18 de maio de 2010

Hotéis de passagem (I)


Todos hotéis são por natureza lugares transitórios. Alguns são hotéis de passe para amantes ocasionais. Outros são hotéis de passagem para transeuntes nocturnos roçando abismos por cruzar. E outros há, ainda, que são protagonistas de histórias em que a realidade supera a ficção, como um tal hotel Cervantes, situado numa rua do centro de Montevideu que aparece em dois contos de Julio Cortázar e Adolfo Bioy Casares, e que serve de pretexto para uma crónica que Enrique Vila-Matas me enviou faz algum tempo para publicação numa Atlântica por vir.

E porque - ignoro por que motivo - me cruzo, às vezes, com a sombra do escritor catalão, lembro-me de há alguns anos me ter escapado desde Colónia do Sacramento (onde, como viajante acidental, acompanhava a minha mulher num seminário de história ibero-americana) até Montevideu, e de ter errado pelo centro à procura de um velho cinema que por ali havia numa rua arruinada nas imediações da despovoada Plaza Independencia – a Soriano, entre Convención e Andes – e de ter ladeado a fachada espectral, sombria, discreta, banal de um hotel perdido no meio de edifícios feios e de despojos depositados na calçada pela vizinhança, que ostentava um grande letreiro onde se podia ler o nome de Hotel Cervantes. Ignorava ainda o desejo de Vila-Matas de, transitoriamente, aí se hospedar um dia quando for a Montevideu e, sobretudo, o mistério da porta entaipada do quarto 205, protagonista do conto La puerta condenada, de Cortázar, e de um outro escrito por Adolfo Bioy Casares, Un viaje ou El mago inmortal, cujo rumor me chegou em forma de crónica vilamatiana. Ou não fosse, afinal, para isso que servem as portas entaipadas dos quartos de hotéis transitórios.

Se minimamente suspeitasse dos mistérios que se escondiam naquele segundo andar onde viveu durante anos, até à sua morte, o poeta filósofo Emilio Oribe, e onde, também, Jorge Luís Borges confessa ter-se hospedado e sofrido de insónias - «Lembro que fui para Montevidéu. Estava alojado no Hotel Cervantes e às vezes acordava as duas ou três da manhã...» [Alifano, Roberto, Borges, Biografia verbal. Barcelona: Plaza & Janés, 1988] -, teria certamente cruzado o balcão da recepção e, quem sabe, subido ao quarto 205 e, noite adentro, escutado as vozes dos passageiros da noite que pernoitavam no quarto ao lado. Mas não. Distraído dos abismos que uma qualquer rua banal pode oferecer ao transeunte ocasional, passei pelo umbral do hotel sem entrar.

Procuro no google e confirmo que o hotel Cervantes ainda lá está na rua Soriano, em Montevideu (encontra-se actualmente em remodelação com vista a tornar-se num hotel de charme ) e que, por isso, se se concretizar o desejo de Vila-Matas - «se algum dia for a Montevideu, irei visitá-lo e tratarei de alojar-me no segundo piso, numa "pieza chiquita", onde talvez se encontre, ainda, esse grande armário que tapa a misteriosa puerta entaipada» [in Diário volúvel, Teorema]-, é de admitir que possamos ler um conto vilamatiano onde que se escutarão, seguramente, os gemidos de amantes ocasionais vindos do outro lado da porta entaipada atrás do armário, ou não fosse Vila-Matas um coleccionador nato das existências alheias, sobretudo quando essas existências roçam um qualquer abismo que se abre numa noite de insónias no outro lado de um umbral obscuro, ao mesmo tempo que no piso de baixo ressoa uma milonga de Gardel, também ele, tantas vezes, um passageiro da noite montevidiana.

4 comentários:

  1. Vila-Matas desenvolveu, reformulou?, o mesmo episódio que escreveu em «Diário Volúvel».
    Irei estar atento a esse nº de Atlântida

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  2. ...trata-se, efectivamente, do mesmo episódio relatado no "diário", embora muma versão anterior que E V-M me enviou antes mesmo da edição do "dietário" em Espanha. Encontrando-se o mesmo episódio, que não o mesmo texto, editado por cá, naturalmente farei referência a isso. abr.

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  3. ...esta Atlântica já devia ter saído há muito, mas tem andado à deriva. Sairá em julho, em formato moleskine, formato de crise!
    Quanto às "Cidades Invisíveis", de Piglia, estarei atento para me perder nelas.

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  4. Ou em formato portátil, de esplanada? :)

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