25 de março de 2012

Recordações inventadas


"Afirma Pereira que o conheceu num dia de verão. Um magnífico dia de verão, soalheiro e arejado, e Lisboa resplandecia…". Eu conheci-o, tardiamente, graças ao filme Afirma Pereira, de Roberto Faenza, adaptado do romance homónimo, protagonizado por Marcelo Mastroianni. E, depois, perseguindo a sombra de Vila-Matas em Mastroianni-sur-Mer perseguindo a sombra Tabucchi, passos rápidos, olhos baixos, alheado do mundo, perseguindo, por sua vez, a sombra de Pessoa pelos cafés da Baixa de Lisboa onde, tal como o poeta antes da sua morte, num delírio de ser outro, esperava encontrar os mesmos fantasmas que haveriam de ajudá-lo a escrever o Requiem de Pessoa. 

"Que língua falam os mortos que regressam à força?", pergunta Tabucchi. Ou, como diria Roberto Bolaño: "Que livro teria coragem de oferecer a um condenado à morte? "Que afirmaria Pereira, em memória de Tabucchi que, parece, cultivava a elegia dos escritores desaparecidos? Talvez afirmasse, como um dia afirmou o seu amigo José Cardoso Pires, que "de conto em conto de Tabucchi, de estação em estação, adentramo-nos nos derradeiros continentes, que são os sonhados por outros solitários: Pessoa ao desdobrar-se em várias máscaras, Scott Fitzgerald e o seu bando de desesperados vivendo a literatura na Riviera da dolce vita". Pereira desdobrando-se em Mastroianni no filme de Faenza, Tabucchi desdobrando-se, através sua recordação inventada, nos heterónimos de Pessoa com uma "assombrosa lucidez / em que como outro a gente está", como escreveu Pessoa ele mesmo no seu Cancioneiro

E eu, agora, sem jeito para elegias fúnebres, reinventando as recordações inventadas de Tabucchi no legendário bar oceânico Peter's Café Sport, na cidade da Horta, bebendo um fulminante gintonic, e apropriando-me daquele "sonho em forma de carta", espécie de Moby Dick em miniatura como chamou Enrique Vila-Matas a esse breviário atlântico que é a Dama de Porto Pim que, de vez em quando, me leva num velho baleeiro à deriva entre ilhas e recifes a ver as "montanhas de fogo, vento e solidão" dos Açores. E, depois, ali, naquela taberna atlântica, à hora do crepúsculo, sob o reflexo da luz declinante lá fora, escutar como num búzio a velha guarda de baleeiros que perderam as graças do mar narrando histórias, reais e outras imaginadas, de baleias e "homens que às vezes cantam, mas só para eles, e o seu canto não é uma reclamação mas sim uma forma de lamentação desgarrada (...) se afastam deslizando em silêncio e é evidente que estão tristes". 

Ficções breves, escavações na memória, anotações metafísicas, notas de pé de página, cartografias, crónicas, bibliografias. Mais do que uma geografia das ilhas dos Açores, toda uma geopoética da alma açoriana. E a recordação inventada de Antero de Quental - influenciada, talvez, pelas Vidas imaginárias de Marcel Schwob ou pelas Vidas de Dubin, de Malamud - que num delírio de querer ser outro e não o conseguir, regressado de Lisboa a Ponta Delgada, naufraga de si mesmo num banco verde em frente do mar, disparando por duas vezes contra si próprio um revólver. 

Volto a pensar no que afirma Pereira que numa tarde de Outono visitou Tabucchi para lhe contar a sua história de tomada de consciência política e mudança existencial e recordo que, para além de inventor de recordações e de fazedor ficções, Tabucchi foi, também, um escritor comprometido com o seu tempo, denunciando Berlusconi e o falso mundo do espectáculo político que criou a seus pés graças ao seu império mediático. 

Custou-lhe cara essa denuncia, pois farto do espectáculo infame em que se transformara a cena política italiana, acabaria por refugiar-se em Lisboa onde não mais deixaria de perseguir Pessoa, indo ao encontro da sua íntima vocação de fazer da sua obra um lugar de encontro entre duas culturas, tornando-se, como diria Pessoa num "fantasma errante em salas de recordações" entre a sua Lisboa povoada de heterónimos pessoanos e as ilhas dos Açores "povoadas por gentes que veneram paixões e adoram deuses como o amor ou o ódio ou o Deus do ressentimento, mas que, como num mapa interior, são reais apenas num sonho em forma de carta", como escreveu Enrique Vila-Matas. 

António Tabucchi morreu, hoje, em Lisboa, numa manhã de melancolia, e foi a enterrar no cemitério dos Prazeres, a sua sombra agora definitivamente transformada no heterónimo italiano de Pessoa que já lá estava à sua espera para - quem sabe? - ao crepúsculo, saírem ambos em passeio pela Baixa e depois se sentarem na margem do Tejo "meditando em vão". 

1 comentário:

  1. No meu alentejo recôndito, como me fazem sentir no centro do "mundo", as suas belas publicaçôes.

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