26 de dezembro de 2007

Passeante do Loire


foto de Gérard Bertrand 

Também ele era um passeante e também ele desapareceu neste Dezembro nas margens do Loire. «Professeur, du géographe, du provincial, de l’amoureux du fleuve, du promeneur, du parisien d’adoption, de l’homme qui dit non, de l’ancien surréaliste qui l’était resté dans l’âme, de feu le communiste très provisoire, eis quem era, ainda, Julien Gracq (1910-2007), segundo o retrato que lhe traça Pierre Assouline.

Ao observar as novidades que por estes dias enchem os escaparates das livrarias não posso deixar de recordar as palavras deste escritor clássico-moderno francês que viveu até às vésperas deste Natal, ocultado na sua casa, em Saint-Florent-le-Vieil, nas margens do Loire, e que em A literatura no estômago [Assírio e Alvim, 1987], um planfleto publicado em 1950, escrevia que a arte literária não só era vítima desgraçada de uma massificação vazia, como estava submetida às perversas regras analfabetas do não-literário. Nesse texto premonitório, de uma actualidade cortante, Julien Gracq arremetia já contra a «literatura alimentícia», essa espécie de fast-food literário imposto pelo mercantilismo editorial emergente e que haveria de se tornar, nos nossos dias, na dieta compulsiva dos «analfabetos altivos».

Tal como Robert Walser que se ocultou em Herisau para escapar ao ruído do mundo, também Julien Gracq se refugiou - numa espécie de exílio interior contra a vanidade dos salões literários - na sua casa natal, nas margens do Loire, fora de Paris portanto, cujo apelo rejeitou, como rejeitou o Goncourt que lhe foi atribuído em 1951, para melhor construir os castelos no ar em que se foram transformando os seus livros cada vez mais fragmentários, cada vez mais imbricados nos territórios dos seus antepassados cujas paisagens quiméricas, como um amante do rio, atravessava em busca do conhecimento perdido. Daí o seu «desejo de preservar-se, de não ser incomodado, de dizer não, em resumo esse Deixem-me tranquilo no meu canto e não parem [que] deve atribuir-se à sua ascendência vendeana», tornando-se num «dos escritores mais ocultos do nosso tempo, um dos mais esquivos e afastados, um dos reis da Negação», como escreve Enrique Vila-Matas em O Mal de Montano, depois de o ter visitado no seu exílio vendeano.

E assim foi até à sua morte, com noventa e sete anos, na ante-véspera do dia de Natal, deixando-nos as dezenas de cadernos onde durante últimos quinze anos foi pintando as suas paisagens interiores. E, sobretudo, A costa de Sirtes [Vega, 1998], esse romance absoluto sobre a espera e os mundos de fronteira que sugere a mesma vagabundagem nervosa de Nerval e onde o leitor se cruza com uma sucessão de iluminações rimbaudianas, como aquela, fantasmagórica, quando vemos emergir do mar, como uma montanha mágica, o vulcão Tängri: «Aí estava, ali o tínhamos. A sua fria luz irradiava como um manancial de silêncio, rei na noite deserta». Um livro, ainda, que à data da sua publicação, em 1950, foi considerado por André Breton como o único livro capaz de actualizar a herança do surrealismo. E, sobretudo, um livro profético sobre a consternação do mundo que aí está, agora, aparentemente sem redenção.

Quando, na próxima semana, eu for a Paris - cidade que Julien Gracq adoptou durante grande parte da sua vida, antes de regressar definitivamente à sua casa natal - seguirei o conselho de Pierre Assouline e irei até à livraria de José Corti, o editor-livreiro da rue de Médicis, para, talvez, comprar ali algum livro de Gracq e depois, se a meteorologia o permitir, já no outro lado da rua, no Jardin du Luxembourg, folheá-lo «armé d’un canif, couteau, coupe-coupe, machette, tronçonneuse ou tout objet susceptible de disjoindre en un bruit exquis les pages non massicotées», porque assim o exigem os livros de José Corti.

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[Foto: Vitrine Julien Gracq, janvier 2002, rue Médicis, archives Corti].

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