14 de janeiro de 2011

A escrita dos livros



Como escrevem os escritores? Através de que territórios da escrita se aventuram para deixar visíveis os rastos no papel? E a que instrumentos recorrem para gravar a consternação do mundo? Primeiro, há a página em branco que é a praia onde se derrama a escrita. E que pode ser, também, a figura atrás da qual se escondem os rostos dos escritores. Muitos escrevem na banal folha A4 espécie de praia comum e sem surpresas, pronta a ser apagada pela subida da maré, que é como quem diz, a ser jogada no cesto dos papéis sempre que a corrente da escrita segue um curso diferente daquele que o escritor procura.

Mas a praia, qualquer praia de papel, nunca é virgem, a areia da página já foi percorrida de uma ou outra maneira e a sua geografia condiciona a inscrição da escrita. A lápis, com caneta de tinta permanente, com esferográfica ou, mecanicamente, utilizando a máquina de escrever, ou a tecnologia do computador, o suporte da escrita condiciona a sua inscrição.

Heidegger desconfiava da técnica, da máquina de escrever: «A máquina de escrever arrranca a escrita ao domínio essencial da mão, ou seja, da palavra». Outros evocam a máquina de escrever como instrumento de escrita a contra-relógio. «Veio-me à memória um [filme] onde um escritor que não tinha dinheiro encontrava o lugar ideal para escrever, a sala de dactilografia da cave biblioteca da Universidade de Austin. Ali, em filas ordenadas, havia uma dúzia de velhas Remington ou Underwood que se alugavam por dez centavos a meia hora. O escritor metia a moeda, o relógio começava o seu tiquetaque enlouquecido, e o escritor punha-se a escrever como um selvagem para acabar o seu conto antes que o tempo se esgotasse» (in Doutor Pasavento, Enrique Vila-Matas). Nesse tempo havia ainda alguma intimidade entre os escritores e as máquinas de escrever, que até tinham nomes de gente: Remington, Olivetti ou de deuses, como Hermes, o deus das mensagens. Eram nomeáveis e fiáveis, à medida do nosso desejo. Delas, disse Clarice Lispector que «O ruído baixo do teclado acompanha directamente a solidão de quem escreve». Talvez por isso, Álvaro Mutis continue, ainda, a escrever na mesma Smith Corona onde inventou Maqrol.

Hoje, os computadores, que têm nomes metálicos, baniram as máquinas de escrever, instaurando uma modalidade de escrita sujeita a margens, barras, menus, ferramentas, conexões, links… que tolhem errância na praia deserta da página, deixando-nos mais sós. Ou talvez não. Para Bragança de Miranda, o seu computador «é uma selva de heterónimos, um drama em máquinas», por isso, estima-o como se fosse a «última máquina». Mas se é verdade que por culpa do computador as máquinas de escrever já quase desapareceram, as ferramentas que são uma espécie de extensão da mão – o lápis e a caneta – resistem, deixando os seus rastos em qualquer folha de papel.

Como Hermann Hesse que escrevia nas costas de folhas de calendário, em facturas, em provas tipográficas, anúncios, sem fazer esboços ou correcções. Ou Novalis que em folhas limpas desenhava belas iniciais como se pretendesse imitar as iluminuras medievais, aventurando-se num romance fragmentário. Ou Hemingway e Bruce Chatwin que escreviam em cadernos moleskine. Ou Robert Walser que escreveu a lápis 526 «microgramas» em folhas separadas: envelopes, margens das folhas dos jornais, formulários oficiais, etc., autênticos labirintos de escrita que levaram vinte anos a ser decifrados e foram recentemente editados em duas mil páginas com o título Território do lápis (para quando a sua edição em Portugal?). Ou Robert Musil cujo fogo da escrita só verdadeiramente incendiava o papel no momento da correcção das provas tipográficas. Ou Jack Kerouac que, num ritmo alucinante alimentado a café e ao som do jazz improvisado, como se fosse um Proust «só que mais rápido», como ele gostava de afirmar, dactilografou Pela Estrada Fora num parágrafo único, sem pontuação num rolo de trinta e seis metros de comprimento que o próprio manufacturou juntando 13 folhas de papel com três metros de comprimento cada uma, coladas com fita-cola e recortadas depois para que pudessem entrar na máquina. «Um único e magnífico parágrafo, de vários quarteirões, rodando, como a estrada em si», disse Allen Ginsberg. Ou Alexander Kluge que escreve, primeiro, num caderno escolar e só depois trancreve para o computador onde redistribui capítulos. Ou António Lobo Antunes que continua a escrever em folhas de prescrição médica do hospital Miguel Bombarda. Ou, numa situação extrema, Vila-Matas que numa viagem de avião, tendo esquecido o diário em casa, transformou o saco higiénico da Ibéria num rascunho de ideias destinadas a uma crónica espasmódica.

