Um livro absolutamente vilamatiano, no sentido em que V-M é aqui, ao mesmo tempo, um ensaísta que narra e um contista que ensaia, como confirmam os maravillosos ensaios do segundo livro de Diario voluble e, sobretudo, uma espécie catálogo comentado das suas leituras intitulado Para acabar con los números redondos, autêntica galeria de retratos de momento que integram a sua biblioteca de quarto escuro: "Tan descontente estava Alberto Savinio con las enciclopedias que se hizo la suya propria para su uso personal. Lo mismo creo haber yo hecho con la literatura de este siglo, pues en un cuarto escuro de mi casa he reunido a todos mis autores preferidos": Walser, Joyce, Gombrowicz, Céline, Roussel, Kafka, Schulz, entre outros bartlebianos e shandianos. Fecha o livro uma última secção com o título equívoco Notas que dá continuidade à "geografía personal" vilamatiana sem a qual, confessa V-M, "no sabría vivir".
O que me leva, então, a atravessar como um funâmbulo da leitura as cordas que V-M estende sobre os caminhos da literatura buscando novas estações de luz nos interstícios de metáforas apagadas da experiência quotidiana? Precisamente o processo vilamatiano de «desfamiliarizar uma experiência e dela se apropriar como ficção». Não, portanto, uma qualquer intenção de estilhaçar prescrições formais ou normas de conduta narrativa. Não uma vontade de subversão da realidade e da sua substituição pela fantasia, pelo mágico, pelo mítico. Mas um impulso irresistível de tratar o ensaio conferindo-lhe uma dimensão narrativa, e ficcional, onde convivem o diário, a autobiografia e a biografia inventada, o conto, a digressão, a citação literária enquanto formulações retóricas inventadas para contar uma vida absolutamente maravillosa.
Uma visão aristotélica de representação ficcional muito próxima da imitação do real. Verosimilhança, portanto. E verosimilhança que em Vila-Matas se manifesta na sua capacidade de assumir o evidente sem pedir explicações à evidência, segundo uma teoria que li já não sei onde. De buscar possibilidades ficcionais na vida de todos os dias. De convocar a sua experiência pessoal, vivida e, depois, efabulá-la. De explorar abismos reais e imaginários, e observar horizontes plausíveis e, às vezes, precipitar-se no vazio. De cruzar personagens reais e fictícias. De navegar à bolina no fragmentário e no rasto do casual ou da memória súbita de livros, vidas, citações perdidas. De convocar o acaso para determinar destinos de vidas alheias, às vezes, a sua própria vida ou a de um narrador que se parece demasiado com ele próprio. De levar-nos a acreditar e, ao mesmo tempo, a duvidar do que julgamos verdadeiro ou falso. De domesticar a fantasia mais inverosímil sob o manto diáfano do real e de esconder a realidade mais verosímil sob a insolência da fantasia mais cintilante. Uma forma e uma fórmula, afinal, de E V-M se posicionar diante da literatura e da vida, como ele próprio confessou no citado artigo sobre Duchamp: "una forma de tener, como minimo, dos versiones de un mismo tema: él mismo. Por eso a veces juego con el gato de Schrödinger que encarna la paradoja cuántica de estar vivo y muerto a la vez. En otras palabras, juego a no ser Duchamp y serlo."
Daí, levar-nos a acreditar, a nós leitores, funâmbulos também na corda bamba da escrita vilamatiana, que toda a ficção é real e que toda a realidade ficcionada é uma nova realidade que somos convidados a explorar como expedicionários de um território que existe «fora daqui» e onde, aí sim, sugere Vila-Matas, nos adentramos na vida. Até porque, como escreveu Pessoa, "a literatura não é mais do que uma tentativa de tornar real a vida".
"Que tengan ustedes muy buenas noches y una vida absolutamente maravillosa", despediu-se E V-M no artigo sobre Duchamp. Eu, certamente, irei ter uma boa noite de leitura maravillosa.
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