17 de dezembro de 2007

Crónica comestível


Se uma madalena «mergulhada na infusão de chá preto ou de tília» pôde desencadear em Proust «recordações tanto tempo abandonadas longe da memória» que o levaram a escrever Em busca do tempo perdido, como não poderá a minha visita ao novo mercado de Portimão servir de pretexto para esta crónica comestível  cuja matéria verbal se dispõe, primeiro, em bancas como as que me foram dadas ali observar? Até porque, como escreve Vásquez Montalbán, «o gourmet devora duas vezes ao mesmo tempo, aquilo que come e aquilo que comeu» [in Contra los gourmets]. Ao que eu acrescentaria uma terceira, aquilo que leu, consistindo esse terceiro momento, para nosso deleite e instrução, a sublimação pela literatura, cuja ilustração nos foi oferecida por Karen Blixen nesse delicioso romance Festa de Babette, levado depois ao cinema por Gabriel Axel, que celebra o aparecimento da grande cuisine da viragem pós-revolução francesa.

Aos sábados, pela manhã, vou às compras ao mercado de Portimão. E sempre que ali vou, dou-me conta, como se fosse a primeira vez, da viva presença das coisas ali dispostas. A geometria das bancas, a perfeita distribuição de áreas e produtos, a boa disposição dos vendedores, a gente da minha terra conversando. Os encontros fortuitos, ainda que semanalmente repetidos. Comprovo a inteligência e a ficção das coisas postas ali em sossego ao meu dispor como um território habitual mas sempre inexplorado, donde recolherei a matéria ficcional com que, depois, elaborarei uma retórica pessoal dos sabores. Na perfeita distribuição da matéria exposta, vou encontrando os peixes dourados do mar do Algarve, as carnes bravias e campesinas, a pura poesia dos frutos, os ingredientes vegetais e telúricos que me hão-de proporcionar o devotado exercício gastronómico que vou mentalmente ensaiando em imaginários menus por fazer. Uma manhã feliz.

Porque estamos na época deles, navego entre bancas de peixes onde brilham sargos, douradas e robalos acabados de chegar do mar de Sagres. Escolho um gordo sargo que grelharei com ervas aromáticas como ensina Colette: «Prepare a vassoura, é assim que eu chamo ao ramo de cheiros com louro, hortelã, segurelha, tomilho, rosmaninho, salva... mergulhe-a num pote cheio de azeite misturado com vinagre de vinho [...]. O alho [...] esmagado, até ficar com uma consistência cremosa, realça a mistura, como convém. Um pouco de sal, bastante pimenta» [in Prisons et paradis].

No talho, mando cortar um teclado musical de costoletas de porco preto alentejano que hei-de levar ao forno a assar com ervas aromáticas e mel. Peço, ainda, que me cortem uns bifes tenros de vitela que cozinharei ao jantar, na figideira, à lisboeta, com o molho a pedir aquele pão caseiro que comprarei em seguida e o ovo a cavalo, de preferência de galinhas do campo. E enquanto o talhante vai cortando o coração da carne, lembro-me do bife com batatas fritas de Roland Barthes [in Mitologias], que não é uma receita, antes uma espécie de leitura antropológica sobre o bifteck cujo «prestígio resulta, de toda a evidência, da sua natureza de carne quase crua». Para a sobremesa, se fosse época, escolheria uns figos que cortaria à maneira de D. H. Lawrence que embora não sendo algarvio conhecia «a maneira correcta de comer um figo à mesa», ou de Herberto Helder que lhe mudou o poema para português: «é parti-lo em quatro, pegando no pedúnculo,/ E abri-lo para dele fazer uma flor de mel, brilhante, rósea, húmida,/ desabrochada em quatro espessas pétalas.» [«Figos», in Poesia toda, Herberto Helder]. Levarei, então, laranjas de Silves para o almoço. E para o jantar, farei um arroz-doce «disposto» - como no poema de Háfiz Dimashki - «em longas tiras sobre o/ prato, a brancura do leite [...]/O acúcar espalhado sobre os bordos/ cintila como um raio/ de luz solidificado.» [«Celebração do arroz-doce», Háfiz Dimashki  (1134-1176).

Eis, então, um sábado de compras, semanalmente repetidas, no mercado de Portimão, recuperado como matéria ficcional desta crónica em que se conclui que também se pode ir a um mercado como se vai a uma livraria.

Sem comentários:

Enviar um comentário