15 de setembro de 2010

Borges nocturno



Borges adorava caminhar, sobretudo de noite. Dos meus retratos de momento sobre o poeta argentino recupero duas notas sobre esse passeante nocturno.

A primeira, roubei-a às memórias do fotógrafo Horácio Coppola que conta que, numa noite chuvosa de 1936, caminhando juntos pelas ruas de Buenos Aires pararam diante de uma poça. Coppola ajustou a câmara e disparou. No espelho de água, estava reflectida a silhueta de uma casa do bairro de Palermo. Quando viu revelada a fotografia do amigo, Borges exclamou: «Isto é Buenos Aires».

A segunda nota reenvia-nos para um outro passeio nocturno, muitos anos depois, na companhia de Maria Kodama e do seu tradutor para inglês, Willis Barnstone. Conta Barnstone, em With Borges on na ordinary evening in Buenos Aires, que na noite de passagem de ano de 1975, depois de um bom jantar regado, com abundante vinho, depararam-se com uma greve de transportes e decidiram acompanhar Kodama a casa. Barnstone recordaria depois esse episódio: «Na semi-obscuridade e através do vento, atravessámos lentamente Buenos Aires. […] As horas passavam e Borges parecia cada vez mais encantado com os ruídos da rua». […] «De repente passou um inesperado carro eleéctrico e Kodama saltou para o seu interior deixando-nos a ambos à deriva». […] «Como regressar a casa se um era cego e o outro um estrangeiro que desconhecia as ruas da cidade?» […] Misteriosamente Borges começou a caminhar, parando de dez em dez passos. Pensei que o fazia porque se julgava perdido. Mas não, toda aquela exaltação era porque me queria falar da sua irmã Norah, da sua infância, dos seus antepassados».

Isto era Borges, um passeante nocturno que jamais se perderia na sua Buenos Aires inventada.

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