6 de junho de 2014

Na cama com Onetti



Por estes dias, no Uruguai, evoca-se os vinte anos da morte de Juan Carlos Onetti (Montevideu 1909-Madrid 1994). A sua derradeira fotografia, dando-se como desaparecido na sua casa de Madrid durante anos depois de se ter exilado do Uruguai, parece contrariar um itinerário pessoal feito de peripécias amorosas, empregos inverosímeis e mudanças drásticas. E, sobretudo, de literatura. Porque todo ele era literatura. Primeiro, como leitor e, depois, como escritor. Também por necessidade de sobrevivência. E, no entanto, confundia-se com um homem comum. Um escritor sem qualidades. Tão poucas que não nos legou nenhuma arca com manuscritos inéditos. Antes um legado prodigioso de artigos, romances e contos que, lamentavelmente, tardam em chegar às livrarias portuguesas.

Até há bem pouco tempo encontravam-se publicados, de uma extensa bibliografia, apenas dois romances: Junta cadáveres (Bertrand, 1976, numa excelente tradução de Pedro Tamen) e O Estaleiro (Edições 70, 1981). Recentemente, e a pretexto da data do centenário do seu nascimento a Relógio d’Água publicou de uma assentada um romance, A vida breve (considerado o primeiro romance moderno da literatura latino-americana), e uma colectânea das suas melhores histórias, Um sonho realizado e outros contos (também, com tradução de Pedro Tamen).

Juan Carlos Onetti era um melancólico como são quase todos os uruguaios. Mas de uma melancolia que só pairava quando escrevia e ficava só com os personagens que atravessavam a zona de sombra das suas ficções. Porque para aqueles que com ele privavam, mesmo que nos últimos anos de vida os recebesse sempre na cama, revelava-se outro, alguém que sabia rir perdidamente. E era daí, da sua cama, que melhor se ria da sua própria sombra e das sombras dos outros. Também da vanidade dos inimigos do literário que rejeitava assim: «... lo que llamamos éxito no pasa de una vanidad amañada: amigos, críticos, editores, modas».

Para a sua biografia de escritor sem qualidades, seguramente mais do que quaisquer outras palavras, valem as que o próprio Onetti escreveu sobre Faulkner, em 1962, quando da morte do escrtor americano: «Descendiendo del reciente difunto inmortal a este humilde necrólogo a pedido, reiteraremos que no fue hombre de academias, de discursos patrióticos, de asociaciones literarias. Y, si se le hubiera permitido escribir sobre su muerte, no habría aportado ni una gota a los chaparrones de cursilería que julio promete sobre el tema y cumplirá, sin duda alguna».

Lembrar Onetti, hoje, é ler os seus artigos judiciosos, plenos de humor e ironia, Mas é também explorar os abismos desse impressionante conto, O inferno tão temido, com a certeza de que esta história de infâmia continuará desafiando os leitores para uma leitura perigosa. E, depois, é perder-se através da improvável geografia de Santa Maria, esse território mítico onettiano – à semelhança da Macondo, de García Márquez, ou da Comala, de Rulfo - onde o escritor uruguaio punha em andamento as histórias dos seus livros.

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