30 de outubro de 2009

Havana para um Infante defunto



Há em Havana uma rua, a 23, que desce para o mar. Talvez, por isso, o troço final que desemboca no Malecón se chame La Rampa. Desci essa rua que mergulha no mar muito antes de alguma vez ter ido a Havana e de ter sentido o aroma achocolatado dos charutos cubanos. Subi-a e desci-a vezes sem conta em Três Tristes Tigres, de Guillermo Cabrera Infante. E, depois, em Havana para um Infante Defunto, espécie de crónica pessoal de uma Havana pobre, carregada de sons, de intersecções. E, a partir daí, desde La Rampa, perdi-me na Havana dos anos cinquenta, no labirinto sonoro de rumbas e son, do rum Bacardi e dos charutos habanos. Uma Havana nocturna, insular, «com os seus cafés ao ar livre, cheios de novidade, e as suas inusitadas orquestras de mulheres que amenizavam os cafés do Paseo del Prado».

Quando alguns anos depois visitei a cidade, Havana já não era a Lost City do filme de Andy Garcia, baseado no romance Três Tristes Tigres que ontem, revisitei como quem regressa a uma cidade desaparecida. Ao descer La Rampa, e depois caminhar a pé ao longo do Malecón até ao Centro, num começo de uma noite quente de Verão tropical, amenizada por uma brisa refrescante vinda da vizinha corrente do Golfo, foi ainda a cidade nocturna fundada por Cabrera Infante que atravessei. Ali estava, pelo menos eu via-a assim, a mesma cidade reflectida na patine luminosa dos edifícios recuperados do Centro Histórico. Via-a, ainda, no contacto caloroso das pessoas, na sensualidade imediata dos corpos, no perfume adocicado dos charutos, na música omnipresente nos bares e cafés de Habana Vieja. Reencontrei-a, também, em algum imaginário e em alguma iconografia que moldaram a minha juventude. Paradoxalmente, Cabrera Infante já não veria, se ali estivesse, a mesma Havana que eu via, porque aqueles elementos dispersos que agora eu ia recuperando, pertenciam a uma certa mitografia de uma felicidade talvez mais sentida pelos estrangeiros do que pelos cubanos, à qual juntaria, depois, algumas imagens de uma decadência de charme.

Três Tristes Tigres, que Cabrera Infante começou a escrever ainda em Cuba, antes de se exilar, é uma homenagem a uma Havana sem tempo à qual ele não mais regressou, por culpa de um rancor quase irracional que marcou até ao final da sua vida a sua relação com o Estado cubano. Assim se compreenderá a amarga ironia que atravessa os seus livros. Trágica dissidência que o tornou ausente de uma cidade que foi sempre o centro festivo dos seus livros. E, talvez, nem ele nem Havana merecessem esse afastamento, pois cópias clandestinas de Três Tristes Tigres sempre circularam em Cuba, formando gerações de escritores, não obstante a opinião injusta e pouco amável de Cabrera Infante sobre os escritores que não abandonaram a ilha. A ausência preencheu-a Cabrera Infante regressando sempre aos mesmos temas com uma nostalgia feroz: a Havana dos anos quarenta e cinquenta, as mulheres, a música, o cinema.

O primeiro sinal de fumo de Cabrera Infante encontrei-o em Três Tristes Tigres: «O charuto [...] aceso é outra fénix: quando parece apagado, morto, a vida do fogo surge entre as suas cinzas». Em Havana, quando fumei o meu primeiro charuto, no bar do Hotel Ambos Mundos, onde viveu Hemingway, juntando assim mais um elemento à tal mitografia da felicidade, ainda não tinha lido o que Cabrera Infante escrevera sobre o prazer de fumar: «Llamo felicidad a sentarme solo en el lobby de un viejo hotel después de una cena tardía, cuando se han apagado las luces de la entrada y solamente se distingue, desde mi cómoda butaca, al portero en su vigilia. Es entonces cuando fumo mi puro en paz, tranquilo en la oscuridad: lo que fue antaño una hoguera, transformado ahora en las ascuas civilizadas que relucen en la noche como el faro del alma».

