27 de julho de 2007

Anjos caídos


A imagem que guardo de Beirute é a que me é oferecida pelo fotógrafo americano Spencer Platt que, em 15 de Agosto de 2006, primeiro dia do cessar-fogo no conflito entre o Hesbollah e Israel, fotografou o regresso a casa de milhares de libaneses. Um descapotável vermelho, impecável, com quatro jovens vestidos com roupas ocidentais, passando lentamente num cenário de destruição e ruína. «Demasiados edifícios ruíram, amontoou-se demasiado entulho, são intransponíveis os sedimentos», diria, talvez, W. G. Sebald se pudesse ver esta fotografia.

Mas Sebald já cá não está, e por isso, nada dirá do descapotável vermelho avançando num cenário de fachadas e paredes calcinadas como se liberto do lastro de tragédia dos dias que passaram planasse agora num campo de ruínas. Nem dos rostos bonitos, das peles bronzeadas, da pose altiva da rapariga ao lado do condutor, espécie de anjo caído entre destroços. E toda a aura desta fotografia está nessa descontinuidade esplendorosa.

Quando há semanas estive perto da fronteira sírio-libanesa e me senti tentado a seguir pela estrada de Beirute confiando nas notícias dos que faziam o caminho inverso, era esta a imagem que eu guardava da cidade. Uma cidade em ruínas, mas pronta para todos os recomeços. Anjos pairando numa pausa da guerra. Há nesta fotografia uma espontaneidade prosaica, acidental, cujo efeito imediato é o de uma espécie de «congelamento» do real, de apaziguamento da violência, colando-se ao próprio referente, como se fosse este a «aderir» à fotografia e não o contrário [Roland Barthes, A Câmara Clara]. Trata-se aqui daquilo a que José Gil chama uma «imagem-nua», cuja descontinuidade temática a esvazia de todo o mimetismo, ganhando «uma existência em si, [que] já não circula como um simples reflexo, circula na experiência» [Roland Barthes, ibidem].

Ocorre-me, então, a antiga figura retórica da hipotipose que Kant definiu como «apresentação» [Crítica da Faculdade do Juízo]. Melhor seria dizer, talvez, «presentação» [como o francês «monstration», pois trata-se de mostrar marcas, traços, vestígios sob a aparência, isto é, em sentido literal, «pôr debaixo dos olhos» aquilo que, muitas vezes, só nos chega através do filtro das agências noticiosas. [«L´hypotypose est cette figure, telle que nous la trouvons dans la Rhétorique à Herennius, qui expose les choses d úne manière telle que l´affaire semble se dérouler et la chose se passer sous nos yeux» (Quintiliano, Retórica - ad Herennius -, livro IV, 68, cit por João Barrento, in Escrito a lápis].

E não será isto o fotojornalismo, na sua tentativa de captar, de dar a ler a actualidade, fazendo-nos participar na experiência dialéctica «mostrada» através da fotografia? Isto é - como diz Walter Benjamin n´O Livro das Passagens -, «a imagem lida, que o mesmo é dizer a imagem no Agora da sua possibilidade de ser conhecida, trazendo consigo, em alto grau, a marca do momento crítico e de perigo subjacente a toda a leitura» [Passagen -Werk, N 3, 1]. É que a relação desta fotografia com o momento histórico em que foi tirada é muito mais do que apenas temporal, é essencialmente imagética, e por isso susceptível de perdurar numa qualquer prega do vestido do tempo, sem outra retórica que não seja a do demonstratio da destruição assassina, e também a de uma certa «aura» imagética contra as reminiscências da guerra.

(P.S: Reflexão inspirada a partir de anotações de um ensaio alheio [João Barrento, in Escrito a Lápis] sobre a problemática da imagem)

Esta e as restantes fotografias da World Press Photo podem ser vistas em Portimão até ao dia 22 de Agosto.

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