27 de novembro de 2011

O anjo da história


Para que serve a literatura? Interroga-se W. G. Sebald no micro-ensaio "Uma tentativa de restituição" que integra o seu livro póstumo Campo Santo. «Talvez sirva apenas para nos lembrar, para nos ensinar a compreender que há estranhas ligações que a lógica casual é incapaz de explicar…», responde. Talvez sirva para dar conta da consternação do escritor ao ver que à sua volta tudo se desumaniza ou desaparece e que inclusive a própria História se desvanece, como observa Enrique Vila-Matas reportando-se àquilo que define em Sebald como uma poética da extinção. Talvez sirva para opor à obsessão moderna pelo esquecimento o imperativo redentor da memória, capaz, ainda, de deixar gravadas no papel um rasto, que não se extinguirá jamais, de um narrador em propulsão atravessando uma paisagem cuja topografia nos sacode, nos interpela, nos propõe uma meditação sobre um amontoado de ruínas, não para nelas sucumbirmos mas para cavar nelas a recordação, a invocação, o lamento, às vezes, a alucinação, vestígios incandescentes de instantes esquecidos que se negam a desaparecer irrompendo na paisagem devastada da nossa modernidade inacabada.

«Escrever é a única maneira de me defender das recordações que tantas vezes e tão inesperadamente me avassalam. Ficassem elas presas na minha memória e o tempo torná-las-ia cada vez mais pesadas, acabariam por me esmagar», confessa Sebald em Os Anéis de Saturno. Para isto serve, então, a literatura escavada por Sebald numa História enterrada viva, sedimentada em camadas de esquecimento, mas que palpita, ainda, sob o amontoado de ruínas que o viandante vasculha. Não para buscar qualquer hipótese de redenção que parece já não ser possível, não para se rebelar contra o nihilismo do existente, mas para afrontar com um olhar melancólico a vertigem do vazio da era moderna sem nele se despenhar. Até porque «grande é a distância entre o ponto onde hoje nos encontramos e esse final do século XVIII, quando a esperança de uma melhoria dos males da humanidade e a convicção de que esta seria capaz de aprender se inscreveram em letras bem desenhadas no nosso firmamento filosófico!» («Uma tentativa de restituição», in Campo Santo).

Talvez isso justifique o seu método de escavação do passado, «adoptando uma perspectiva histórica concreta, esculpindo pacientemente, juntando coisas aparentemente alheias umas às outras, ao jeito de uma nature morte» («Uma tentativa de restituição», in Campo Santo). «Uma espécie de metafísica da história através da qual a recordação voltava a ganhar vida» (Austerlitz , 2001) nos sedimentos depositados em fortalezas, estações de comboios, colunas, manicómios, campos de concentração e extermínio paisagens, bolsas de valores. Rastos de sofrimento atestando «a sombria viragem da história». Fotografias que «surgem do passado como [...] se tivessem memória e se recordassem de nós», libertando a aura benjaminiana de «um tempo que trás consigo um registo enigmático que remete para a redenção» (Walter Benjamin, Sobre o conceito de história). Correspondências, portanto, vestígios da recordação que a presença elíptica, em Austerlitz, de Proust (de La recherche), de Kafka (referência a um episódio biográfico de Kafka em Marienbad) e de Thomas Bernhardt (a natureza melancólica dos personagens) acentua.

Mas «até onde retroceder para encontrar o começo?» pergunta-se Sebald em busca da sua génese, em Nach der Nature (1988)/Sobre a natureza, o seu primeiro livro. «Quando no Dia da Ascenção/ de quarenta e quatro vim ao mundo,/ a minha mãe viu nisso um bom presságio, sem saber/ que o frio planeta Saturno regia a constelação/ do momento e que, sobre as montanhas,/ espreitava já a tempestade [...] logo imaginei uma catástrofe silenciosa que ocorre/ sem que o espectador o perceba». Antes, a mãe com ele ainda no ventre tinha sobrevivido ao bombardeamento e ao incêndio de Nuremberga que Sebald haveria de contemplar cinquenta anos depois num «quadro de Altdorfer, / que representa a mulher de Lot/ e as suas filhas. No horizonte, / um terrível incêndio/ devora uma grande cidade. /O fumo sobe, /as chamas elevam-se ao céu/ e, no reflexo avermermelhado./ vêem-se obscuras/ fachadas de casas», resgatando da sua memória uterina a matéria das duas conferências que sob o título, Guerra aérea e literatura, proferiria em Zurique, em 1997, e que seriam, depois, publicadas postumamente em História Natural da Destruição, 2003).

Quantas viagens a pé terá feito o caminhante saturnino dos seus livros nos escassos cinquenta e sete anos de uma vida prematuramente destruída numa curva de uma estrada de Norwich, em 14 de Dezembro de 2001? Sigamos os seus passos. Em Vertigem (1990): «Em outubro de 1980 viajei de Inglaterra, onde, vivia, então, havia quase 25 anos, numa região que estava quase sempre ensombrada por um céu cinzento, rumo a Viena, com a esperança de que uma mudança de lugar me ajudasse a superar uma etapa da minha vida particularmente difícil. Porém, em Viena descobri que os dias se tornavam demasiados compridos, agora que não eram ocupados pela minha rotina de escrever e tratar do jardim, e literalmente não sabia onde ir. Saía cedo todas as manhãs e caminhava sem rumo nem objectivo pelas ruas da cidade antiga…».

Depois, prossegue a viagem através do norte de Itália. E ali indaga, interpela, alucina-se, escava vestígios da passagem de Kafka por aqueles lugares, convoca outras biografias de escritores, Stendhal, Casanova, Ernst Hölderlin, Robert Walser, Thomas Mann, Peter Weiss. Depois, em Os Emigrantes (1992) relata uma viagem a Deauville em busca de algum «resíduo do passado» para confirmar que «essa praia outrora lendária está em pleno declínio como todos os sítios que hoje se visita, seja qual for o país ou continente, arruinados pelo tráfego automóvel, pelos estabelecimentos comerciais e por essa sanha de destruição sempre insaciável.»; e nessa viagem a pé, ainda, o pretexto para a evocação desoladora dos fugitivos e dos exilados que sob o signo da melancolia se vêem trasladados das suas terras de origem para os quatro cantos do mundo. Depois, em Os Anéis de Saturno , 1995) («Em agosto de 1992, quando os dias caniculares se aproximavam do fim, caminhei pelo distrito de Suffolk, com a esperança de dissipar o vazio que se apodera de mim de cada vez que concluo um trabalho») oferece-nos uma cadenciada meditação intercalada por breves ensaios tão diferentes quanto magistrais sobre Roger de Casement e as infâmias do regime de Leopoldo no Congo, as primeiras aventuras no mar de Joseph Conrad, a natureza da guerra, o ciclo de vida dos arenques, a destruição das grandes florestas do mundo. Finalmente, em Campo Santo (2003) - o trabalho que interrompeu em 1995 para escrever Austerlitz -, viaja pela Córsega reflectindo sobre a dor, o luto e a memória.

«Portanto, para que serve a literatura?» Para dar conta do que contempla, horrorizado, o anjo da história ao olhar, na curva do caminho, uma vez mais para trás. Para dar conta da consternação de Sebald contemplando, como Hölderlin, «um reino por demais abstémio onde impera o lamento enganador do lustro traiçoeiro, onde se contam as horas lentas de gelo e de seca e onde só suspiros prezam a imortalidade» («Uma tentativa de restituição», in Campo Santo).

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