10 de julho de 2009

Lendo, escrevendo


Escreve Julien Gracq - esse passeante do Loire que, às vezes, acompanho nas suas longas caminhadas pela costa de Syrtes - em En lisant, en écrivant (Corti, 1980), que lemos empurrados por «uma imperiosa tracção que move para diante a mão da caneta». Também eu leio escrevendo a lápis. E um impluso secreto me empurra a mão para diante, rasteando, a lápis, através dos labirintos de tinta embebidos nas páginas dos livros - como diria Walter Benjamin - linhas de fuga e de intromissão, cesuras, no texto alheio. Vou, assim, deixando a presença titubeante da minha mão na espessura do texto, como se cada página fosse um território por medir, por escavar, e donde brotará, depois, o rasto vegetal - madeira e carvão -que vou deixando no chão da escrita, também ele vegetal, incitado (e excitado) pela leitura que, lentamente, umas vezes, sofregamente, outras, avança através dos labirintos de tinta impressa.

Em Finita, Maria Gabriela Llansol diz-me como fazer: «Interesso-me por uma frase, por um fragmento de texto, e, muito raramente, por todo um livro que leio lentamente». A partir do fascínio dessa frase, que sublinho, - e que, às vezes, esconde «a imagem» perseguida por Gerard de Nerval - escapo-me furtivamente da topografia da página para as margens onde ressaltam novas palavras, encadeamentos, fórmulas, variações, derivações, fissuras do texto a que regressarei, depois, sempre, como explorador de abismos para me rever, então, como co-autor de um livro que não escrevi.

Às vezes, imagino-me como o Agrimensor, esse personagem que, no romance infinito de Kafka, O castelo, mais do que andar de um lado para o outro como conviria a um agrimensor, deambula de interpretação em interpretação, parando em cada curva do caminho, tudo comentando, como se através do comentário pretendesse chegar ao grau zero da escrita. Assim, também eu leio os livros da minha biblioteca de quarto escuro. Como um agrimensor literário errando na topografia da página, de lápis na mão - porque é o lápis que me incita à demora, que me imbrica no texto. Que me suspende no trilho das palavras, que me incita a voltar atrás, a enredar na topografia da página. Como ler Bernardo Soares ou Llansol ou Musil ou Walser ou Sebald ou mesmo Borges a não ser a lápis?

Devo ao lápis essa possibilidade infinita de me perder nos labirintos de tinta embebidos nas páginas dos livros. O lápis, então, como ferramenta que antecipa outros textos que hão-de vir em forma de micro-ensaio ou de crónica de momento que convoca a citação, a glosa, a paráfrase, anunciadas pelo trilhar a lápis do pensamento que toda a leitura incita (e excita). Como esta crónica breve sobre a escrita a lápis que nasce de uma anotação vegetal - fabricantes de lápis - inscrita na margem da página 17 de Fuga sem fim, de Joseph Roth [Acantilado, 2003]; ou a referência ao agrimensor K. suscitada por uma outra anotação à página 156 de O mal de Montano, de Enrique Vila-Matas [Teorema, 2002]. Sublinhar, anotar a lápis, então, não para desaparecer como pretendia Robert Walser com os seus microgramas, mas para abrir afluentes vegetais que hão-de embeber, depois, a tinta, primeiro, os cadernos moleskine e, mais tarde, o livro de micro-ensaios por vir.

Já nos cadernos moleskine prefiro escrever a tinta - castanha, porque é a que mais se aproxima da terra -, com caneta de aparo, uma art pen que me transforma momentaneamente no escritor húngaro Dezsó Kosztolány que num café, em Budapeste, enquanto escrevia Cotovia [Dom Quixote, 2006], em vez de pedir ao empregado um café, pedia tinta: – « Garçon – dizia – tinta, s´il vous plaît!». A caneta de aparo como extensão da mão, do corpo, um fio de tinta, ziguezagueante, a embeber a página, com cheiro, e mudando de cor no rasto das oscilações da alma, deitando depois o pensamento no chão do caderno onde desaguam os afluentes vegetais que brotam das margens dos livros lidos. Como teria sido eu capaz de evocar, agora, Kosztolány, se como um agrimensor literário não tivesse antes deixado uma anotação vegetal na margem de Cotovia?

E só depois utilizo o computador. Pelas suas extravagantes possibilidades de ligações, cruzamentos, derivações, substituições, colagens. De hipertextualidade. De montagem literária. Enfim, de estabilização discursiva do pensamento ondulante no espelho quebrado do monitor onde vou precipitando e encadeando citações alheias - às vezes, erróneas - e referências literárias, não só porque servem para criar novos sentidos no texto por vir, mas porque elas são o próprio texto.

2 comentários:

  1. Bonito!, mas dúvido que Deszó em Budapeste pedisse:"...tinta, s´il vous plaît!"
    No entanto um bom incentivo à leitura das obras.
    Cumprimentos

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  2. como pensa borges, é o jardim de caminhos que se bifurcam.

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