zero que andam por aí a agitar-se, a ausência de projecto verosímil para uma alternativa de governação.

Que fazer, então, para afrontarmos a vertigem do vazio da política sem nele nos despenharmos? Nas «condições de política» actuais, em que os partidos se tornaram organizações fechadas, pouco orientadas pelo interesse nacional e muito viradas para a perpetuação dos seus interesses, talvez exigir ao PS e aos partidos à sua esquerda o reconhecimento da emergência de novos actores e formas de organização social e cívica mais fluida e descentralizada, «retraçando», os modos de «dizer» e «fazer» política, de forma a renovar a sua legitimidade na esfera pública contemporânea. Estar atento às «cesuras», procurar, como nos ensina Walter Benjamin, «dinamitar a continuidade coisificada da história», reescrevendo uma narrativa em que as coisas não continuem como antes.

15 de março de 2011

Sobre a inocência do agir


No passado sábado, enquanto ia assistindo, em directo, através do canal público de televisão (RTPn) que - para usar uma imagem de Michel Leiris, em Vida de Homem - teve a capacidade rara de apanhar o dia de forma expedita, não se ficando pela sua plasticidade mediática, recorri a um verso de Goethe, que partilhei no facebook, que diante daquela «inocência do agir» só poderia ser solidário com o movimento de protesto. Na verdade, aquilo que me foi dado observar contrariou a hipótese de «sismografia sociológica que tem nos media a sua estação meteorológica», conforme formulação de António Guerreiro que adoptei em post anterior sobre a «argumentação geracional».

Diante daquela corrente de subjectividades - composta por gente precária ou apenas solidária com os objectivos do protesto, jovens e menos jovens, com maior ou menor escolaridade, vestidos ao estilo casual-chic ou mais humildemente, com ou sem partido, com ou sem conta nas redes sociais - que ia descendo a avenida soltando publicamente a sua revolta, levados ali, não por um sindicato ou por um partido político, mas tão só na base de uma convocatória aparentemente flutuante e de um manifesto simples, declinado, depois, por múltiplas opiniões e reivindicações expressas em palavras de ordem nem sempre concordantes, a única posição que me seria exigido adoptar seria, como foi, a do contemplador sensível diante daquela argumentação intergeracional.

Contudo, a pergunta que se impõe, agora, passada a urgência daquele dia, é saber que fazer com aquele movimento fundado em bases «românticas». Dispensar os políticos foi uma das ideias que pareceu ter mais adesão, mas ninguém acredita que a ideia bastará como estratégia de organização social. E, por muito que se clame contra a precariedade, todos sabemos que ela não irá acabar de hoje para amanhã. Depois, ninguém sabe se o que a maior parte daquela gente reivindica é uma política possível ou se apenas persegue uma ilusão. Finalmente, ninguém sabe se o descontentamento com a degradação do estado social é um sentimento mobilizador ou, apenas, uma irrequietude momentânea que se dissolver-se no ar no meio do torvelinho de ideias próximas do zero que andam por aí a agitar-se.

Para que um movimento que começou flutuante - e isso poderia ser a sua força - não se dissolva no ar, seja por falta de ideias, seja porque os políticos têm horror ao vazio e, em breve, irão tentar preenchê-lo pondo cada um no seu lugar», seja, ainda, porque outros procurarão incitar (e excitar) o descontentamento a favor de inconfessados interesses, importa, como nos disse Walter Benjamin, encontrar numa nova maneira de «dizer», isto é, de «retraçar» o já politicamente traçado propondo uma nova «arte de fazer» política.

Nas «condições de política» actuais, em que os partidos têm vindo a perder parte do papel hegemónico que detinham no processo social, importa, também, que a esquerda reconheça a emergência de novos actores e formas de organização social e cívica mais fluida e descentralizada, «retraçando», também eles, os seus modos de «dizer» e «fazer» política, de forma a renovar a sua legitimidade na esfera pública contemporânea.

Direi, apenas, para concluir, citando Ernst Bloch, que se a «história» que se contou, no passado sábado, «não significa nada, pertence apenas àquele que a conta, [mas] se significa alguma coisa, então pertence a todos».

11 de março de 2011

Sobre o argumento geracional


Depois dos apelos à participação cívica da juventude, depois de tanto terem acusado os jovens de indiferença relativamente à política, agora que estes decidem afrontar o situacionismo derrotista e reivindicar o acesso a um emprego e a oportunidades mínimas que lhes permitam, tão sómente, encarar o futuro com um pouco mais de esperança, muitas das vozes que antes lamentavam a alienação de uma geração que nos últimos anos tem andado à deriva, argumentam, agora, cinicamente, contra o protesto dessa "geração à rasca" marcado para amanhã em várias cidades do país, acusando os jovens de apenas quererem eternizar o status da geração passada, isto é, o privilégio de um emprego para a vida.

