24 de agosto de 2007

Os cornos da actualidade


O que procuro nos jornais, nas televisões? Talvez uma certa forma de, expeditamente, apanhar o que cai dos dias. Ou, dito de outro modo, uma certa forma de entrar pela «janela» da actualidade que deveria permitir olhar para lá do horizonte da informação dita «objectiva». Porque no jornalismo, como na literatura também, e não apenas, a questão é política e não pode ficar refém de uma pretensa comunicabilidade teoricamente insustentável, quando o que deveria estar em causa seria responder ao acontecimento através de estratégias discursivas capazes de levar aqueles que o apreendem através das janelas mediáticas a repensarem a actualidade sem a urgência imposta pelas máquinas mediáticas contemporâneas. Ora isso é cada vez menos possível nas novas paragens do discurso jornalístico que, caído no torvelinho da imanência, «come o pensamento», ignorando o papel crítico que lhe deveria estar reservado na constituição da experiência contemporânea. 

Já aqui falei de como os suplementos literários foram banidos dos jornais. Mas não apenas. Que pensamento se encontra hoje no Público, no DN ou mesmo no Expresso? E nos vários telejornais? Apenas um vazio prenchido pelo lisonjeamento de uma comunicação sujeita a retóricas que pouco ou nada têm a ver com o processamento crítico da actualidade. Neste começo de século, tal como no princípio do século vinte, o «jornalismo come o pensamento», como dizia Karl Kraus. 

E, no entanto, é possível, ainda, um jornalismo (como uma literatura) empenhado em apanhar o que cai dos dias, isto é, empenhado em apanhar a actualidade «pelos cornos», sem nos coagir, antes levando-nos a agir contra uma certa forma de nihilismo pós-moderno que nos torna cada vez mais passivos, indiferentes, espectadores mais ou menos obscenos de um mundo sem remissão caminhando para um «apocalipse alegre», conforme a fórmula aparentemente catastrofista com que Hermann Broch descrevia o nihilismo austríaco das primeiras décadas do século passado. Trata-se de um jornalismo que, mais do que informar «objectivamente», joga a sua essencialidade na forma como mostra o acontecimento, isto é, como retraça a actualidade através de uma escrita que não rejeita, antes afirma o exercício do juízo e da tomada de posição contra a vacuidade dos «livros de estilo» e da lisonja da comunicação. 

Mas esse jornalismo é hoje excepção, já não define padrões, muito menos serve de modelo, como  diz Rui Bebiano em resposta a um comentário que lhe deixei no seu próprio comentário ao livro A Face da Guerra, de Martha Gellhorn que a Dom Quixote acaba de publicar, também ela uma jornalista de excepção, «que não receia a polémica, que informa mas também se emociona e toma partido – e não engana o leitor, pois assume que o faz –, [um jornalismo, portanto] que se distingue e permanece para além do instante», escreve Bebiano. E, claro, há mais excepções  contra o mercantilismo jornalístico vigente e este texto teria um tom vagamente nihilista se não convocasse para aqui uma dessas excepções que, às vezes, quando menos se espera vêm assaltar as nossas convicções.

Por exemplo, a reportagem de Clara Ferreira Alves, publicada na Única (in Expresso, de 21 de Julho de 2007), com o título Vidas Ocupadas. O que faz, então, CFA de quem me habituei a ler,  semanalmente, com proveito, a sua Pluma Caprichoa, nessa reportagem sobre a «muralha» de ódio que vai rasgando a paisagem bíblica da Palestina, espartilhando judeus e árabes? Desde logo, a reportagem diz menos do que mostra. E ao preocupar-se com o mostrar responde expeditamente ao «acontecimento» que é a construção da «muralha» de mil quilómetros de comprimento por oito de altura que se vai fechando sobre as vidas de 300 mil palestinianos. CFA mostra-nos a mesma Jerusalém que Amos Oz descreveu como «uma desordem mental muito arreigada… uma espécie  de “síndrome de Jerusalém”: uma pessoa chega, inala o ar puro e maravilhoso da montanha e, de repente, inflama-se e pega fogo a uma mesquita, a uma sinagoga ou a uma igreja». 

Quando CFA lá esteve a fazer esta reportagem era Outono e uma luz morna derramava-se sobre as torres, muros e minaretes da cidade como vergando-a ao peso das religiões. CFA mostra-nos tudo rigorosamente vigiado, polícias e soldados nas ruas, grupos de judeus ordodoxos conspirando nas esquinas contra uma parada gay que iria realizar no dia seguinte, uma tensão no ar prestes a explodir a qualquer momento; mostra-nos judeus às arrecuas diante do Muro das Lamentações que parecem saídos do qualquer «shtetl» de Varsóvia; mostra-nos a Esplanada das Mesquitas onde começou a terceira Intifada depois da provocação de Sharon; e, mostra-nos, sobretudo, uma muralha serpenteando como uma mancha na paisagem abandonada por Deus, cortando ruas e estradas, quintais, hortas, vizinhanças, mas também feridas abertas, ódios acesos. Medo. «Sou contra, mas é eficaz», diz o poeta Israel Eliraz . Uma nova forma de roubar a terra e a água palestinianas, uma humilhação, dizem os palestinianos. E as duas respostas são verdadeiras, diz-nos CFA que nos mostra, ainda, que «quando o Muro estiver terminado, a Cisjordânia será dividida em bantustões». E mostra-nos o fraticídio entre a Fatah e o Hamas, transformando Nablus num lugar assustador, balas assobiando no ar, ambulâncias a recolher feridos. E muito dinheiro sujo. CFA mostra-nos o que viu saída de Nablus, ela uma mulher europeia identificada sofrendo nas «filas de mulheres e homens debaixo de um calor tórrido, gente de todas as idades aguardando como animais a passagem da cancela, e sendo tratadas de modo displicente pelos soldados israelitas, um bando de miúdos malcriados […] rapazolas humilhando mulheres mais velhas […] tocando-lhes como se fossem gado […], crueldade e medo».

Estes os sinais da actualidade que CFA leu na sua passagem por Jerusalém e pelos territórios ocupados. Sinais, sobretudo, de vidas ocupadas. Dos dois lados. Sim, mas mais do lado dos palestinianos, porque, dizia-me há semanas Fouad, um palestiniano que mora em Hebron e que conheci em Amann, «a paz sim, claro, quando nos devolverem os territórios». Mas também Amos Oz cuja História de Amor e Trevas me mostrou o outras possibilidades de pensar o conflito, sem afecção ao que até há pouco, para mim, era o politicamente correcto.

Eis o que também procuro nos jornais, nos noticiários das televisões. Um jornalismo que tome posição sem afecção pelo politicamente correcto, como esta reportagem de CFA, cujo ponto de vista não é seguramente o da «objectividade» jornalística que muitas vezes mais não é do que uma forma nihilista de não questionamento «acontecimento». Aqui, mais do que dizer o muro, o importante é «dinamitá-lo», mostrando o drama das mulheres da Palestina que intentam atravessá-lo. E a CFA estava lá e nós, leitores de jornais,com ela. E isso é o jornalismo ainda capaz de forçar a pensar. Porque mostra, retraça sinais, posiciona-se, ajuízam sem afecção pelo politicamente correcto e, nessa forma de mostrar o acontecimento mostra-se ela própria como jornalista capaz de apanhar os «cornos» da actualidade.

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