14 de fevereiro de 2008

De um outro uso do nihilismo


Numa carta enviada a Louise Collet, em 1850, Flaubert escrevia: «O mundo vai tornar-se tremendamente imbecil. Nos próximos anos, a coisa vai ficar muito aborrecida. É uma sorte vivermos agora e não mais tarde» [Gallimard, 1998]. Flaubert antecipava, então, o apogeu da banalidade num mundo em que a gente dita ilustrada começava já a mover-se sem ética nem estética, prenunciando «um tempo - acrescentava ainda - em que toda a gente se terá convertido em homens de negócios ». Flaubert que se dava como desaparecido nos distintos cenários da sua obra narrativa elegia a sua correspondência privada para comentar com contundência a vida cultural, política e social do seu tempo.

Ora, mais de um século e meio depois, a sua visão de um tempo marcado, não tanto pelo tédio mas sobretudo, agora, pelo vazio e pela mundanidade frívola, em que quase todos parecem ter-se convertido em homens de negócios, a contundente opinião de Flaubert adquire uma particular actualidade quando o que mais encontramos por aí são analfabetos altivos desprovidos de ética e estética, mas não de ambição económica, fetichistas gulosos dos bons lugares na sociedade, hedonistas indiferentes aos males do mundo, despudorados trapezistas do marketing. E uma massa de gente vivendo com a implacável consciência de uma quotidianeidade penitenciária sem outros sobressaltos que não os das notícias sobre a violência urbana, sobre os acidentes de trânsito, as explosões domésticas de gás, os fumos de corrupção e prevaricação e a crescente insegurança do emprego que nos transmitem uma profunda sensação de tédio que se vai derramando horizontalmente, homogeneizando tudo à sua volta, devorando as possibilidades alternativas de vida, reais ou imaginárias, como se nada mais houvesse fora da experiência de vida asséptica e anódina que aí está.

A banalidade quotidiana é-nos cada vez mais imposta - escreve Bruce Bégout em Lieu commun- Le motel américain [Allia] - como uma «fatalidade absoluta» em que a vida deixou de ser aquela experiência singular tão exaltada no advento da primeira modernidade para se tornar num processo de «produção seriada» ou, utilizando uma imagem mais contemporânea, no produto de implacáveis máquinas de marketing que visam distribuir por todos milagrosas doses de divertimento. Eis onde Flaubert não acertou. É que, se bem antecipou o triunfo do aborrecimento no apogeu do primeira modernidade, não poderia imaginar que o hedonismo indiferente que se vai espalhando por aí é determinado pela natureza pulverizadora do nihilismo pós-moderno, incoincidente com a noção de tédio geradora de opções transgressoras de vida ou de revolta social que marcou a experiência de vida no século passado. E neste torvelinho do divertimento - mas não da festa -, entregues sem remissão a licenciados em economia e a trapezistas do marketing, vai-se diluindo também a vontade de escaparmos à «colonização do quotidiano» e de nos concedermos outras possibilidades que não sejam as das qualidades homogeneizadas que nos são incitadas e excitadas. Entretanto, marcados pelas novas patologias do nihilismo, vamos caminhando para a uma espécie «apocalipse alegre» [Hermann Broch], como que procurando divertirmo-nos até à morte [Neil Postman, Amusing ourselves to death, Penguin].

«Homens de negócios», portanto, como antecipou Flaubert, aparentemente sem atributos, mas que na realidade possuem todos os atributos. Ou na formulação de Jean-François Peyret dizer, então, que vamos vivendo num «mundo de qualidades sem homem» [«Musil ou les contradictions de la modernité», in Critique, 1975]. O que ilumina o sentido da enigmática frase de Musil sobre «as experiências vividas sem que ninguém as viva». É que as qualidades em nós incitadas, e excitadas, vão-se cristalizando nas figuras aborrecidas que vamos habitando ou nas ideias de todo o género que adoptamos sem nos apercebermos do que a vida pode ter de dissonante, de criativo e de espontâneo.

Talvez, então, pensar, ainda, como Musil, esse homem sem qualidades, que em Die Schwärmer (Trad. francesa Les Éxaltés, Seuil,] dizia que se entre os homens há um sentido da realidade, deve haver também um sentido da possibilidade. E é nessa possibilidade que, embora vagamente nihilista à maneira da primeira modernidade, me reconheço.



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