10 de janeiro de 2008

O passeante libertino


«Não há mais filosofia do que esta: deixar andar, tanto faz, hoje ou amanhã morremos todos, daqui a cem anos que importância tem isto, quem se lembrará de nós? quem se lembrará de mim?», escreveu Luiz Pacheco [1925-2008] em Carta a Fátima. Por isso, passeava-se, apressado, passo largo, pelos becos da vida, transportando na mão um saco plástico cheio de livros e as bombas para a asma, sem enganar ninguém quanto à sua condição de escritor indigente e leitor truculento, sempre com a grosseria e o insulto na ponta da língua, afiadíssima, lançando maldições a torto e a direito.

Colaram-lhe o rótulo de escritor maldito, que ele rejeitava com ruído: «Raios afundem [os que], por ternura de simpatia, escárnio maldoso ou parvoíce me chamam escritor maldito» [Literatura Comestível, 1972]. Seria antes um escritor mal-dizente, sempre pronto a lançar petardos aos grandes e pequenos escritores do momento e, às vezes, mesmo aos amigos mais próximos - que o diga o Saramago cuja literatura disse estar «abaixo de cão» - que tinham de se precaver contra as suas hipotéticas maldições, como bem avisou Baptista Bastos: «Sei que, um dia destes, se lhe der na mona, ele dirá pessimamente de mim soltando casquinadas intermitentes, a sua forma de escárnio e mal-dizer». Segundo rezam as crónicas era um sátiro de meia tijela, libertinário - que é como quem diz, simultaneamente, libertário e libertino -, funâmbulo incongruente sobre todas as cordas da vida, incontinente verbal, provocador nato, aldrabão assumido, preguiçoso de vão de escada, vadio, pedinte, iconoclasta. Segundo o próprio seria uma espécie de «neo-abjeccionista», expressão que encontrou para atiçar a prolixidade taxonómica dos rotuladores de ocasião.

Morreu há dias, com 82 anos, num lar no Montijo, sem ruído, sem prémios, sem idolatrias, deixando atrás de si um rasto de livros, entretanto, esquecidos, muitas cartas inéditas e cáusticas entrevistas que João Pedro George organizou sob o título O crocodilo que voa, com publicação anunciada para breve pela Tinta da China. Como editor contrapontista, abriu o caminho para autores desalinhados no momento como Raul Leal, António Maria Lisboa, Mário Cesariny, Natália Correia e Herberto Helder.

Luiz Pacheco não fazia, não faz o meu género, nem na pele da provocatória personagem que construiu para si nem no estilo que cultivou, mas aqui e acolá dele li fragmentos admiráveis em Textos malditos [Afrodite, 1977], esses despojos da banalidade quotidiana que sob os efeitos de uma «euforia vínica» nos atirou à cara, embrulhados numa prosa aguda, escorreita, sem adornos. Ou então nessa descida dilacerada, mas sem pieguice, aos abismos da vida que constitui o conto Comunidade [Contraponto, 1964]: «Não sei nada. Duvido de tudo. Desci ao fundo dos fundos, lá onde se confunde a lama com o sangue, as fezes, o pus, o vómito; fui até às entranhas da Besta e não me arrependo. Nada sei do futuro, e o passado quase esqueci. Li muito e foi pior. Conheci gente estranha nesta viagem. Pobre gente: estupidos de medo, doidos espertalhões, toscos patarecos, foliões e parasitas da vida, parasitas (os mais criminosos, estes) chulos do próprio talento, desperdiçando tudo: as horas do relógio deles e dos outros e as virtudes deles e dos outros, e os defeitos de todos, que tudo tem seu calor e seu exemplo; ou frustrados falhados tentado arrastar os mais para o poço onde se deixaram cair por lazeira ou cobardia, impotência de criar (mas o coveiro nada perdoa!). Cadáveres adiados fedorentos viciosos de manhas e muito mal mascarados».

Numa das suas últimas entrevistas, à revista Visão, a propósito de um documentário para televisão sobre a sua vida, Luiz Pacheco disse: «Houve agora um filme aí ... Eu recusei-me a ver, porque não vou agora desmentir o que eles lá dizem. Chamei àquilo filme-cangalheiro: morte minha e aquilo ia logo nessa noite para a televisão!». Não se enganou, na noite da sua morte, a RTP2 - quem mais poderia ser? - voltou a passar o excelente documentário Mais Um Dia de Noite, de António José Almeida que tomei como fonte para este post. No final, não pude deixar de recordar um aforismo do filósofo alemão Lichtenberg: «De entre todas as curiosidades que tinha acumulado na sua casa, ele mesmo acabava por ser a maior de todas».

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