Eis como sempre se escreveram os livros, sujeitos às várias modalidades de deambulação pelos territórios do papel, por geografias secretas cujo itinerário o escritor persegue e onde grava com ferramentas pessoais a memória do mundo.

9 de janeiro de 2011

A rasura do jornalismo


A constituição da experiência contemporânea é cada vez mais determinada pelas máquinas mediáticas que nos dão a ilusão de estar em todo o lado ao mesmo tempo. Quer queiramos quer não, estamos imersos na actualidade «fabricada» pelos media contemporâneos que tendem a produzir uma espécie de delírio colectivo universal em torno de acontecimentos processados mediaticamente em função de inconfessados interesses que já pouco ou nada têm a ver com uma noção ética do jornalismo, como se a comunicabilidade mediática se tivesse tornado insustentável.

A experiência contemporânea mediatizada constitui-se já não em função do acontecimento em si, mas através da construção de uma ficção jornalística que visa a identificação gratuita do público com o acontecimento despolitizado e abordado em função das convulsões dos seus protagonistas. Vistas assim as coisas, o jornalismo hoje responde ao acontecimento não para para lhe dar tonalidade expressiva e retraçá-lo racionalmente, mas para nos introduzir nele como espectadores obscenos cujo ponto de vista é sempre incitado, e excitado, por formas mediáticas demagógicas e manipuladoras da opinião pública, que originam as várias e contraditórias patologias de posição que somos coagidos a adoptar, marcadas por uma ilusão paranóica de poder sobre os protagonistas do acontecimento. Lemos e vemos as notícias que nos são oferecidas com a ilusão de penetrar na intimidade do outro como se momentaneamente nos fosse concedido o direito de tudo julgar sem que para isso tenhamos de ser confrontados com a nossa responsabilidade moral. Por isso, a banalização lúdica da violência, da crueldade, a exposição da intimidade, a reivindicação divertida da futilidade diariamente servida nas televisões.

Os acontecimentos são-nos apresentados como uma espécie ficção repetitiva que é preciso alimentar diariamente através de um voyeurismo incitado e excitado por uma retórica que não visa já o esclarecimento público, mas tão só a comunicação inconsistente de fragmentos de uma ficção fabricada para encher noticiários sem qualquer respeito pelos protagonistas reais. O objectivo é sitiar o espectador dentro de uma ficção pueril fabricada e processada através de uma encenação mediática sempre em busca do inesperado.

E diante desta rasura dos media da moda, do lado de cá do ecrâ, encontramo-nos nós, espectadores frívolos, incitados, e excitados, por um zapping generalizado sobre os acontecimentos, levados por um jornalismo que parece ter enlouquecido, já sem espaço nem tempo para pensar, porque agora, para os media,trata-se apenas de responder à urgência da actualidade, sob pena de falhar as audiências.

«O jornalismo come o pensamento», afirmou, há muito tempo, Karl Kraus. Nunca esta observação foi mais actual do que nos dias que correm.

