15 de março de 2007

Da literatura


A literatura como «uma tentativa de tornar real a vida», escreveu Pessoa. Ignorava o poeta que algumas décadas mais tarde Enrique Vila-Matas haveria de fazer da possibilidade de introduzir o real na ficção uma marca do seu estilo pessoal através da qual a aparência de verdade levada até ao extremo converte aquilo que no início é apenas verosímil numa nova forma de realidade que não necessita de nenhuma outra explicação a não ser a da evidência da ficção; e de uma ficção que questiona o nosso limitado conceito de verosimilhança e nos transforma em exploradores mentais de mapas obscuros em cuja cartografia abismal nos adentramos para nos aproximarmos mais da verdade.

Trata-se, então, de um conceito de verosimilhança que remete não tanto para aquilo que verdadeiramente entendemos por realidade, isto é, aquilo que acontece, mas mais para aquilo que poderia ter acontecido, que poderá acontecer, introduzindo, assim, na ficção «um sentido de possibilidade» musiliano que transforma as personagens «correntes e vulgares», como, por exemplo, as que atravessam a cartografia vilamatiana de Exploradores de abismos, em expedicionários de mundos paralelos, protagonistas de vivências nunca experimentadas que sobrepõem ao tédio quotidiano com a insolência de quem possui a fórmula mágica que o há-de esconjurar.

Lembram estes exploradores vilamatianos, «esses homens [musilianos] do possível [que] vivem, como se costuma dizer, numa trama mais subtil, numa teia de névoa, fantasia, sonhos e conjuntivos» que constituem simulacros de sentido num mundo que Musil sabe sem sentido, mas que insiste em narrar em O homem sem qualidades (Dom Quixote) apesar de «tudo ter deixado de ser narrável e não seguir já nenhum fio» (p. 827). Por isso, terá inventado «um novo modo de narrar que se constitui em permanente ensaio da vida» e que «abriu, sem fechar, o mais amplo horizonte que se oferece ao romance moderno», respondendo (tal como Hermann Broch) àquilo a que Kundera classificou como o apelo do pensamento, «não para transformar o romance em filosofia, mas para mobilizar, com base narrativa, todos os meios, racionais e irracionais, narrativos e meditativos, susceptíveis de esclarecer o ser do homem; de fazer do romance a suprema síntese intelectual».

Um convite, então, não para um passeio romanesco ao passado, mas para uma longa expedição através dos mapas obscuros do «apocalipse alegre» (expressão que sintetiza, segundo Broch, a forma como os austríacos viveram nihilismo de fin de siècle), cujos abismos cacanianos me disponho agora a explorar num programa de leitura para afrontar o vazio deste «mundo de qualidades sem homem» em que vou vivendo sem nele me despenhar. Isto é, escolhendo a qualidade de leitor sem qualidades, logo, aberto a toda contingência, a toda a possibilidade de leitura que pode surgir numa qualquer dobra das duas mil páginas da monumental edição da Dom Quixote, numa autorizada tradução de João Barrento.

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