Puro Humo conta a história da relação entre o cinema e o fumo. Porque para Cabrera Infante, sabemo-lo desde Havana para um Infante Defunto, os filmes são feitos de sonhos. Como os puros. Por isso, em Puro Humo viagja-se de Cuba para o cinema, reacendendo na memória do leitor-espectador um certo voyeurismo: um cigarro lânguido nos lábios de Marlene Dietrich, uma beata rude entre o indicador e o polegar de Bogart, o universo opaco de maldade nos clássicos negros como A Dama de Shanghai ou A Sede do Mal. Também outras páginas que exalam o mais puro fumo literário, com referências a Daniel Dafoe, Edgar Poe, Conrad, Stevenson, Dickens, Mallarmé, Lewis Carrol, Conan Doyle, Raymond Chandler, Hemingway, Jack London, Lorca, Lezama Lima… – e J. M. Barrie – autor, talvez, do mais belo título de todos os livros que fumam: My Lady Nicotine. Pura literatura, portanto, que se esfuma e perfuma como um puro fumado em Havana. Como uma paixão consumida.


[Texto originalmente publicado pelo autor na revista Atlântica 2, aqui reproduzido, hoje, por um não fumador, a pretexto da edição portuguesa de Puro Humo que agora chega às livrarias, com a chancela da Queztal, com o título Fumo Sagrado].

27 de outubro de 2009

As coisas aqui em baixo



Revisito a entrevista que António Lobo Antunes concedeu, há dias, na RTP1, a Judite de Sousa, a pretexto do seu novo romance Que Cavalos São Aqueles que Fazem Sombra no Mar, onde escava as misérias da condição humana e ouço um homem terno, embora com afectação literária, a falar com absoluto respeito do pequeno mundo dos outros à sua volta. E à medida que vou escutando a sua voz rumorosa, vejo passar, vagarosas, diante de mim, aquelas presenças reais, às vezes estranhos de passagem, outras vezes «bolhas de solidão” que existem entre ele e as palavras, para derivar, depois, numa escrita assustadoramente lúcida e emocional que nos puxa para o abismo do nosso inconsciente colectivo de portugueses e de onde, só muito a custo, regressamos, depois, à superfície das nossas biografias tão cheias das qualidades que nos são diariamente incitadas.

Eis o que espero encontrar neste romance polifónico de António Lobo Antunes - cujo título de um profundo lirismo antagoniza com o universo sórdido da realidade humana que as primeiras páginas antecipam -, deixando-me levar na corrente caudalosa da sua escrita caleidoscópica, profundamente irónica e sarcástica, mas carregada de lirismo e de melancolia.

Um romance feito da matéria mais simples para contar as coisas aqui em baixo, porque, como confessa António Lobo Antunes «nós somos como casas cheias de fantasmas, uns fantasmas pequeninos. Muitas vezes, quando começo a ouvir as vozes de escrever, ouço várias vozes ao mesmo tempo e aquela que me vai dar o livro nunca é a voz mais forte, mais intensa. São outras que estão escondidas por trás.”

[foto ao alto, de José Sena Goulão]

25 de outubro de 2009

António Lobo Antunes, o escrevente


A renúncia da palavra de «um sector importante da literatura ocidental moderna», eis o que rastreia Enrique Vila-Matas em Bartleby e Companhia [Assírio e Alvim, 2001], uma espécie de catálogo de instantes fulgurantes dessa «pulsão negativa ou atracção pelo nada que faz com que certos criadores [...] renunciem à escrita [...] e fiquem, um dia, literalmente paralizados para sempre».

Ora aí está algo que não acontecerá nunca com António Lobo Antunes que renunciou à medicina para ficar com todo o tempo para a escrita. E que declara que «escrever é alegria, mas também tortura». [...] É a razão da minha vida». Uma vida - ou uma obra - que ainda não foi galardoada com o Nobel, mas que o foi com outros prémios: «Quantos prémios ganhei importantes? Mais de 20, fora os que recusei» - confessa a Alexandra Lucas Coelho, no ípsilon da última 6ª feira -, o que só é possível com um escritor radicalmente anti-bartlebyano! Tanto que quando, recentemente, na Festa Literária Internacionl de Paraty, o questionaram sobre se alguma vez renunciaria à escrita, recordou as palavras provocatórias de João Ubaldo Ribeiro: «Uma vez perguntaram-lhe se tinha parado de escrever. Respondeu que não, que o seu pseudónimo era Lobo Antunes».