8 de janeiro de 2011

O cinema outra vez



Ultimamente não tenho ido muito ao cinema. Sobretudo porque a maioria dos filmes que passam por aqui, nas salas periféricas da minha cidade, pouco ou nada me dizem. Prefiro, por isso, ficar em casa vendo os clássicos possíveis da minha videoteca pessoal. Porque o cinema, lá fora, mais do que a chamada sétima arte, tornou-se num negócio nas mãos de produtores altivos, de distribuidores analfabetos e de exibidores mercantis que vão perfilando nas telas do mundo a mesma sucessão de imagens cujo sedução reside já não naquilo que seria suposto retratarem, mas no aluvião de efeitos passageiros que essas imagens provocam em nós, espectadores passivos, até ao próximo sucesso de bilheteira.

Reconheço que nesse aluvião de imagens efémeras passam, umas quantas vezes por ano, uns tantos filmes que, embora sujeitos à mesma engrenagem mercantilista de todos os outros, não participam da mesma esterilidade estética e da conjura contra o cinema. Esses filmes, quando passam, desafiam-me a sair de casa abandonando a geografia interior dos meus livros – e a acender, por uma noite, a luz esquecida de um tempo em que ir às soirées de sábado ou às matinées de domingo no antigo Cine-Teatro de Portimão, há muito desaparecido, era um acontecimento esperado durante toda a semana – e a adentrar-me na realidade distinta criada na ampla tela branca a partir da realidade empobrecida do mundo de hoje.

Do tempo em que entrevia o mundo a partir do alto dos bancos corridos do segundo balcão de um cinema de província, ficou-me uma colecção de cromos que reproduzia as mesmas fotografias dos actores de momento - Alain Delon, Romy Schneider, Sophia Loren, David Niven, Ingrid Bergman… -, emolduradas junto ao bar do velhinho Cine-Esplanada, onde numa noite de Verão vi a Ponte do Rio Kwai enquanto o céu era riscado por uma chuva de metoritos que se confundiam com o fogo das baterias japonesas que se abatia sobre os intrépidos prisioneiros de guerra britânicos.

Ficou-me, sobretudo, a memória de um tempo em que ir ao cinema era um acontecimento preparado com uma semana de antecedência. Primeiro, iamos em grupo de amigos ver os cartazes afixados nas vitrinas, na expectativa de haver um filme para maiores de doze anos; chegavam depois as tardes domingo com os seus filmes para maiores de doze: Ben-Hur, de William Wyler, O Tesouro da Sierra Madre e outros filmes de cowboys, Sangue no Deserto, de Anthony Mann, A Pousada da Sexta Felicidade, de Mark Robson, uns policiais alemães com o Peter van Eyck, as comédias da série Com jeito vai e tantos outros filmes que me fizeram rir, chorar, revoltar. Mas o que era bom mesmo era ir ao cinema: comprar o bilhete com as economias da semana, receber o programa, ouvir o going e ali ficar na penumbra, entre amigos, vivendo as aventuras daqueles heróis tão próximos de mim que até os guardava numa caderneta de cromos na gaveta da minha mesa-de-cabeceira.

Ia muito ao cinema nesse tempo. E continuei a ir quando vi alargadas as minhas possibilidade de escolha aos filmes para maiores de dezassete. Veio, a seguir, a actividade cine-clubista, na Sala do Boa-Esperança, e com ela o cinema de autor cujas reposições me deram outra consciência de mim e do mundo: Orson Welles, Billy Wilder, Elia Kasan, Jean Luc-Godard, Michelangelo Antonioni, Ingmar Bergman…

Depois, apesar das novas salas que, entretanto, abriram na cidade, a matéria das suas telas foi ficando puída. Mas esta tarde, enquanto aguardava na sala maior do teatro de Portimão, cheia de um público romântico, o going que anunciava o apagar das luzes e o início do filme "Mistérios de Lisboa", de Raúl Ruiz, não pude deixar de pensar que, afinal, um certo cinema cintilante ainda é possível e que, entrevistas as coisas com o optimismo necessário para afrontarmos o mundo que aí está, talvez ainda haja redenção para nós espectadores românticos à deriva num mundo sem romantismos.