E enquanto uns, os situacionistas próximos do PS, reagem com displicência procurando desacreditar um protesto que teve origem em segmentos de jovens precários, escolarizados e activistas das redes sociais confrontados com a falta de perspectivas de emprego, outros, os contestatários de esquerda, tratam de canibalizar a onda juvenil em benefício da sua agenda de oposição ao governo, elegendo como bandeira a luta contra a precariedade. Outros, ainda, à direita, dizem compreender as motivações juvenis, e é vê-los, num rodopio, a declarar a sua simpatia pelo movimento contestatário, como se não fossem eles, também, responsáveis pela vulnerabilidade actual dos jovens. Entretanto, no seu discurso de posse, foi o próprio Presidente da República que, num inaudito apelo, pediu aos jovens que «façam ouvir a [sua] voz» e que «mostrem às outras gerações que não se acomodam nem se resignam». E outros, haverá, também, - mas só amanhã o saberemos - que tentarão colar-se ao movimento para acções provocatórias, quem sabe, se «proto-fascistas», contra o sistema.

Diante das distintas subjectividades juvenis e, sobretudo, das distintas motivações políticas, nem todas confessadas, que amanhã confluirão - não sabemos ainda se em número significativo - às manifestações de protesto, talvez o mais sensato para não falharmos, por negligência ou por cinismo, a compreensão do acontecimento, seja, por ora, ficarmo-nos pela sua análise sociológica.

Ora o que a análise sociológica, desde já, nos permite afirmar é que - primeira consideração sociológica - no quadro de crise prolongada que se vem instalando no nosso país, engrossam os contingentes de jovens escolarizados que, sem expectativas de emprego, transitam das escolas e universidades para a condição de vulnerabilidade social e, a não serem tomadas medidas que invertam esta tendência, para a exclusão e dependência familiar prolongada uns e quase «inexistência social» outros. E que -segunda consideração sociológica - estes segmentos de uma juventude escolarizada e precária, e activista das redes sociais, poderão vir a desencadear movimentos de consequências imprevisíveis, quem sabe se promissores, recuperando o lugar de vanguarda que a juventude ocupou, na dialéctica da história, nos idos anos 50 e 60, agora, provavelmente através de uma nova narrativa.

E que - terceira consideração sociológica - o argumento "geracional", assente em critérios etários e culturais, que de momento vai dando consistência ao movimento de protesto, ressurge com uma nova plasticidade, tornando-se flutuante para servir - como nas últimas semanas temos vindo a assistir - a «uma débil sismografia sociológica que tem nos media a sua estação meteorológica», conforme escreveu António Guerreiro na sua crónica na Actual/Expresso, visando inconfessados interesses políticos instalados ou desejosos de instalação ou, numa estratégia de consumo de informação pela informação, ir comendo, como dizia Karl Kraus a propósito do jornalismo do seu tempo, a essência do acontecimento, ficando-se, apenas, pela sua forma.

3 de fevereiro de 2011

Da «rua árabe» à praça da liberdade


O rastilho revolucionário ateado, em Tunis, por Mohamed Biazizi, o humilde vendedor de fruta, que num gesto desesperado se imolou pelo fogo em protesto contra a brutalidade policial, conseguiu em semanas aquilo o terrorismo islâmico foi incapaz de conseguir durante todo o tempo em que, através da confessionalização do descontentamento popular, não logrou conseguir com os seus atentados terroristas; isto é, desencadear o incêndio em larga escala que, primeiro, fez derrubar o ditador tunisino Ben Ali, alastrou-se, em seguida, ao Egipto com consequências políticas cujo alcance permanece, ainda, uma incógnita, e ameaça, nos próximos dias, a estabilidade política no Iémen, na Jordânia, na Argélia e em Marrocos.

O mito da rua árabe - composta, como descreve o jornalista de origem iraniana, Amir Taheri, por uma turba medieval de exaltados homens barbudos sempre prontos a linchar publicamente qualquer infiel que não siga os preceitos da fé islâmica - que, há décadas, vem condicionando a atitude ocidental relativamente ao mundo árabe, parece começar, agora, a abanar. E, «pela primeira vez numa geração, não é a religião, nem a aventura de um líder único, nem as guerras contra Israel, aquilo que pôs em marcha uma região, mas o desejo visceral de uma vida decente», escreveu Anthony Sadid, no The New York Times.

Na Tunísia, assistimos a manifestações onde predominavam, sobretudo, estudantes e gente da classe média esclarecida, incluindo muitas mulheres; por estes dramáticos “dias de ira”, no Egipto, vamos vendo confluir na praça Al Tahrir uma massa imensa de sectores muito diversos da sociedade, que integra desde os mais pobres e desesperados até uma pequena e média burguesia que aspira à democracia. No Iémen, as ruas são invadidas quase exclusivamente por homens exibindo nos rostos as marcas de uma extrema pobreza. Enfim, o fogo da revolta que, de forma incontrolada, se vai propagando pelo norte de África e Oriente Próximo, ameaçando transformar a paisagem política, afirmando a possibilidade da utopia viável democrática em vez da alternativa entre as ditaduras laicas e as ditaduras islâmicas, mostra ao Ocidente que a rua árabe já não é território exclusivo da intolerância religiosa.

Esta corrente revolucionária com objectivos de natureza predominantemente laica, deveria levar as potencias ocidentais a reconstruir uma visão, finalmente, aberta das prerrogativas, crenças e diferenças entre o Ocidente e o mundo árabe, em coerência com os princípios de democracia política e social que reclamam para si, mas que têm sistematicamente alienado no mundo árabe, em nome de inconfessados interesses estratégicos que viriam a ser incitados, e excitados, após o 11-S.