Ao contrário do escrevente Bartleby - aquele empregado de escritório de um conto de Herman Melville -, à pergunta sobre se não quereria parar de escrever, o escrevente Lobo Antunes, invariavelmente, responderia: «preferia fazê-lo», só ainda não sei se o irei conseguir. Até agora, sempre o tem conseguido. A prová-lo até à exaustão, mais de duas dezenas de títulos, ou de capítulos, da sua incessante busca da perfeição, de que este Que Cavalos São Aqueles que Fazem Sombra no Mar? que acaba de ser editado é, para António Lobo Antunes, o melhor de todos, como o próprio declara: »Eu acho que nunca li um livro tão bom».


[nota de rodapé: a expressão o escrevente não é aqui utilizada com qualquer intenção depreciativa da escrita de ALA, antes como modesto artifício retórico para classificar a prolixidade do escritor]

[ilustração alto, de André Carrilho (C), para The New Yorker]

24 de outubro de 2009

Os dias calcinados


350 ppm é o indíce de concentração que os principais cientistas dizem ser o limiar seguro para dióxido de carbono na nossa atmosfera, para evitar as trágicas consequências das alterações climáticas. Hoje, quando faltam menos de 50 dias para a Conferência de Copenhaga sobre alterações climáticas, milhares de pessoas, em 144 lugares emblemáticos do mundo, assinalaram o Dia Internacional da Acção Climática, manifestando-se contra os dias calcinados que podem vir aí se não se parar já a deriva ambiental. E nós, o que é que podemos fazer? Agir como fizeram, hoje, em todo o mundo, aqueles que podemos ver aqui]. Talvez, também, escrever, nem que seja um post como este que recupero de um meu blogue pretérito e que agora aqui deixo actualizado.


Durante o Verão, surgiu uma tromba de fogo no crepúsculo do Árctico, sobre o mar de Barens, derramando sobre as nuvens baixas que encobriam o céu de Hammerfest uma luminosidade laranja espectral, anunciando a extensão à cena árctica da nova versão patética da tetralogia de Wagner, agora reposta sob a forma da maldição do gás adormecido durante milhões de anos sob as calotes de gelo em fusão. O que sobrará para o mundo quando se apagar a última réstia do fogo que concorre agora com as auroras boreais ninguém ainda sabe. Ou talvez saibam apenas os visionários.

«Mas quanto mais me aproximava das ruínas, mais se afastava a imagem de uma secreta ilha dos mortos e mais me julgava no meio dos vestígios da nossa própria civilização aniquilada por uma catástrofe futura», escreveu W. G. Sebald em Os Anéis de Saturno [Teorema, 2006], descrente da capacidade da razão para dominar a natureza enlouquecida pelos homens. E nós, que ainda não caminhamos entre ruínas,vamos vivendo com os primeiros efeitos das alterações climáticas provocadas pelo aumento das emissões de gazes com efeito de estufa: temperaturas em alta, concentrações de dióxido de carbono a subir, degelo das calotes polares, subida dos oceanos, chuvas torrenciais, secas mortíferas, o rol que afinal já todos conhecemos, sem que isso, no entanto, produza uma reacção global à altura da tragédia eminente.

Por isso, talvez reconhecer nas palavras de Sebald uma espécie de lucidez trágica relativamente ao devir do mundo, caso não sejam tomadas medidas que reconduzam o rio turvo da destruição ambiental às suas margens, impondo urgentemente a redução das emissões poluentes que afectam o aquecimento global. Mas estarão os governantes do mundo motivados para isso? Ou, pelo contrário, indiferentes ao roçar o abismo, falharão a derradeira ocasião de salvar o planeta, deixando as «coisas continuarem como antes» [Walter Benjamin, Passagens, frag. N9a, 1], isto é, resvalando para a «catástrofe futura». Haverá aqui uma visão demasiado catastrofista? Para Ban Ki-moon, Secretário-Geral das Nações Unidas, nem tanto: «O aquecimento global é uma realidade e, se não intervirmos, as suas consequências poderão ser devastadoras, senão catastróficas, nas próximas décadas [...] peço aos dirigentes mundiais que exerçam a sua liderança. Que ajam. [Já] não podemos fazer como se nada se passasse à nossa volta».

Como abrandar, então, esta imensa fornalha vertical cheia de brasas que ameaça transformar a paisagem do mundo num campo de sedimentos intransponíveis, rios pedregosos, árvores calcinadas, despojos de máquinas destruídas, espirais fantasmagóricas de poeira, cidades costeiras alagadas, almas à deriva sob um céu acinzentado? Seguramente não ficar acocorado a um canto à espera da combustão final como prisioneiros numa casa em chamas. Talvez falar. Talvez escrever, porque só as palavras poderão ainda evitar a catástrofe de falhar a ocasião de abrandar o braseiro. Agir.