26 de dezembro de 2010

Tudo o que era sólido


Chegado que é o fim do ano, e em tempo de recomeços, do alto deste trapézio voador - observatório instável sobre as coisas cá em baixo - mais do que me precipitar no vazio do novo ano que aí vem, opto por uma reflexão, necessariamente breve, sobre este tempo falhado, numa espécie de tentativa de escandir o passado recente para, depois, imitando as personagem de Exploradores do abismo , de Enrique Vila-Matas, fazer como «as pessoas normais que, ao ver-se à beira do precipício fatal, adoptam a posição do expedicionário e sondam o horizonte plausível, indagando sobre o que pode haver fora daqui ou mais além dos nossos limites».

E o que vi desde o meu instável posto de observação foi o arrancar do véu da utopia neo-liberal e as consequências desastrosas da desregulação capitalista sobre as economias, ameaçando transformar o «apocalipse alegre» em que íamos vivendo numa queda sem fim que nos levará não se sabe, ainda, até onde. E eis-nos, então, agora, «de pé enfrentando o caos» que irrompeu como uma brecha no rochedo aparentemente sólido das nossas rotinas, ameaçando dissolver no ar tudo aquilo que era sólido, como antecipou Marx.

E enquanto, por ora, vamos caminhando sem mapa pelas estradas que fazemos -«e que o fazemos somente ao caminhar por elas» -, como escreveu Zygmunt Bauman, que fazem os políticos? Deixam-se ir na mesma operação de encobrimento que volta a servir os «mercados», assumindo novas patologias de posição, transitórias, etéreas que mais não fazem do que permitir a colonização do discurso político pelas mesmas retóricas neo-liberais que nos conduziram perigosamente para a beira do abismo. Outros, diante do perigo que sobrevém, e este vem sempre, armam-se em maquinistas da desgraça e vão maquinando soluções contra as vítimas de sempre.

E nós, em separado ou em simultâneo, puros hedonistas, hiperactivos voláteis, contempladores sensíveis, espectadores obscenos, que fazemos diante do torvelinho que vai arrastando o país (e o mundo), e nós com ele, para o vórtice fatal tão bem descrito por Edgar Allan Poe no conto «Uma descida ao Maelstrom»? Deixámo-nos ir, ainda, em «apocalipse alegre» - para utilizar a mesma fórmula que Hermann Broch usou para descrever o nihilismo da sociedade europeia de fim de século - que é, também, a forma como hoje nos vamos entregando ao nihilismo pós-moderno, falhando, portanto, como diria Walter Benjamin, a ocasião de as coisas não continuarem como antes.

Daí, então, que este balanço possa parecer, numa espécie de espelhismo relativamente aos acontecimentos recenseados, também ele, nihilista. E sê-lo-á quer no sentido em que persegue a incompletude, o falhado, a catástrofe de «as coisas continuarem como antes», quer, ainda, por corresponder a um modo de escandir o tempo que só produz passado, que é uma nova forma de «doença histórica» que revoga o tempo breve da novidade. Mas ainda que nihilista face à consciência da generalização actual do alegre apocalipse, porque não ler, também, nesta recensão cronológica uma forma de rebelião contra o próprio nihilismo? O que dito de outro modo poderá traduzir-se na pergunta: como aceitar estes acontecimentos quando se pode sempre esperar que o tempo que vem aí traga outras possibilidades ao mundo, outras ocasiões de não deixar as coisas continuarem como antes? Que não seja mais um recomeço, mas antes um começo? Ou que, como desejava Paul Celan, nos deixe caminhar pelas estradas que fazemos afrontando «a crise» enquanto sinal da liberdade para responder ao perigo que sobrevém.

Este o balanço que importa perseguir, até porque só o escandir do tempo, recenseando a história não para arquivá-la, mas para nos confrontarmos com ela, levará a acreditar que um balanço pode ser algo mais do que uma cronologia ou uma patologia da «doença histórica» de que falava Nietzsche. E que, quem sabe, nalguma cesura aparentemente invisível na sucessão veloz de fins e de recomeços, sejamos capazes, ainda, de sondar os horizontes plausíveis do tempo actual, indagando sobre os acontecimentos que deveremos perseguir no futuro para superar as consequências dos acontecimentos passados, dando, finalmente, como bem tentou Walter Benjamin na sua solidão irredutível, «o salto de tigre no céu livre da história».