A história mostra-nos que a alienação no mundo árabe dos princípios e valores políticos que o Ocidente proclamava para si teve como resultado suscitar uma desconfiança entre as elites modernistas árabes que ao verem-se abandonados nas suas reivindicações de democracia rapidamente ficaram à mercê da decepção e do ressentimento, deixando o terreno livre ao aparecimento de uma oposição religiosa que foi confessionalizando o descontentamento das populações e fomentantando o ódio contra o Ocidente. Este desencontro civilizacional revelou-se trágico tanto para o Ocidente como para os povos árabes. Trágico para o Ocidente porque viu abrir-se um abismo entre si e o mundo árabe; e duplamente trágico para os árabes que ficaram privados das suas franjas modernizadoras e sob o jugo do despotismo laico sem outra perspectiva mobilizadora que não fosse a do radicalismo islâmico.

Uma legitimidade nascida na transformada rua árabe parece estar a surgir na região, uma legitimidade que para já sabe aquilo que não quer, sendo o que não quer é continuar a sobreviver no limiar da pobreza e privada dos mais elementares direitos de cidadania e de liberdade. Traduzir essa legitimidade em medidas políticas não será tarefa fácil no híbrido quadro político emergente que integra uma numerosa juventude urbana ligada entre si e com o mundo através da Internet, uma burguesia que não quer permanecer na periferia do mundo, uma esquerda activa e moderna e partidos religiosos conservadores mas capazes de superarem o integrismo islamita. Tanto mais que, como escrevia, ontem, Rui Bebiano, «nada nos garante que o Islão aparentemente democrático, moderno e urbano, que de repente tirou o véu e mostrou um rosto benigno, não seja rapidamente esmagado, antes ainda de deixar semente, pelas hordas de resignados, facilmente manipuláveis pelos tiranos ou pelos pregadores, que têm atrás de si séculos de uma cultura de submissão e pouco treino nas subtilezas da democracia».

Por estes «dias de ira» em que a história regressou ao Magreb e Oriente Próximo para espanto e temor da «realpolitik» ocidental, resta-nos continuar a seguir atentamente os dramáticos acontecimentos do Egipto onde a revolta popular se vê, agora, ameaçada por forças provocadoras afectas ao regime de Mubarak - e, por que não ? - acreditar na possibilidade de «os árabes abandonarem o fantasma de um passado inigualável para encararem, por fim, a sua história. E um dia, para lhe virem a ser fiéis» (Samir Kassir, Considerações sobre a desgraça árabe, 2004. E,ao mesmo tempo, exigir que, desta vez, o Ocidente possa desempenhar melhor o seu papel mediador evitando a catástrofe de «as coisas continuarem como antes», como diria Walter Benjamin se fosse observador destes «dias de ira».

1 de fevereiro de 2011

Dias de ira


Seguindo o exemplo do povo tunisino, um milhão de egípcios manifestou-se, hoje, na praça Al Tahrir, situada no centro do Cairo, gritando por liberdade, e exigindo a demissão de Mubarak, numa impressionante demonstração de força jamais vista na capital egípcia. A revolta iniciada há oito dias por jovens activistas que utilizaram as redes sociais Facebook e Twitter como plataformas de mobilização e nas ruas ignoraram o medo enfrentando os gazes lacrimogéneos, as bastonadas, as balas e a prisão, transformou-se, hoje, numa insurreição que parece, agora, imparável. Na origem desta rebelião encontra-se o mal-estar provocado pela probreza extrema de crescentes extractos populacionais, a corrupção e a repressão, a que veio somar-se o exemplo da revolução tunisina, numa mistura explosiva que incendeia os protestos que visam pôr um fim a três décadas de ditadura de Hosni Mubarak e que tiveram como rastilho várias imolações pelo fogo como forma dramática de protesto tal como já sucedera em Tunis.

Ajudará à compreensão destes acontecimentos, a leitura do romance O edifício Yacobián, do escritor egípcio Alaa al Aswany que denuncia sem subterfúgios a corrupção a decadência moral, a repressão policial, a miséria, a decadência moral e o fanatismo e a hipocrisia religiosa. Através das vidas de uma série de personagens que residem num edifício no centro do Cairo - cujo nome dá título ao livro -, uns em cómodos apartamentos burgueses e outros em exíguas divisões nas águas-furtadas, Al Aswany disseca o Egipto moderno e denuncia os seus males endémicos.

É contra este estado de coisas que uma extraordinária maré humana invadiu, hoje, a praça Al Tahrir, no Cairo, transformada num microcosmos de uma cidade de 20 milhões de habitantes e de um país de 80 milhões de habitantes exigindo não apenas a saída do farónico presidente Mubarak mas, também, uma mudança de regime capaz de assegurar melhor justiça social e liberdades cívicas e políticas. O objectivo da gigantesca manifestação de hoje não foi, por ora, atingido, pois numa alocução dirigida, já esta noite, ao país, Mubarak afirmou que não se demitiria, admitindo, contudo que não voltaria a candidatar-se. Permanece, assim, o impasse relativamente ao futuro do Egipto que vai oscilando entre a esperança de democratização que poderá ser liderada pelo prémio Nobel El Baradei regressado do exílio, a confessionalização do descontentamento pelos Irmãos Muçulmanos conduzindo, por via eleitoral, a um regime islâmico, a instituição de um regime militar com novos protagonistas e a improvável manutenção da ditadura de Mubarak.