22 de outubro de 2009

Falemos de Deus


Contra as ressonâncias bíblicas que se ouvem por aí a propósito do livro de Saramago, outra forma de abordar «o teorema perfeito e terrível» de Deus.

Raramente falamos de Deus. E quando a ele nos referimos preferimos a metáfora, como se tudo o resto se descolasse do seu nome. E ainda menos falamos dessa questão «menor» de acreditar ou não acreditar em Deus, preferindo cruzar os braços contra a crença profunda em que nascemos. A verdade é que herdámos Deus mesmo antes de termos conhecido «as suas casas profundas». Na infância, Deus é, como escreveu Soares dos Passos, «aquele que povoa a imensidade». Depois, à medida que nos vamos adentrando no mundo, verificamos que caminhamos mais sós do que desejávamos. Por isso transformamos as perguntas nas respostas que procuramos, enquanto aguardamos pelo teorema da existência de Deus. E deixamo-nos arrastar pelo medo que cobre um mundo onde se apagaram as imagens que o paraíso já não devolve depois da «morte do criador» anunciada por Nietzsche. E desde aí, vivemos no medo de termos ficado órfãos para sempre, como se escrevêssemos um novo e desesperado Livro de Job. Há quem explique esta angústia como um «erro genético» que a todos afecta. Porque todos, crentes e agnósticos, estamos inelutavelmente comprometidos com a dúvida original, oscilando entre um ascetismo puro e uma transcendência luminosa. Talvez, por isso, uns e outros, em qualquer momento das nossas vidas, já tenhamos sentido a falta de Deus. E outras vezes escutado os seus passos, os restos da sua voz no nevoeiro que cobre o mundo. E isso apazigua o medo. E, depois, estranhos de passagem, continuamos o caminho, cépticos ainda, mas com menos frio no coração. Mas será essa estranheza algo que devemos ocultar? Ou, como diz Henry James, «é preciso acreditar na dúvida, porque é isso que faz a grandeza do homem».

Diante da dúvida, que futuro, então, para Deus, num mundo que, ao mesmo tempo que vai perdendo o seu sentido ético, assiste à «instrumentalização política da religião», traduzida nos múltiplos fundamentalismos religiosos que enlouquecem os homens. «Talvez [como escreveu Enrique Vila-Matas] as ideias casuais de tanta gente incerta [...], as inquietações de cada um, dos vivos e dos mortos. Talvez algum dia com fluido abstracto e impossível substancia, formem um Deus ou um tecido novo e com a luz de outra vida ocupem o mundo».

Entretanto, «nas suas casas profundas Deus aguarda que se demonstre/ o teorema perfeito/ e terrível» [Herberto Helder, Última Ciência].

20 de outubro de 2009

Trapezistas do marketing


Confesso que não tenho paciência para seguir a polémica à volta do último romance de Saramago, Caim (Leya) - menos do livro do que das declarações despropositadas, simplistas e arrogantes do escritor sobre o significado histórico e o alcance ético da Bíblia.

É que, de um lado, está alguém que não se limita a escrever um livro e deixar os leitores lê-lo sem mais explicações como conviria a um escritor ciente do seu ofício, mas que insiste em reiteradamente comentá-lo com as qualidades morais, e iconoclastas, de quem se julga superior a Deus por matá-lo uma e outra vez, diria, não tanto por dilema nietschiano sobre a insuficiência divina para dar esperança ao mundo, mas talvez mais por complexo edipiano não resolvido, como ouvi ontem alguém comentar. E que, consciente ou inconsciente, quer-me parecer, vai dando voz a um golpe de propaganda editorial, concebido por «esses homens de negócios que editam livros [...], trapezistas do marketing», como diria Enrique Vila-Matas, que mais não visa do que provocar a polémica para aumentar o número de vendas. E do outro lado, chegam algumas reacções perigosas vindas da parte de um partido, o PSD, que ultimamente tem andado calado e sem opinião sobre as questões pendentes da governação, mais parecendo, portanto, um partido bartlebyano (imitando o personagem Bartleby, o escriturário, de Melville), mas que, hoje, através de um desconhecido deputado europeu opta por exortar Saramago a renunciar à nacionalidade portuguesa, porque não lhe pode lançar uma qualquer fatwa que o faça calar-se para sempre.