25 de dezembro de 2010

Passeantes de Dezembro



Herisau, dia de Natal de 1956. Entre faias e abetos, na ladeira que desce do Schochenberg, um homem jaz no chão confundindo-se com o deserto branco que o rodeia. A neve é o mais perfeito esconderijo. Depois de ter almoçado no sanatório, errara durante horas até ao coração do bosque, perdido. Ao longe, talvez, o toque lamentoso de um sino. A cabeça está apoiada sobre a raiz de um abeto que emerge da neve. Não há tristeza no seu rosto. Apenas a réstia de um olhar eternamente extasiado perante a neve pura, com o espanto de quem descobre, finalmente, o mais secreto dos desejos. Daqui a pouco, um grupo de crianças encontrará um corpo num bosque gelado e saberemos tratar-se de Robert Walser, o «poeta mais escondido que alguma vez existiu», como escreveu Elias Canetti. E que num nos dos seus romances, Os irmãos Tanner, pusera premonitoriamente na boca de um personagem uma elegia a Sebastião, o poeta encontrado morto na neve: «Com que nobreza escolheu a sua tumba! Jaz no meio de esplêndidos abetos verdes, cobertos pela neve. Não quero avisar ninguém. A natureza inclina-se a contemplar o seu morto, as estrelas cantam suavemente à volta da sua cabeça e as aves nocturnas grasnam: é a melhor música para alguém que não tem ouvido nem sensações».

No mesmo dia de Natal, em 1956, há cinquenta e três anos, portanto, morria o avô de W. G. Sebald - o escritor passeante através de paisagens solitárias, que morreu como o seu avô e como Walser, também, num dia Dezembro de 2002 – que tinha saído de sua casa para dar um passeio pela neve e tombou sobre ela quase à mesma hora em que o outro passeante, Robert Walser, caía, também, fulminado sobre a neve, numa paisagem de faias e abetos.

Neste Natal de 2010, recordo não os silêncios dos passeantes mortos em Dezembro, mas as palavras que nos legaram entre ruínas de um passado que remete para a totalidade do mundo. E olhando à minha volta, enquanto se fazem os preparativos para o fogo de artifício que há-de incendiar a noite da passagem do novo ano que aí vem com os seus relâmpagos e fulgores luminosos efémeros, retenho da leitura daqueles passeantes de Dezembro que partiram no mesmo ano em que eu cheguei, a sua esterilidade sentimental em relação às festividades natalícias.

Em Portimão não neva, por isso não haverá o perigo de me perder na neve no dia de Natal. Tão pouco sou um passeante através de paisagens solitárias. Já o escrevi aqui, sou antes um flâneur urbano que não se deixa bafejar pela secura do coração daqueles passeantes em relação ao Natal. Até porque, embora seja avesso a toda a retórica que transforma a época natalícia numa época do mais seco mercantilismo envolto em falsas roupagens de fraternidade e solidariedade, conforta-me a reunião da família, a exposição da minha pequena colecção presépios do mundo, a estética do fogo da lareira, os sabores, os cheiros, o aflorar do passado trazido sempre pelos mais velhos. Por isso, neste Natal continuarei a criar com os amigos e a família uma realidade distinta a partir da realidade inquietante, empobrecida, envolta em papéis cintilantes que serão rasgados no momento da troca de presentes. Porque se ainda é possível um verdadeiro espírito de Natal, ele só poderá ser encontrado se formos capazes de ver os outros no meio da bruma que anda por aí.

Aproveitar, então, o Natal, não para desaparecer na neve comoo passeante Walser, muito menos para nos perdermos nos labirintos do mercantilismo contradidório que nestes tempos de crise anda por aí, mas para, no meio de uma estética de ciprestes, pinheiros, zimbro e coloridas velas trémulas com cheiros que compoêm a paisagem doméstica destes dias, continuarmos a explorar, como passeantes de Dezembro, outras possibilidades para o mundo.