22 de janeiro de 2011

Pôr o pensamento o pensar



«Nesta grande época» - como o polemista vienense Karl Kraus se referiu à sua num texto profético por si mesmo lido a 19 de Novembro de 1914 em que exprime a tentação do silêncio contra a degradação da linguagem transformada e prostituída ao serviço de inconfessados interesses mercantis - há um excesso de «fraseologia» que nos é proposta como «opinião». E essa «opinião», à força de ser repetida até à exaustão pelos homens da palavra fácil nos mais diversos media, fez-nos esquecer que o seu significado original correspondia a algo muito próximo daquilo a que os gregos chamavam doxa, e que se opõe, portanto, ao pensamento. Neste sentido, os debates, as mesas-redondas, os frente-a-frente que «nesta grande época» de crise (e por estes dias de campanha eleitoral) nos são propostos, raramente expressam a heterodoxia, pois a ideia de uma opinião heterodoxa é em si mesma uma contradição semântica, já que, apenas o pensamento, e nunca a retórica servil e conforme à doxa do momento, pode ser heterodoxo.

Pode, então, o pensamento voltar a pensar? E o que é o pensamento? Pensar é uma forma de agudização, a forma mais intensa de discernimento, isto é de expressar um sentimento. Por isso, o pensamento e a linguagem que o expressa, embora objectivos, nunca são emocionalmente neutros. Já Kant dizia que quando se entregava a uma tarefa fazia-o com todo o seu calor. E é isso que nos distingue dos répteis que são frios. Assim, pensar, hoje, com calor, é discernir outras possibilidades para o mundo. Isto é, encontrar cesuras, fendas no pensamento totalitário que rege quer o politicamente correcto quer os fundamentalismos de todo o tipo que marcam a experiência contemporânea, aprisionando um pensamento que parece já não ser capaz de pensar emocionalmente o mundo, incapaz de retraçar as figuras que a história vai arquivando.

Caídos na imanência dos dias que correm acomodamo-nos aos lugares fixos, somos cada vez mais espectadores indiferentes, contempladores insensíveis de um mundo sem remissão, de onde a política, contra todas as aparências, parece ter desertado. O primado da economia sobre tudo o resto é uma consequência do niilismo moderno que aprisionou os homens no labirinto do mercado. O torvelinho da técnica, irmã da economia, tudo arrasta no seu vórtice, originando novas patologias de posição, desenraizadas, transitórias, etéreas. A política há muito que deixou de ser um caminho para a paz e a plenitude para se transformar numa estratégia guerreira de ascensão ao poder. O ambiente enlouqueceu perante a obscena indiferença do mundo. «Que fazer quando tudo arde?», como pergunta António Lobo Antunes num romance homónimo. Talvez «pôr o pensamento a pensar», desenhando mapas e contra mapas do porvir do mundo. Talvez, sermos heterodoxos.

20 de janeiro de 2011

Topografias


Escreve W. G. Sebald no breve ensaio «O mistério da pele castanho-rubra» (in Campo Santo) que dedica a Bruce Chatwin que os seus livros são difíceis de classificar. «Histórias de aventuras ligadas às nossas primeiras leituras infantis, recolhas de factos reais, livros de sonhos, romances folclóricos, exemplos de exotismo apaixonado, penitências puritanas e arrebatadoras visões barrocas, negação de si e confissões: são todas essas coisas juntas.»

Não é, por isso, de estranhar que o caminhante solitário Sebald vá no encalço do viajante incansável Chatwin seguindo as suas pisadas escritas nos cinco livros que publicou [Os gémeos de Black Hill, Anatomia da errância, O que faço eu aqui, Na Patagónia e Canto nómada, editados em Portugal pela Quetzal] e que numa curva dessa abordagem chatwiniana se detenha a comentar «a sua mania de respigar e coleccionar transformando depois os fragmentos achados em significantes mementos carregados de mistério», evocativos de territórios longínquos que o nosso sedentarismo nos impede de alcançar mas em cujos mapas imaginários nos adentramos guiados pela sua prosa nómada.

É que, tal como os livros de Sebald, também os livros de Chatwin são difíceis de classificar, oscilando entre a reportagem, o ensaio, o diário e as memórias que constrói e desconstrói a partir de achados quotidianos sedimentados em camadas de esquecimento que vai recolhendo nas bermas dos caminhos da sua peregrinação pelo mundo. E, tal como Sebald, também Chatwin era um agrimensor de paisagens, um taquígrafo da errância, um imitador de vozes, um virtuoso das anotações. E ambos partilhavam a avidez fetichista de respigar e coleccionar sedimentos do mundo à sua volta: Sebald, as desvanecidas e enigmáticas fotografias que, depois, incorporava nos seus textos; Chatwin, os achados trazidos do fim do mundo e carregados de histórias apócrifas que, depois, levam a nossa imaginação para lá do sol posto. Sebald, um metafísico da história caminhando à beira do precipício contra o esquecimento. Chatwin, um metafísico da sete paragens do mundo que escolheu a viagem como respiração. Cada um à sua maneira, topógrafos da sobrevivência.

