19 de março de 2010

Istambul desaparecida


Fui a Istambul pelos passos de Orhan Pamuk, perseguindo uma cidade secreta, descrita «em dois tons, como a cor do chumbo, semiobscura, no estilo das fotografias a preto e branco» do fotógrafo Ara Güler. Fui para descobrir uma cidade desaparecida ou, pelo menos, invisível ao olhar do turista fortuito, mas que, ainda, é capaz de se revelar ao viajante que ousa «perder-se [nela] tal como é possível acontecer num bosque», o que «requer instrução», como um dia disse Walter Benjamin. Fui, por isso, desde o meu hotel, na praça Taksim, mapeando as ruas secundárias de Beyoglu, de Gálata, de Cihangir, de Fatih e de Zeyrek à procura do aleph que todas as cidades escondem e que, ali, é a paisagem a preto e branco cuja «beleza reside na sua tristeza», como escreveu Ahmet Razim, também ele um cronista desta cidade nervosa que tem um pé na Europa e outro no Oriente próximo.

Fui por ali como um expedicionário de memórias alheias - as memórias de Orhan Pamuk que me chegaram através das páginas lentas, quase proustianas, do seu livro Istambul: Memórias de uma cidade (Editorial Presença) e que constituíram a minha prévia e necessária «instrução» para me perder na cidade inquieta, simultaneamente real e onírica, mas também as memórias de ilustres viajantes estrangeiros do século XIX; como Meeling que nos legou em Voyage pitoresque de Constantinople et des rives du Bosphare esplendorosas gravuras das paisagens do Bósforo; ou Nerval que em Voyage en Orient compara a exuberância da Rua Grande de Pera, hoje a Avenida Istikal, a Paris; ou Gautier que em Constantinople narra o seu périplo melancólico pelos subúrbios assombrados de Üsküdar, Karaköy e Byazit; ou Flaubert que nas cartas que envia desde Istambul fala do frio da cidade e do vento poyraz que sopra do Mar Negro encapelando as angras.

Fui por ali, também, recordando o que o escritor, político e viajante Manuel Teixeira Gomes escreveu, em Miscelânea, sobre Istambul, onde aportou num dos seus périplos mediterrânicos. «Já na minha última visita a Constantinopla, onde eu andava algo febril e depauperado por uma dose de malária, apanhada nas ruínas de Éfeso, uma ou outra dessas figurinhas [do sarcófago de Alexandre] me aparecera de fugida, e sempre nos cemitérios que são o que ali há de mais helénico. Os cemitérios de Constantinopla! Lembra-se? O bosque de ciprestes em Scutari, mostrando ao fundo das suas infinitas ruas a perspectiva risonha do Mar de Marmara; e a poesia dos pequeninos cemitérios de Gálata, fechados em tuias e alcatifados de tulipas! E os encontros nessa inverosímil cidade, que são como em nenhuma outra parte inesperados, sugestivos, fugazes e estranhos. É uma incessante parada que levanta do pó dos séculos as mais pitorescas e formosas criações. Dias há que nos parece que as estátuas antigas desceram dos seus pedestais, e as odaliscas se evadiram dos gineceus e vieram espairecer pelas «Águas-doces-da-Europa, ou pelos bazares de Istambul. Ou misturar-se ao formigueiro humano que enche continuadamente a amplíssima ponte que fecha o Corno de Oiro».

Fui por ali, não tanto para atravessar a floresta de banalidades urbanas circundantes, mas para até mesmo na topografia turística descortinar desde o Bósforo, tal como Manuel Teixeira Gomes a viu, uma Istambul «armada no coração do mundo, com as mil lanças dos seus minaretes», com torres, palácios, mesquitas, colunas e cúpulas. O esplendor desvanecido da Hagia Sofia; a incandescente visão da Mesquita Azul com os seus seis minaretes rasgando os céus; o harém do Palácio de Topkapi; a estação Sirkeci onde durante anos terminava a linha do Expresso do Oriente, com gente anónima com malas chegando e partindo; mais gente anónima apressada atravessando a ponte Gálata por entre uma chusma de pescadores à linha que ali gastam o tempo e a vida; o Grande Bazar em cujo labirinto de vozes e coisas se pode achar desde os brocados gregos ao açafrão iraniano, do vidro de Alepo aos tecidos listrados do Iémen; e o Bazar das Especiarias com os seus mil aromas e texturas visuais.