Por mim, exorto o escritor a limitar-se a escrever, ainda que não me tenha como leitor, e que quando instado a comentar um seu livro responda como Bartleby "preferia não o fazer". Ao deputado, exorto-o a fazer como a líder do seu partido, isto é, calar-se bartlebianamente. Ou ainda menos que isso.

19 de outubro de 2009

Caminhos cruzados



Pergunta-se W. G. Sebald no micro-ensaio «Uma tentativa de restituição» (in Campo Santo) «quais são as relações invisíveis que determinam a nossa vida, como se estendessem os fios» entre acontecimentos distantes ditados por uma estranha lei que nos escapa. O que liga a prosa anímica do caminhante Sebald ao rasto já há muito extinto do passeante Robert Walser, mas que continua visível no papel? Onde se cruzam as suas biografias? Talvez no facto de Sebald ter vivido toda a sua infância com o avô materno, que não só tinha o hábito das grandes caminhadas como Walser, como, ainda, era muito parecido fisicamente com ele e, se não bastasse essa coincidência, ter também ele morrido na neve enquanto passeava solitário numa paisagem semelhante àquela em que Walser sucumbiu fulminado e que distava apenas cem quilómetros de Herisau e, ao que parece, no dia anterior ao do último aniversário do escritor suíço. Talvez, depois, ainda, na circunstância de ambos remeterem para uma espécie de poética da extinção; em Walser através de elegantes fantasias poéticas que vai traçando, tenuamente, a lápis no papel para melhor desaparecer, uma frase fazendo sempre esquecer a anterior; e em Sebald sedimentada em camadas de esquecimento nos escombros que ele vai escavando através de uma prosa pausada e cadenciada para melhor dar conta do desvanecimento da história. Talvez, ainda, porque, um e outro, entreviam o mundo envolto numa estranha quitetude; Walser caminhando solitário sob a luz cristalina da manhã em busca do espírito da montanha; Sebald procurando resgatar uma moral da natureza. Um e outro procurando uma cintilação qualquer no tecido puído do tempo.

Seriam estas as causualidades que levaram Sebald, em 1997, na primeira sessão do ciclo de lições que proferiu na Universidade de Zurique, a evocar o passeio de Carl Seeling com Walser, nos arredores do manicómio de Herisau, no Verão de 1943 – passeio que aquele, depois, relataria na biografia que lhe dedicou -, precisamente no mesmo dia do bombardeamento de Hamburgo descrito em História natural da destruição? «Não são casualidades – diria Sebald se lhe perguntassem sobre o que o liga a Walser – trata-se apenas de existir algures uma relação que de quando em quando cintila por entre um tecido puído».

Como também não é casualidade eu ter terminado de ler os ensaios literários de Campo Santo e me ter interrogado por não encontrar ali qualquer referência Walser – como se a sua biografia fosse tão delicada e a sua prosa tão leve que tornasse quase impossível seguir-lhe o rasto, mesmo para alguém como Sebald tão habituado em fazer incursões fantásticas nos territórios dos excêntricos cujos sedimentos vasculha nas camadas de esquecimento para onde os seus passos de caminhante solitário e de narrador interpelante o levam sempre que se dispõe a ir por aí, entre ruínas – e, agora, chegar às livrarias portuguesas um ensaio do caminhante alemão sobre o caminhante suíço - e que na tradução portuguesa dá nome ao livro - O caminhante solitário (Teorema) [traduzido de Logis in einem Landhaus, Carl Hanser Verlag, 1998], e onde Sebald vai por ali, sem mapa, perseguindo, desde o ponto de vista da fugacidade – a sua e a de Walser -, a prosa dançante de repente levantada como uma poeira trágica do tempo incapaz de escapar ao seu destino de, uma e outra vez, continuar a ser lida por Sebald e, agora que Sebald também já cá não está, por todos aqueles que se adentram numa literatura de consternação.

