18 de junho de 2007

Fascismo de entretenimento




«Há uma organização terrorista europeia, sedeada na Holanda e que actua a coberto do disfarce de produção de conteúdos televisivos. Chama-se Endemol, foi fundada por um holandês, comprada pela Telefonica espanhola e acaba de ser vendida ao muito recomendável senhor Berlusconi», denunciava há duas semanas, com a agudeza crítica que se lhe reconhece, Miguel Sousa Tavares, na sua crónica no Expresso . E fundamentava: «com um catálogo sempre renovável de programas televisivos todos inspirados nos vícios, nas fraquezas e nas misérias humanas, é difícil imaginar alguma organização ou ideologia que, por si só, tenha conseguido causar maiores danos à cultura, à educação e à formação cívica dos povos europeus do que esta sinistra Endemol».

A oportuna denuncia de MST incita-me a reflectir sobre o papel da televisão enquanto estratégia de manipulação do pensamento, perseguindo objectivos inconfessáveis de substituição da experiência do mundo por simulacros da realidade extraídos de uma imanência alienada e pervertida, em que é a próprio «estado do mundo como jogo permanente» que se confunde já com o modo como a televisão nos dá a ver o mundo. Ou «a vida como televisão», como escrevia Eduardo Lourenço no último JL. E se no princípio era a «principialidade das imagens» [Eduardo Prado Coelho] em movimento, hoje essa luz original apagou-se, arrastando o telespectador no torvelinho indiferenciado e indiferente das imagens pelas imagens, já sem ligação com as palavras, elas próprias transformadas em imagens de uma sociedade infinitamente anónima transportada dia e noite para o desaconchego das nossas casas.  Que diria Kafka sobre televisão, se sobre o cinema já dizia que aí nunca é o olhar que escolhe as imagens, mas que são elas quem escolhe o olhar?

Hoje, em televisão, pelo menos numa certa televisão que tem vindo a colonizar o espaço televisivo europeu e, claro está, e muito, também Portugal, tudo vale para aumentar as audiências, sobretudo se nesse vórtice de lixo televisivo se afundar qualquer hipótese de cultura, de educação, de ética. A programação televisiva lê na mesma cartilha do capitalismo pós-moderno, cujo dado principal já não é a Terra girar à volta do Sol, mas o dinheiro girar à volta da Terra, como afirma Peter Sloterdijk, um filósofo alemão de estirpe nietzchiana. E neste vórtice televisivo que tudo arrasta na procura do lucro, parece que com programas como os da Endemol é a própria televisão que enlouqueceu, não deixando lugar àquilo que ela poderia ser em termos de entretenimento inteligente, antes procurando a obscenidade do espectador. 

Longe vão os anos em que Karl Kraus proclamava que o «jornalismo come o pensamento». E, no entanto, essa visão aplicada aos media de hoje parece mais actual do que nunca. Tanto assim que a questão do funcionamento dos media tem vindo a ocupar um lugar central no empreendimento filosófico de Sloterdijk, comparando-os a uma versão contemporânea da arena romana e, logo, reponsáveis por aquilo a que ele chama de «fascismo de entretenimento». Os noticiários, quase todos idênticos, e logo sem atributos que os diferenciem, caíram na imanência do quotidiano filtrado pela máquina televisiva, do qual não conseguem nunca distanciar-se reflexivamente, antes preferindo promover a vulgaridade opinativa, o escândalo obsoleto, o ruído informativo em lugar da realidade autêntica, por exemplo a da miséria inamovível do mundo continuamente sublimada pelo seu tratamento «espectacular». 

De fora fica quase sempre a pedagogia informativa que devia ser a razão dos noticiários. E, sobretudo, o «sentido da possibilidade» aberta aos muitos mundos do mundo, prometida pela luz inicial, mas que, hoje, só talvez a literatura poderá ainda proclamar. E mesmo aqueles programas que se apresentam vestidos com uma roupagem de maior seriedade, mais não fazem do que celebrar um tempo cada vez mais cheio das mesmas «qualidades» [daí a actualidade desse extraordinário romance-ensaio de Robert Musil, O homem sem qualidades, que a Dom Quixote prometeu reeditar este ano] que há muito tempo Walter Benjamin exorcizou. 

Quanto ao entretenimento, exceptuando alguma nova serialidade televisiva, um filme ou outro fora de horas e intervalado por longos momentos de publicidade invasiva, somos arrastados num mesmo vórtice de telenovelas e de reality shows  que encenam a trivialidade bacoca de um quotidiano de indivíduos anónimos temporariamente promovidos ao estrelato de ficção. Ou pior ainda, promovem uma descida ao Maelstrom da indignidade com programas como os produzidos pela Endemol. A mais recente indignidade desta «Al-Qaeda televisiva» como lhe chama MST, é o novo programa em que doentes terminais fazem doacções de órgãos em directo a outros doentes que vão entre si disputar os fígados ou os rins de que precisam para sobreviver.

Dir-se-á que sempre podemos escolher entre o que nos é oferecido. Talvez. E muitos de nós escolhem, quanto mais não seja apagando o televisor. Mas, e a maioria que é incitada (ou excitada) pela máquina televisiva, não será mais escolhida do que escolhedora? Já em 1928, Heinrich Mann escrevia que «é possível habituar todas as grandes massas ao kitsch. E depois é fácil afirmar que elas não entendem nem querem mais nada». Dizer que as massas apenas respondem às luzes incandescentes do divertimento bacoco e daí baixar cada vez mais os padrões de qualidade na programação televisiva é um sofisma perverso. Por isso, o dever de regulação, no respeito pela inteligência, contra a devassa e a iniquidade televisivas, e pela restauração da aura que esmorece perante o influxo de luz incandescente do ecrã caseiro.

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