E fui por ali, sobretudo, à procura de uma Istambul secreta sedimentada em camadas de esquecimento que, como escreve Pamuk, se escondem sob «o arco mais modesto, a fonte mais pequena enterrada em toneladas de betão, a mesquita mais pobre nos bairros afastados, por maltratados e esquecidos que estejam, fazem sentir com dor aos milhões de pessoas que vivem entre essas memórias - tanto como as grandes mesquitas monumentais e os edifícios históricos da cidade - que são resíduos de um grande império». Vestígios esquecidos de uma Istambul de prodígios e raridades acesas que se negam em desaparecer e que irrompem nas entranhas de ruas secundárias; na penumbra dos seus tugúrios míticos de casas de madeira vazias e cambadas. Nos seus cafés e tabernas com mesas de mármore onde se sentaram os escritores solitários do hüzun - a melancolia turca - agora a abarrotar de desempregados e delicados saracoteares de chávenas de chá, e onde também eu me sentei a beber raki. Nas livrarias vazias de alfarrabistas encaixadas em passagens secretas onde procurei um livro inexistente do turcófilo Pierre Loti; nas velhas barbearias, outrora lugares de discussão política e, onde, hoje, os poucos clientes discutem as rivalidades futebolísticas locais. No cântico do muezzin que se evola nos ares sobre a penumbra dos entardeceres e se confunde com o pregão monocórdico dos vendedores de simit. Nos olhos cor de uva das mulheres de lenços islâmicos na cabeça, intangíveis, suspensas no tempo nas paragens de autocarros; nos vapur a abarrotar de gente no ir e vir sem fim entre a Europa e a Ásia. Nas docas de Sirkeci e Eminönü fervilhando de gente apressada no ir e vir sem fim entre a Europa e a Ásia. No cais de Karakoy, onde desembarcam os desempregados russos e romenos e as "Natachas" que logo se prostituirão ali perto, nas ruelas dos antigos bordéis.

Fui por ali, cruzando o Bósforo num vapur, o proyaz, o vento que sopra do Mar Negro, açoitando-me o olhar, e vi, como Orhan Pamuk, a silhueta fugidia de Istambul desfilando à minha frente «com todo o peso do seu caos, com as suas mesquitas, os seus bairros afastados, as suas pontes, os seus minaretes, as suas torres, os seus jardins». O vapur correndo no meio de rápidas correntes, no meio da sujidade, do fumo e do ruído. «Ventos, ondas, profundezas, trevas». As margens esmagadas por altos edifícios que ocupam agora um território onde antes havia grandes konak e yali de madeira rodeados de jardins com ciprestes e habitados paxás loucos, e que foram incendiados para instalar o novo turismo; os estaleiros abandonados apodrecendo insidiosamente nas margens maltratadas; as chusmas de pescadores à linha nos cais pacíficos de Besiktas; os gatos que espreitam os pescadores por entre os plátanos da marginal; os dolmus apinhados de passageiros, na sua marcha lenta, à beirinha da margem; os restaurantes com ramadas sobre ancoradouros onde acostam barcaças trazendo anchovas e sargos que saltam directamente para as frigideiras.

Fui por ali e na esplanada do Café Pierre Loti, na "colina dos mortos", na penumbra do eclipse, por entre o preto e o branco, pareceu-me ver, por instantes, a mesma beleza triste e aquática de uma Lisboa desaparecida.

(alto: foto de Ara Guler)