16 de outubro de 2009

Desaparecidos em trânsito



Desse caminhante solitário que ocupa um lugar muito particular na minha biblioteca de quarto escuro, W. G. Sebald, chega, agora, às livrarias portuguesas, Logis in einem Landhaus (1998) [Hospedagem numa casa de campo] que na edição da Teorema se apresenta com o título de um dos ensaios que integra o livro, O caminhante solitário, belíssima homenagem a outro caminhante solitário, Roberto Walser - seu vizinho no meu quarto escuro, ambos escritores sem qualidades que partiram em trânsito deste mundo, Sebald numa curva de uma estrada de Norwich, num dia de Dezembro de 2001, e Walser, também num dia de Dezembro de 1956, durante um passeio pela neve nos arredores do manicómio de Herisau onde se refugiara para desaparecer – a quem Sebald descreve como um ente querido que aos poucos se vai dissolvendo no ar «suavemente e sem ruído até um reino mais livre», ou como um familiar próximo que lhe recorda o seu avô Josef Egelhofer: «Walser sempre me acompanhou em todos os caminhos. Apenas necessito suspender um dia de trabalho quotidiano, para logo ver meu ao lado, nalgum lugar, [a sua] figura inconfundível […] olhando à sua volta».

12 de outubro de 2009

Bolañomanias



Anda por aí uma euforia à volta de Roberto Bolaño - uma espécie de hype a que em Espanha e nos EUA já deram o nome de bolañomania - que me parece ser mais incitada, e excitada (se bem que, é justo dizê-lo, editorialmente corajosa), por uma inusitada campanha de marketing para promover um escritor que, como descreveu o seu amigo e escritor Rodrigo Fresán, escrevia caoticamente, «sem rede e sem travões, [deitando] tudo cá para fora». Por isso, vou também desconfiando da verdadeira natureza da receptividade de Bolaño que, à partida, não convidaria a tamanho deslumbramento por não corresponder aos cânones. Mas desconfio, também, daqueles que, cinicamente, sem terem, ainda, lido 2006 (ou qualquer outro livro do escritor chileno) ou, o que será pior, sem pensarem alguma vez vir a lê-lo, se colocam do contra.

Mas, e a bolañomania? Embora incitada, e excitada, por uma causa justa, a de nos pôr a ler Bolaño, não será ela , paradoxal e visceralmente, anti-bolañiana? Quer me parecer que Bolãno, que nunca quis a unanimidade dos juízos críticos sobre a sua obra, nem a admiração massiva dos leitores, nem frequentou os salões e confrarias dos seus pares, certamente desdenharia de todo o estrépito mediático à volta do lançamento - que até teve direito a uma festa, pelo que me contam, pouco bolañiana, que meteu escritores, críticos, actrizes e margueritas - do seu derradeiro romance, que mais do que honrar o desonram, como diria Flaubert. Mas confesso, também eu lá teria estado se não fosse um leitor sem qualidades e periférico, contribuindo, então, também, para para a flaubertiana desonra do escritor chileno. É que, para Bolaño, fama e literatura eram «inimigas irreconciliáveis», como escreveu em 2666, o tremendo romance póstumo que, ironicamente, o transformaria num escritor da moda, visto por alguns como a versão latino-americana de Thomas Pynchon ou como uma espécie de um Paul Auster com cafeína.

Bolãno, que se julgava um solitário intrépido e um detective selvagem, preferia deambular por becos obscuros, cruzar praças desertas noite adentro, refugiar-se em casas vazias, cavar trincheiras debaixo de chuva, seguir através de auto-estradas que não conduzem a lado nenhum, atravessar desertos sob um sol escaldante. E sempre que era apanhado no turbilhão da fama, escrevia, então, um qualquer texto mordaz, onde fustigava, às vezes, cruel e injustamente, um qualquer seu par consagrado e, outras vezes, os seus próprios amigos, a fim de, achava ele, virar todos contra si e preservar, assim, a rebeldia. Por ironia do destino – ou por vontade dos «homens de negócios que editam livros, [dos] trapezistas do marketing, [dos] licenciados em economia», como escreve em O Mal de Montano outro seu amigo e escritor, Enrique Vila-Matas, Bolaño - tal como Kafka, o mais asocial dos escritores, que se tornou um ícone da moda em Praga – foi apanhado pela máquina editorial e a sua efígie anda por aí, colada ao peito, em pins promocionais, como se fosse um novo Harry Potter ou o último Dan Brown ou, o que será, talvez, mais apropriado em termos de uma mistificação editorialmente correcta, um Jim Morrison da literatura, a quem já vi comparado não me recordo onde.