18 de janeiro de 2011

A revolução do jasmim


A insurreição popular na Tunísia que fez desmoronar como um castelo de cartas o regime supostamente mais estável do Magreb - e onde o islamismo fora aniquilado - prossegue a um ritmo imparável, multiplicando-se por todo o país as manifestações exigindo a democracia plena e o julgamento dos responsáveis comprometidos com a ditadura de Ben Ali. Entretanto, nas capitais árabes alarmam-se as oligarquias temendo um efeito dominó sobre os seus próprios regimes.

Considerado pelas diplomacias da França, Itália e Espanha como um «modelo» para os países vizinhos e, recentemente, elogiado em termos enfáticos pelo FMI pela sua política económica, nada fazia prever, pelo menos para quem observa os acontecimentos desde o lado de cá do Mediterrâneo, que tão profunda mudança espreitava na aparente tranquilidade das ruas de Tunes.

Ainda não sabemos qual será o desfecho desta «admirável e vertiginosa aceleração da História», como resumiu o escritor tunisino Abdelwahab Melleb a revolução tunisina. Isto é, se ela será «colonizada» pelos sobreviventes do regime a troco de algumas reformas para que, depois, no essencial, nada mude ou mude muito pouco, ou se se evoluirá no sentido de uma verdadeira revolução democrática, o que a acontecer seria a primeira vez num país árabe desde as independências, já que anteriores revoltas, algumas com amplo apoio popular, como foi o caso de Nasser no Egipto e outras, com menos apoio popular, como no Iraque, em 1958 e na Líbia, em 1969, resultaram de golpes de estado. Na década de sessenta, os governos nacionalistas árabes fundaram as bases de um poder autoritário, visando perpectuar-se através de novas dinastias republicanas -como as de Sadam Husein, Hafez el Asad, Mubarak. Em Marrocos, as tentativas golpistas contra Hassan II vieram mostrar que a alternativa à monarquia alauíta seria uma ditadura militar ou um regime islâmico. E, na Argélia, nos anos noventa, a decadência do nacionalismo que teve como contra-ponto a confessionalização da conflitualidade social e a emergência do islamismo político conduziram o país a uma sangrenta guerra civil. A pretexto de manter afastada a ameaça islâmica, as aspirações democráticas dos independentistas argelinos encontram-se enredadas numa teia policial que tudo e todos controla.

Assim, a evolução da insurreição tunisina é, ainda, uma incógnita, tanto mais que, em consequência da repressão endémica, não existe actualmente na Tunísia qualquer força política com a capacidade de apresentar un programa de transformações estruturais para o país, nem uma liderança progressista que possa conseguir a adesão da maioria e catalisar a sua vontade de mudança, sendo, por isso, elevados os riscos de decepção, radicalização e violência. De resto, a situação de caos que se vai vivendo, por estes dias, no país, com saques a lojas e ataques a organismos oficiais e a moradias privadas, poderá mudar a atitude do exército a pretexto de repôr a ordem e a segurança ou para anular qualquer ameaça islâmica. Mas seja qual for a evolução dos acontecimentos, o exército não poderá furtar-se a desempenhar um papel determinante nesta transição.

Quanto à ameaça de islamização desta revolta, essa possiblidade (não obstante, doravante, ter de se levar em conta o até aqui discreto partido Ennahdha) não parece, por agora, iminente, quer porque as reivindicações da juventude tunisina insurrecta são totalmente laicizadas - exigem direitos cívicos e políticos e justiça social -, quer porque não existem no país movimentos islâmicos fortemente organizados, como acontece no Egipto (Irmãos Muçulmanos) ou em Marrocos (Justiça e Caridade).

O que estes acontecimentos, entretanto, vieram revelar, é que a experiência democrática do nacionalismo de Habib Bourguiba, destituído, em 1987, por um golpe palaciano pelo perpretado pelo agora deposto Ben Ali que, a pretexto de conter a ameaça islâmica, impôs a toda a sociedade um regime orweliano, é que a memória dessa experiência estava, apenas, adormecida, aguardando a ocasião propícia para manifestar-se. Importa reconhecer que desde a independência até aos anos oitenta, o governo de Bourguiba estabeleceu um Estado laico, aberto aos princípios e valores da modernidade, com um código de família ocidental, interditando a poligamia e o repúdio.

Ora isto e o facto de grande número de tunisinos terem acesso à Internet e às suas redes sociais e fóruns de discussão - como, por exemplo, o Nawaat, um blogue colectivo independente que teve um papel mobilizador na revolução em curso - e faz toda a diferença relativamente aos outros países magrebinos ajudam a explicar este movimento, de essência profundamente democrática, vindo de baixo e das classes médias, sem uma força política organizada. Segundo Benjamin Stora, histotiador do Magreb, «os elementos detonadores foram a recusa do exército em disparar sobre o povo e o apelo à greve da UGTT (União Geral dos Trabalhadores Tunisinos), o mais antigo sindicato do Magreb, fundado em 1924. Uma forma de oposição social, substituindo a oposição política, pôde asim funcionar».