20 de dezembro de 2010

Uma tequila eloquente


Confesso que não queria continuar a escrever sobre éteres mexicanos, para não atribuirem à tequila, que raramente consumo, os estímulos espirituosos para as páginas deste diário que aqui vou destilando. E a prová-lo, a circunstância de em cada uma das duas garrafas de Herradura que trouxe do México, restar ainda metade do seu líquido dourado; e do mescal, apenas conhecer aquele que bebi com o «cônsul da embriaguez» em cantinas decadentes debaixo do vulcão. É que nisto das bebidas - que não na literatura -, embora não abstémio, assemelho-me a um sóbrio. Mas uma crónica do escritor mexicano Juan Villoro - também ele um sóbrio, mas só no que respeita a tequilas e outros álcoois - que encontro por acaso na net, convida-me, agora, para uma tequila eloquente. Uma tequila culto cujo nome, El Diablo, propõe o inferno sincero aos paraísos artificiais; e que, no verso do rótulo, para ser lido através da transparência dourada do líquido, como um peixe embriagado num «aquário ardente», oferece um poema de Eduardo Hurtado que nos recorda as irregulares qualidades etéreas da tequila: «El Diablo inventó los sueños/ la lujuria y el tequila,/ al fondo de esta botella/ duermen dourada pasiones y asombros,/ mil años de amor punzante,/ las nubes en las cañadas/ y otras cosas intranquilas». Onde guardar, então, esta garrafa? Na garrafeira ou na livraria?

19 de dezembro de 2010

Outros abismos mexicanos


E neste exercício de economato literário, como lhe poderia chamar Enrique Vila-Matas, à medida que vou sublinhando no livro de Lowry os nomes das setenta e sete bebidas consumidas debaixo do vulcão, imagino-me de novo em Cuernavaca, no Dia dos Mortos, ao crepúsculo, sentado na esplanada de Las Mañanitas de frente para os vulcões gémeos resplandecentes de neve, bebendo uma coronita gelada - essa clara cerveja mexicana que vem numa garrafa transparente e que, às vezes, no Verão, ao segundo entardecer, gosto de beber sentado no meu terraço sob um céu que se vai quebrando num esplendor vermelho.

E ali - isto é, aqui, agora, não na esplanada de solitários atravessada por um cortejo de máscaras e disparos mentais que vislumbro na dobra de uma página - imagino um país que, escreve Juan Villoro, é uma «indecifrável realidade que por convenção chamamos México». Um país cujo imaginário transforma os escritores que ousam cruzar os seus admiráveis abismos de festa, alucinação e morte em exploradores de um território literário vertiginoso donde, nem sempre, regressam incólumes. Como Lowry, o «cônsul da embriaguez e dos vulcões» (José Agostinho Baptista) engolido nos abismos do mescal.

Abandono, entretanto, o cenário de ruínas e amargura de Cuernavaca e, num recanto da minha biblioteca mexicana, vou procurando outras bifurcações de um país onde toda a ficção é possível. Primeiro, os mexicanos. Juan Rulfo, claro. E Carlos Monsivais e Sergio Pitol e Juan Villoro. E os estrangeiros. Talvez aqueles que melhor visionaram o México. Escreve Roberto Bolaño - o escritor chileno prematuramente desaparecido - que «dos muitos romances que já se escreveram sobre o México, os melhores provavelmente serão os ingleses e um ou outro americano. D. H. Lawrence [A serpente emplumada] desata a novela agonista, Graham Green o romance moral [O poder e a glória] e Malcolm Lowry a novela total» (Entre paréntesis, Anagrama, 2004). E, acrescentaria eu, Enrique Vila-Matas que em Longe de Vera Cruz (Assírio & Alvim) desata uma exaltada mitografia do México.

E que desata o próprio Roberto Bolaño que nos legou dois extravagantes romances «mexicanos» que guardo numa prateleira muito especial da minha biblioteca? Os detectives selvagens (Teorema), «o melhor romance mexicano desde A região mais transparente [Carlos Fuentes, 1958], ou o melhor romance sobre o México desde Debaixo do vulcão, segundo Jorge Herralde; um delírio de labirintos crepusculares derramando-se sobre arredores estranhos de uma cidade, México D. F., território de sobrevivência de uma geração encarcerada à beira do precipício. E 2666 (Quetzal) espécie de romance pulp fiction, buraco negro do crime múltiplo sem solução cuja cratera se situa em Ciudad Juárez, lugar de todas as vertigens, de todos os pesadelos? Desata, sobretudo, uma nova ordem literária - a do realismo visceral - que corta com o chamado realismo mágico latino-americano dos galos da Amazónia e das virgens em levitação e com as visões estrangeiras de uma Cuernavaca que só sobrevive no romance de Lowry.

