8 de janeiro de 2011

O cinema outra vez



Ultimamente não tenho ido muito ao cinema. Sobretudo porque a maioria dos filmes que passam por aqui, nas salas periféricas da minha cidade, pouco ou nada me dizem. Prefiro, por isso, ficar em casa vendo os clássicos possíveis da minha videoteca pessoal. Porque o cinema, lá fora, mais do que a chamada sétima arte, tornou-se num negócio nas mãos de produtores altivos, de distribuidores analfabetos e de exibidores mercantis que vão perfilando nas telas do mundo a mesma sucessão de imagens cujo sedução reside já não naquilo que seria suposto retratarem, mas no aluvião de efeitos passageiros que essas imagens provocam em nós, espectadores passivos, até ao próximo sucesso de bilheteira.

Reconheço que nesse aluvião de imagens efémeras passam, umas quantas vezes por ano, uns tantos filmes que, embora sujeitos à mesma engrenagem mercantilista de todos os outros, não participam da mesma esterilidade estética e da conjura contra o cinema. Esses filmes, quando passam, desafiam-me a sair de casa abandonando a geografia interior dos meus livros – e a acender, por uma noite, a luz esquecida de um tempo em que ir às soirées de sábado ou às matinées de domingo no antigo Cine-Teatro de Portimão, há muito desaparecido, era um acontecimento esperado durante toda a semana – e a adentrar-me na realidade distinta criada na ampla tela branca a partir da realidade empobrecida do mundo de hoje.

Do tempo em que entrevia o mundo a partir do alto dos bancos corridos do segundo balcão de um cinema de província, ficou-me uma colecção de cromos que reproduzia as mesmas fotografias dos actores de momento - Alain Delon, Romy Schneider, Sophia Loren, David Niven, Ingrid Bergman… -, emolduradas junto ao bar do velhinho Cine-Esplanada, onde numa noite de Verão vi a Ponte do Rio Kwai enquanto o céu era riscado por uma chuva de metoritos que se confundiam com o fogo das baterias japonesas que se abatia sobre os intrépidos prisioneiros de guerra britânicos.

Ficou-me, sobretudo, a memória de um tempo em que ir ao cinema era um acontecimento preparado com uma semana de antecedência. Primeiro, iamos em grupo de amigos ver os cartazes afixados nas vitrinas, na expectativa de haver um filme para maiores de doze anos; chegavam depois as tardes domingo com os seus filmes para maiores de doze: Ben-Hur, de William Wyler, O Tesouro da Sierra Madre e outros filmes de cowboys, Sangue no Deserto, de Anthony Mann, A Pousada da Sexta Felicidade, de Mark Robson, uns policiais alemães com o Peter van Eyck, as comédias da série Com jeito vai e tantos outros filmes que me fizeram rir, chorar, revoltar. Mas o que era bom mesmo era ir ao cinema: comprar o bilhete com as economias da semana, receber o programa, ouvir o going e ali ficar na penumbra, entre amigos, vivendo as aventuras daqueles heróis tão próximos de mim que até os guardava numa caderneta de cromos na gaveta da minha mesa-de-cabeceira.

Ia muito ao cinema nesse tempo. E continuei a ir quando vi alargadas as minhas possibilidade de escolha aos filmes para maiores de dezassete. Veio, a seguir, a actividade cine-clubista, na Sala do Boa-Esperança, e com ela o cinema de autor cujas reposições me deram outra consciência de mim e do mundo: Orson Welles, Billy Wilder, Elia Kasan, Jean Luc-Godard, Michelangelo Antonioni, Ingmar Bergman…

Depois, apesar das novas salas que, entretanto, abriram na cidade, a matéria das suas telas foi ficando puída. Mas esta tarde, enquanto aguardava na sala maior do teatro de Portimão, cheia de um público romântico, o going que anunciava o apagar das luzes e o início do filme "Mistérios de Lisboa", de Raúl Ruiz, não pude deixar de pensar que, afinal, um certo cinema cintilante ainda é possível e que, entrevistas as coisas com o optimismo necessário para afrontarmos o mundo que aí está, talvez ainda haja redenção para nós espectadores românticos à deriva num mundo sem romantismos.

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