Esperemos que a Europa saiba retirar as lições desta insurreição tunisina e estenda, agora, a mão aos democratas, contrariando a tendência histórica de - como denunciou Amin Malouf - continuar a «alienar, sobretudo, as elites modernistas, enquanto com as forças retrógradas sempre encontrou arranjos, terrenos de entendimento, convergências de interesses» (Um Mundo sem regras, 2009).

E que, por seu lado - como escreveu o professor universitário libanês Samir Kassir, num livro que lhe custaria a vida -, «os árabes abandonem o fantasma de um passado inigualável para encararem por fim, a sua história. E um dia, para lhe virem a ser fiéis» (Considerações sobre a desgraça árabe, 2004.

16 de janeiro de 2011

Da arte balzaquiana de pagar as dívidas sem gastar um cêntimo


Honoré de Balzac (1799-1850) não integra a minha biblioteca de autores favoritos. A minha experiência como leitor de Balzac é, seguramente, a de um leitor sem qualidades, e ficou a dever-se, sobretudo, a obrigações académicas. Do que li do autor da Comédia Humana, recordo personagens híbridas, metamorfoses andróginas, situações equívocas, angústias recorrentes. O seu herói mais visível, Vautrin, é invisível. Ao contrário de Tristam Shandy, de Emma Bovary, ou dos irmãos dostoievskianos, o herói balzaquiano é insignificante e fugaz.

Também a sua biografia é fugidia. Antes de se tornar um escritor conhecido, entre 1821 e 1932, Balzac vivia numas águas-furtadas, cultivando negócios rocambolescos, acumulando dívidas e acossado por credores. Durante esses anos em que se revelou, também, como impressor suicidário e editor promíscuo, escreveu alguns opúsculos que não figuram, hoje, na lista das suas obras mais conhecidas, mas cuja leitura agradará aos leitores sem qualidades. A arte de pôr a gravata de todas as maneiras conhecidas e utilizadas, ensinada e demonstrada em dezasseis lições (1827), A arte de nunca almoçar em casa, e de jantar sempre em casa dos outros, ensinada em oito lições (1827), A arte de pagar as suas dívidas e de satisfazer os credores, sem gastar um cêntimo, ensinado em dez lições (1827) são alguns desses opúsculos de ideias fulgurantes e certeiras que destoam na bibliografia balzaquiana, escritos a meias com um folhetinista da época, EM de Saint-Hilaire.

Ora, nestes tempos de crise financeira em que, primeiro a Grécia, depois a Irlanda e, agora, Portugal, e no horizonte a Espanha, se vão endividando junto dos chamados “mercados” que compram dívidas soberanas a juros cada vez mais altos, tornando insustentável o seu pagamento no futuro, A arte de pagar as suas dívidas sem gastar um cêntimo revela uma desconcertante actualidade, pois aí se dá conta, com recurso a uma ironia, simultaneamente, ácida e luminosa, da génese do endividamento do Estado, do estado de corrupção moral, e do estado da humilhante prostração dos países diante dos banqueiros especuladores.

Entre Madoff e Oliveira e Costa ou Lehman Brothers e BPN, estas atrevidas "lições" balzaquianas "sobre as dívidas e a arte de não ter de as pagar", não destoariam nas modernas escolas de economia e finanças, face aos desfalques, golpes e outras vigarices que nos vão empurrando para o abismo. E, já agora, poderiam, também, ser deixadas à atenção da senhora Merckel como "manual" técnico para a liquidação da nossa dívida soberana, não diria sem termos de pagar um cêntimo, mas com taxas não especulativas.

14 de janeiro de 2011

A escrita dos livros



Como escrevem os escritores? Através de que territórios da escrita se aventuram para deixar visíveis os rastos no papel? E a que instrumentos recorrem para gravar a consternação do mundo? Primeiro, há a página em branco que é a praia onde se derrama a escrita. E que pode ser, também, a figura atrás da qual se escondem os rostos dos escritores. Muitos escrevem na banal folha A4 espécie de praia comum e sem surpresas, pronta a ser apagada pela subida da maré, que é como quem diz, a ser jogada no cesto dos papéis sempre que a corrente da escrita segue um curso diferente daquele que o escritor procura.

Mas a praia, qualquer praia de papel, nunca é virgem, a areia da página já foi percorrida de uma ou outra maneira e a sua geografia condiciona a inscrição da escrita. A lápis, com caneta de tinta permanente, com esferográfica ou, mecanicamente, utilizando a máquina de escrever, ou a tecnologia do computador, o suporte da escrita condiciona a sua inscrição.