18 de dezembro de 2010

Debaixo do vulcão


Lembro-me de há uns anos ir a caminho de Taxco pela estrada que sobe desde a cidade do México e, depois, se inclina para Cuernavaca, a cidade que em Debaixo do vulcão dá pelo nome de Quauhnahuac e onde nos habituámos a ver desesperar Malcolm Lowry. Lembro-me de errar através de um emaranhado de ruas ensolaradas; de atravessar um jardim decadente sob um céu em chamas; e, respondendo ao chamamento dolente de uma canção de Jorge Negrete vinda de uma máquina de discos, ter cruzado o umbral sombrio de uma cantina anónima que acabara de abrir as suas portas; e de, ali, depois, ter experimentado a minha primeira tequila destilada do mais puro agave mexicano. Herradura vinha escrito no rótulo da garrafa depositada sobre o balcão.

E a cantina, tão real como a do romance, talvez fosse El Farolito, cuja fotografia descobri há dias no blogue da Fundação criada em Cuernavaca para recordar o inglês perseguido pelos demónios do mescal. E é o próprio Lowry que, agora, mo confirma: «que beleza se poderá comparar à de uma cantina, de manhã, cedinho? […] pensa em todos os terríveis estabelecimentos, em frente dos quais as pessoas desesperam, impacientes por que se levantem os taipais! Nem as portas do céu, que para mim se abrissem de par em par, me proporcionariam uma alegria tão celestial, tão complexa e tão desesperada como aporta ondulada que se ergue com estrondo, como as gelosias que sobem, admitindo essas almas que vibram com as bebidas, levadas aos lábios com mãos vacilantes. Todo o mistério, toda a esperança, todo o desapontamento, sim, todas as misérias aqui se encontram, para lá dessas portas que se balançam num vaivém». (Debaixo do vulcão, Relógio de Água.

E agora que volto a ler o seu livro e a incandescência permanece, lembro-me de, naquele homem debruçado sobre o tampo de pedra encardida do balcão ao fundo, «afogando a dor no melhor mescal do México», parecer-me ter visto - não sei se por ter bebido aquele álcool até ao fundo, se embriagado pela atmosfera mescalianiana de El Farolito - o próprio Malcolm Lowry. E que outra visão poderia eu ter tido ali, naquela cantina debaixo do vulcão, com a garganta incendiada pelo fogo do mesmo agave que nesta dobra da noite volto a beber enquanto vou sublinhando o nome das setenta e sete bebidas alcoólicas diferentes emborcadas pelo cônsul e seus acólitos ao longo das trezentas e quarenta e seis páginas do alucinante romance de Lowry?

23 de novembro de 2010

Ou o poema sem poeta



Sabe-se que nasceu em 1930, no Funchal; que concluiu o 7º ano do Liceu na Escola Luís de Camões, em Lisboa; que frequentou Direito e, depois, Românicas, em Coimbra; que frequentou os cafés de Lisboa, com presença assídua no Café Gelo, onde conviveu com Mário Cesariny, Luiz Pacheco e Hélder Macedo; que andou por fora, em França, na Bélgica, na Holanda, na Dinarmarca onde experimentou vários empregos: criado de mesa numa cervejaria, cortador de legumes numa loja de sopas, enfardador de aparas de papel, operário nas forjas de Clabeck, carregador de camiões, guia de marinheiros em bairros de prostituição de Antuérpia. E que foi durante estas andanças, entre 1958 e 1960, que escreveu grande parte dos textos de A Colher na Boca (1961) e Os Passos em Volta (1963). Vai-se apagando, depois, a sua vida civil: uma passagem pelas Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian; tradutor de literatura médica; jornalista, tendo nesta qualidade feito uma reportagem de um Benfica-Sporting, em 1972, intitulada Uma ida ao Campo; psicoterapias; um processo crime por causa da sua colaboração na publicação de Filosofia de Alcova, de Sade; um acidente de viação que o atira para o hospital durante três meses; algumas viagens ao estrangeiro… Este o photomathon biográfico possível quando Herberto não tinha ainda migrado para o interior da sua obra.