Pessoalmente, prefiro colocá-lo na minha biblioteca do quarto escuro, ao lado de outros escritores sem qualidades, como Cortázar e Borges - que Bolaño convidava a reler uma e outra vez -, ou como Walser, Kafka, Musil, Joseph Roth e Sebald, e outros, todos eles escritores que «viverem errando / na penumbra dos bosques / com a novela perigosa». Bolaño que também viveu errando na penumbra das cidades e que cultivou o romance perigoso, se ainda cá estivesse, observaria de longe a passagem desta fanfarra mediática à volta do seu nome, desdenharia das margueritas - antes beberia um mezcal - e, como um explorador de abismos, partiria, imperturbável e errante, por uma qualquer auto-estrada escura que não conduzisse a lado nenhum.

10 de outubro de 2009

Um investimento na paz


Ao texto sobre Obama que reeditei, aqui, ontem, acrescento, agora, o seguinte. É verdade que também a mim me surpreendeu este Nobel. Não é estranha, por isso, a estupefacção geral, sobretudo, porque Obama não teve tempo, ainda, de cumprir o anunciado programa de pacificação do mundo. Trata-se, então, de um Nobel que lhe foi atribuído não por aquilo que já fez, mas por aquilo que prometeu fazer e que foi - como escrevi no rescaldo da sua eleição - ter sido capaz de incitar, e excitar, a esperança de que, talvez, possa haver, ainda, outras possibilidades para o mundo. Uma espécie de «investimento» na paz, como declarou José Saramago.

Não foi, portanto, um reconhecimento dos méritos efectivos e tangíveis de Obama em favor da paz, mas sim dos méritos potenciais e intencionais de um homem sereno e determinado em ajudar uma parte da humanidade a encontrar a esperança para enfrentar a crise – a económica e a existencial – e à outra parte da humanidade a encontrar a esperança de vencer o terrível desafio da sobrevivência. Por isso, este Nobel constitui um compromisso que eleva a fasquia das expectativas do mundo relativamente ao cumprimento da «promesse de bonheur».

Eu que não lhe exijo tanto, apenas que não esqueça o seu programa contra a inabitabilidade do mundo, de que a Palestina continua a ser o vergonhoso paradigma, desejo ver nesta nomeação - não obstante, aqui e acolá, Obama já ter revelado algumas daquelas patologias da experiência política contemporânea responsáveis por alguns males do mundo - um incentivo a que faça «frente ao inafrontável», não como um super-homem, mas como alguém capaz, ainda, de evitar a catástrofe de «as coisas continuarem como antes», tanto na América como no resto do mundo. Ora, isso é o que parece indignar o coro de inimigos, adversários - e alguns estúpidos - de todos os extremos que andam por aí alvoroçados contra este Nobel, desde os talibans e Hamas até aos falcões israelitas, os saudosistas de Bush, conservadores, neoconservadores e teoconservadores, de que, por cá, José Pacheco Pereira se revela como a mais acabada ilustração ao declarar a sua patética oposição ao Nobel atribuído Obama.

9 de outubro de 2009

Dar outras possibilidades ao mundo


Que significado tem a atribuição do Nobel da Paz a Obama, quando o seu programa de pacificação prometido ao mundo se encontra, ainda, por cumprir? Talvez, a reiteração da exigência de não falhar a ocasião de nos salvar da catástorphe, como diria Walter Benjamin). Por isso, porque continuo a acreditar na promessa anunciada com a eleição de Obama de perseguir outras possibilidades para o mundo e, talvez, a paz, congratulo-me com a sua inesperada nomeação e recupero um texto que escrevi no rescaldo da sua eleição.

No rescaldo da vitória de Barack Obama, ponho-me a pensar se, talvez, amanhã, tudo não será, outra vez, a mesma baixa política – que legitimou gente como Bush e Berlusconi ou continua a entronizar gente como Tony Blair, cada um, à sua maneira, aspirantes a Maquiavel -, e que este homem sem qualidades musilianas que veio do futuro para dar outras possibilidades ao mundo se deixe, também ele, contaminar pela infâmia dos interesses inconfessados, pela interiorização do cinismo e pela amoralidade e demais patologias da experiência política contemporânea que fizeram deslizar o mundo, não apenas para a crise económica profunda de que todos falam, mas, sobretudo, parece ter instalado uma crise sem precedentes da experiência, colocando a humanidade – na expressão de Zygmunt Bauman – «frente ao inafrontável», isto é, sem pontos de referência que nos tranquilizem e nos guiem pelas estradas perdidas que nós próprios vamos fazendo.