Heidegger desconfiava da técnica, da máquina de escrever: «A máquina de escrever arrranca a escrita ao domínio essencial da mão, ou seja, da palavra». Outros evocam a máquina de escrever como instrumento de escrita a contra-relógio. «Veio-me à memória um [filme] onde um escritor que não tinha dinheiro encontrava o lugar ideal para escrever, a sala de dactilografia da cave biblioteca da Universidade de Austin. Ali, em filas ordenadas, havia uma dúzia de velhas Remington ou Underwood que se alugavam por dez centavos a meia hora. O escritor metia a moeda, o relógio começava o seu tiquetaque enlouquecido, e o escritor punha-se a escrever como um selvagem para acabar o seu conto antes que o tempo se esgotasse» (in Doutor Pasavento, Enrique Vila-Matas). Nesse tempo havia ainda alguma intimidade entre os escritores e as máquinas de escrever, que até tinham nomes de gente: Remington, Olivetti ou de deuses, como Hermes, o deus das mensagens. Eram nomeáveis e fiáveis, à medida do nosso desejo. Delas, disse Clarice Lispector que «O ruído baixo do teclado acompanha directamente a solidão de quem escreve». Talvez por isso, Álvaro Mutis continue, ainda, a escrever na mesma Smith Corona onde inventou Maqrol.

Hoje, os computadores, que têm nomes metálicos, baniram as máquinas de escrever, instaurando uma modalidade de escrita sujeita a margens, barras, menus, ferramentas, conexões, links… que tolhem errância na praia deserta da página, deixando-nos mais sós. Ou talvez não. Para Bragança de Miranda, o seu computador «é uma selva de heterónimos, um drama em máquinas», por isso, estima-o como se fosse a «última máquina». Mas se é verdade que por culpa do computador as máquinas de escrever já quase desapareceram, as ferramentas que são uma espécie de extensão da mão – o lápis e a caneta – resistem, deixando os seus rastos em qualquer folha de papel.

Como Hermann Hesse que escrevia nas costas de folhas de calendário, em facturas, em provas tipográficas, anúncios, sem fazer esboços ou correcções. Ou Novalis que em folhas limpas desenhava belas iniciais como se pretendesse imitar as iluminuras medievais, aventurando-se num romance fragmentário. Ou Hemingway e Bruce Chatwin que escreviam em cadernos moleskine. Ou Robert Walser que escreveu a lápis 526 «microgramas» em folhas separadas: envelopes, margens das folhas dos jornais, formulários oficiais, etc., autênticos labirintos de escrita que levaram vinte anos a ser decifrados e foram recentemente editados em duas mil páginas com o título Território do lápis (para quando a sua edição em Portugal?). Ou Robert Musil cujo fogo da escrita só verdadeiramente incendiava o papel no momento da correcção das provas tipográficas. Ou Jack Kerouac que, num ritmo alucinante alimentado a café e ao som do jazz improvisado, como se fosse um Proust «só que mais rápido», como ele gostava de afirmar, dactilografou Pela Estrada Fora num parágrafo único, sem pontuação num rolo de trinta e seis metros de comprimento que o próprio manufacturou juntando 13 folhas de papel com três metros de comprimento cada uma, coladas com fita-cola e recortadas depois para que pudessem entrar na máquina. «Um único e magnífico parágrafo, de vários quarteirões, rodando, como a estrada em si», disse Allen Ginsberg. Ou Alexander Kluge que escreve, primeiro, num caderno escolar e só depois trancreve para o computador onde redistribui capítulos. Ou António Lobo Antunes que continua a escrever em folhas de prescrição médica do hospital Miguel Bombarda. Ou, numa situação extrema, Vila-Matas que numa viagem de avião, tendo esquecido o diário em casa, transformou o saco higiénico da Ibéria num rascunho de ideias destinadas a uma crónica espasmódica.

Eis como sempre se escreveram os livros, sujeitos às várias modalidades de deambulação pelos territórios do papel, por geografias secretas cujo itinerário o escritor persegue e onde grava com ferramentas pessoais a memória do mundo.

9 de janeiro de 2011

A rasura do jornalismo


A constituição da experiência contemporânea é cada vez mais determinada pelas máquinas mediáticas que nos dão a ilusão de estar em todo o lado ao mesmo tempo. Quer queiramos quer não, estamos imersos na actualidade «fabricada» pelos media contemporâneos que tendem a produzir uma espécie de delírio colectivo universal em torno de acontecimentos processados mediaticamente em função de inconfessados interesses que já pouco ou nada têm a ver com uma noção ética do jornalismo, como se a comunicabilidade mediática se tivesse tornado insustentável.

A experiência contemporânea mediatizada constitui-se já não em função do acontecimento em si, mas através da construção de uma ficção jornalística que visa a identificação gratuita do público com o acontecimento despolitizado e abordado em função das convulsões dos seus protagonistas. Vistas assim as coisas, o jornalismo hoje responde ao acontecimento não para para lhe dar tonalidade expressiva e retraçá-lo racionalmente, mas para nos introduzir nele como espectadores obscenos cujo ponto de vista é sempre incitado, e excitado, por formas mediáticas demagógicas e manipuladoras da opinião pública, que originam as várias e contraditórias patologias de posição que somos coagidos a adoptar, marcadas por uma ilusão paranóica de poder sobre os protagonistas do acontecimento. Lemos e vemos as notícias que nos são oferecidas com a ilusão de penetrar na intimidade do outro como se momentaneamente nos fosse concedido o direito de tudo julgar sem que para isso tenhamos de ser confrontados com a nossa responsabilidade moral. Por isso, a banalização lúdica da violência, da crueldade, a exposição da intimidade, a reivindicação divertida da futilidade diariamente servida nas televisões.