Depois, escreve em Photomaton e Vox (1979): «Tenho de inventar a minha vida verdadeira». E inventa-a de tal maneira que passa a viver apenas dentro dos seus livros. Torna-se num «escritor oculto»: nem aparições públicas, nem entrevistas, nem fotografias nos jornais, nem conversas com leitores. Nem prémios: em 1994 recusa o Prémio Pessoa com que fora distinguido. Ainda em Photomaton & Vox escreve: «Não me vou deixar apanhar por tentações biográficas, a memória, os mitos que as culturas, marginais ou não, parecem querer que eu adopte. Não sou um símbolo da imaginação alheia». Subtrai-se por vontade às «câmaras ecoantes: (…) as respostas caóticas, o êxito, o erro, a morte da alma». Apaga-se como figura civil, instaurando o silêncio biográfico sobre si mesmo. Sublinha Manuel Gusmão que «num gesto de predestinação furiosa e paciente, o nome de "Herberto Helder" migrou para o interior ou as margens do seu poema: [Herberto Helder] Ou o poema contínuo». Nome e título de obra passam a ser a mesma coisa, fluindo ambos na «torrente silenciosa» e alucinada que se expande até ao limite do verbo num «poema absoluto» que escapa, como autorizaria Blanchot, «a qualquer determinação essencial, a toda a afirmação que o estabilize».

Como ler esta ocultação do autor na obra? Talvez como um extremo exercício do poema para escapar à determinação hermenêutica da tutela autoral. É que, lê-se num trecho de Photomathon & Vox, «… uma noite começo a escrever. Tenho memória. Nada foi esquecido, vem adequado agora aos vindicativos sentidos da expressão e da representação. E assim caminho para o esgotamento, no centro da fecundidade. As pessoas perdem o nome, as coisas limpam-se, cessam a fuga do espaço e o movimento dispersivo do tempo. Fica um núcleo cerrado. Fico eu». Ora é este “eu” biográfico que Herberto recusa. Por isso, dissolve-se na obra passando a existir única e exclusivamente nela, o que explica a interposição de um “ou” entre o seu nome e o título da obra. Porque a sua voz de autor já só existe no interior ou nas margens da sua obra. Erradica-se o autor. E fica a «inóspita beleza» em forma de um «poema contínuo» ardendo em lenta combustão.

5 de outubro de 2010

Flâneries


Gosto de Paris. Gosto de, ao entardecer, sob o zinco da esplanada do Café de Flore, enquanto vou observando a chuva oblíqua através das vitrines, folhear um livro acabado de comprar ali mesmo ao lado, na livraria La Hune; gosto de caminhar sem rumo preciso, por Germain-des Près, guiado apenas pela intuição do flâneur que me leva, depois, através da Rue de Seine a cruzar o arco que dá para o Quai de Conti e para a Pont des Arts.

Gosto das bancas de livros ao longo dos cais. Gosto da Île de Saint-Louis com as suas boutiques elegantes. Gosto de deambular pelo Marais até à Place de Vosges, de tomar um chá na rue Vieille du Temple. Gosto do mercado da rue Mouffetard e das suas bancas onde se vendem ostras com um forte sabor a mar, gosto do aroma forte dos queijos expostos naquela crémerie onde sempre entro. Gosto da livraria Arbre à Lettres onde, finalmente, encontrei o Livre des Passages, de Walter Benjamin.

Gosto, ainda, de errar por essas passages secretas, donde Benjamin via Paris como a cidade dos espelhos; gosto de me imaginar Le Paysan de Paris e, como Aragon, adentrar-me na cartografia de Paris e escutar a formidável ressonância das pequenas coisas que se mostram dissimuladas ao passeante.