Mas hoje ainda não é amanhã, e o que vi na madrugada das eleições – e continuo a ver em vídeos no You Tube - é, entretanto, a imagem de um homem sereno e determinado a ajudar a encontrar o mapa que o mundo precisa para atravessar este deserto do mundo em que se tornou a modernidade fracassada, trazendo a uma parte da humanidade a esperança para enfrentar a crise – a económica e a existencial – e à outra parte da humanidade a esperança de vencer o terrível desafio da sobrevivência. Vi – vejo ainda – «um Presidente que tem uma cara em vez de um esgar e que usa a fala em lugar do balbucio», como escreveu José Manuel dos Santos, na sua crónica semanal na revista Actual/Expresso. Alguém, talvez, ainda, capaz de usar o mandato político que lhe foi oferecido nas urnas para desenterrar do pântano a ética para ali atirada pela iniquidade que transformou a América dos pobres num deserto sem mapa. Talvez – quem sabe? – capaz, ainda, de evitar a catástrofe de «as coisas continuarem como antes», tanto na América como no resto do mundo.

Por isso, recuso o pensamento mesquinho que me assaltou por instantes. E o desconforto nihilista de pensar que à arrebatadora ilusão deste triunfo que anuncia outras possibilidades para mundo, poderá suceder a rápida e melancólica desilusão da sua impotência diante da política de bastidores e de alianças de conveniência. Escolho, então, definitivamente, a audácia de pensar que, mesmo que as contradições do tempo por vir venham a arrefecer o fogo sereno das palavras que cobriram o mundo na noite da vitória, uma coisa que Obama deu à América e que, nos tempos mais próximos, ninguém poderá retirar, foi a de pôr o pensamento a pensar, isto é, de ter incitado, e excitado, o pensamento de que, talvez, possa haver, ainda, outras possibilidades para o mundo.

E a melhor prova disso, dessa rebelião contra a vertigem do vazio da política pós-moderna – mais ainda do que a sua oratória, simultaneamente, emotiva e serena, arrebatadora e racional, disciplinada e inteligente – foi a possibilidade consumada de um militante afro-americano, um advogado dos destituídos, um agitador social e político ter decidido ser Presidente da América para dar outras possibilidades ao mundo, fazendo do seu próprio itinerário vital, da sua vida transformada em narrativa, o seu principal trunfo.

Posto isto, o que poderá «um mundo de qualidades sem homem» (Jean-François Peyret) pedir ao homem sem qualidades musilianas que é Obama? Talvez não aquilo que nem ele nem ninguém jamais poderá devolver ao mundo, isto é, a remissão da nossa vida fragmentada, e muito menos qualquer «promesse de bonheur» (Stendhal). Talvez exigir-lhe, apenas, não falhar a ocasião de nos salvar da catástorphe (Walter Benjamin). E isso já será um programa absoluto contra a inabitabilidade do mundo e o desesperante nihilismo reinante.

6 de outubro de 2009

Um Bolaño menor?



À medida que vou lendo Una novelita lumpen de Roberto Bolaño - que comprei, ontem, na Casa del Libro, em Sevilha - mais esta se vai parecendo com um capítulo perdido de Os detectives selvagens, só que - também me vai parecendo - menos conseguido. Mas o que me parece, apesar de tudo, mais evidente, é a semelhança das personagens do bolonhês e do líbio com as de Belano e Lima, já que ambas as parelhas poderiam vagabundear indistintamente entre Roma e Mexico D.F. sem que nos apercebêssemos qual o seu território ficcional de origem. E, tal como em Os detectives selvagens, não há aqui melodrama nem ambição redentora, a não ser a da ilusão de sobrevivência. Existe sim, o prenúncio de um Bolaño que haveríamos de conhecer, depois, em Os detectives selvagens e em 2666: o Bolaño da piedade difusa, das vidas amarguradas, das frustrações veladas, embora tudo seja aqui, ainda, comedido, subtil, sem a desmesura apocalítica dos seus romances póstumos.

Não sei se esta novelita me revelará, no final, um Bolaño menor, mas sei que a vou lendo com a lealdade que Bolaño me merece e que exige que sejamos capazes de distinguir entre as suas obras perfeitas (Estela distante), interessantes (Monsieur Pain), vertiginosas (Os detectives selvagens), monumentais (2666) e esta novelita lumpen que me vai parecendo, talvez, o seu livro menos conseguido. E, seguramente, seria esta a atitude que Bolaño - que desconfiava da unanimidade crítica - exigiria aos seus leitores mais cúmplices. Que o lessem sem contemplações.