Os acontecimentos são-nos apresentados como uma espécie ficção repetitiva que é preciso alimentar diariamente através de um voyeurismo incitado e excitado por uma retórica que não visa já o esclarecimento público, mas tão só a comunicação inconsistente de fragmentos de uma ficção fabricada para encher noticiários sem qualquer respeito pelos protagonistas reais. O objectivo é sitiar o espectador dentro de uma ficção pueril fabricada e processada através de uma encenação mediática sempre em busca do inesperado.

E diante desta rasura dos media da moda, do lado de cá do ecrâ, encontramo-nos nós, espectadores frívolos, incitados, e excitados, por um zapping generalizado sobre os acontecimentos, levados por um jornalismo que parece ter enlouquecido, já sem espaço nem tempo para pensar, porque agora, para os media,trata-se apenas de responder à urgência da actualidade, sob pena de falhar as audiências.

«O jornalismo come o pensamento», afirmou, há muito tempo, Karl Kraus. Nunca esta observação foi mais actual do que nos dias que correm.

8 de janeiro de 2011

O cinema outra vez



Ultimamente não tenho ido muito ao cinema. Sobretudo porque a maioria dos filmes que passam por aqui, nas salas periféricas da minha cidade, pouco ou nada me dizem. Prefiro, por isso, ficar em casa vendo os clássicos possíveis da minha videoteca pessoal. Porque o cinema, lá fora, mais do que a chamada sétima arte, tornou-se num negócio nas mãos de produtores altivos, de distribuidores analfabetos e de exibidores mercantis que vão perfilando nas telas do mundo a mesma sucessão de imagens cujo sedução reside já não naquilo que seria suposto retratarem, mas no aluvião de efeitos passageiros que essas imagens provocam em nós, espectadores passivos, até ao próximo sucesso de bilheteira.

Reconheço que nesse aluvião de imagens efémeras passam, umas quantas vezes por ano, uns tantos filmes que, embora sujeitos à mesma engrenagem mercantilista de todos os outros, não participam da mesma esterilidade estética e da conjura contra o cinema. Esses filmes, quando passam, desafiam-me a sair de casa abandonando a geografia interior dos meus livros – e a acender, por uma noite, a luz esquecida de um tempo em que ir às soirées de sábado ou às matinées de domingo no antigo Cine-Teatro de Portimão, há muito desaparecido, era um acontecimento esperado durante toda a semana – e a adentrar-me na realidade distinta criada na ampla tela branca a partir da realidade empobrecida do mundo de hoje.

Do tempo em que entrevia o mundo a partir do alto dos bancos corridos do segundo balcão de um cinema de província, ficou-me uma colecção de cromos que reproduzia as mesmas fotografias dos actores de momento - Alain Delon, Romy Schneider, Sophia Loren, David Niven, Ingrid Bergman… -, emolduradas junto ao bar do velhinho Cine-Esplanada, onde numa noite de Verão vi a Ponte do Rio Kwai enquanto o céu era riscado por uma chuva de metoritos que se confundiam com o fogo das baterias japonesas que se abatia sobre os intrépidos prisioneiros de guerra britânicos.

Ficou-me, sobretudo, a memória de um tempo em que ir ao cinema era um acontecimento preparado com uma semana de antecedência. Primeiro, iamos em grupo de amigos ver os cartazes afixados nas vitrinas, na expectativa de haver um filme para maiores de doze anos; chegavam depois as tardes domingo com os seus filmes para maiores de doze: Ben-Hur, de William Wyler, O Tesouro da Sierra Madre e outros filmes de cowboys, Sangue no Deserto, de Anthony Mann, A Pousada da Sexta Felicidade, de Mark Robson, uns policiais alemães com o Peter van Eyck, as comédias da série Com jeito vai e tantos outros filmes que me fizeram rir, chorar, revoltar. Mas o que era bom mesmo era ir ao cinema: comprar o bilhete com as economias da semana, receber o programa, ouvir o going e ali ficar na penumbra, entre amigos, vivendo as aventuras daqueles heróis tão próximos de mim que até os guardava numa caderneta de cromos na gaveta da minha mesa-de-cabeceira.

Ia muito ao cinema nesse tempo. E continuei a ir quando vi alargadas as minhas possibilidade de escolha aos filmes para maiores de dezassete. Veio, a seguir, a actividade cine-clubista, na Sala do Boa-Esperança, e com ela o cinema de autor cujas reposições me deram outra consciência de mim e do mundo: Orson Welles, Billy Wilder, Elia Kasan, Jean Luc-Godard, Michelangelo Antonioni, Ingmar Bergman…

Depois, apesar das novas salas que, entretanto, abriram na cidade, a matéria das suas telas foi ficando puída. Mas esta tarde, enquanto aguardava na sala maior do teatro de Portimão, cheia de um público romântico, o going que anunciava o apagar das luzes e o início do filme "Mistérios de Lisboa", de Raúl Ruiz, não pude deixar de pensar que, afinal, um certo cinema cintilante ainda é possível e que, entrevistas as coisas com o optimismo necessário para afrontarmos o mundo que aí está, talvez ainda haja redenção para nós espectadores românticos à deriva num mundo sem romantismos.