20 de abril de 2007

Doutor Pasavento (I)


Ainda ontem escrevia aqui sobre a natureza deste blogue como construção do eu e marcação do autor, motivação que, mesmo admitindo sem qualquer presunção que outros também aqui poderão ler o que eu tenho para dizer, interessará, sobretudo a mim mesmo, correspondendo à assunção deste espaço de anotação do que sobra dos dias, dos meus dias, como uma certa cartografia pessoal. 

Remete isto, desde logo, para a noção deste blogue como itinerário onde mais do que dizer, pretendo mostrar parcelas do que me cai dos dias que. Haverá nessa mostra algo de montagem literária, mas entendida tão só da forma que referi no post fundador deste blogue, isto é, algo ficcional, na medida em que, embora assuma este blogue como espaço de anotação de matéria recuperável no futuro, também eu procuro emergir lá mais para a frente com a confiança de que, por acréscimo à construção de uma memória pessoal, tenho algo a dizer, algo que deve ser dito. 

Embora com o risco de me repetir, se retomo o meta-discurso sobre a natureza deste blogue é por me sentir confrontado com as primeiras páginas do livro de Enrique Vila-Matas, Doutor Pasavento, cuja leitura iniciei hoje. Confrontado eu, não o blogue que não tem substância para isso, nem aspira a qualquer confrontação dessa natureza com esta ou com qualquer outra matéria que aqui venha a ser mostrada como despojo de um dia qualquer. Enquanto neste blogue, onde se acumula a espuma dos dias de um sujeito que procura desse modo estar presente, dizendo o que tem para dizer a quem aqui vier ou, pelo menos, a esboçar uma cartografia pessoal da recepção de certos despojos desses dias, se procura deliberadamente uma certa inscrição do sujeito, nem que seja apenas no confronto consigo mesmo, no livro de Vila-Matas alguém procura insistentemente desaparecer.  

Donde vem essa tua paixão por desapareceres? é a pergunta repetida que institui o tema desta espécie de meta-romance-ensaio que desde o início parece rejeitar qualquer classificação canónica. Paradoxalmente, vai-se percebendo que, afinal, este discurso do despojamento encerra uma tentativa de afirmação do sujeito através da literatura, cuja essência é escapar a qualquer vontade de estabilização e de controlo. Montagem literária, portanto, em que se mostra a figura ficcional do desaparecimento, levada ao extremo de se reflectir, a partir de Blanchot, sobre o desaparecimento da própria literatura, ou sobre o grau zero do autor, existindo apenas no universo da criação literária, isto é, sem biografia, nem reconhecimento. 

Mas tarefa impossível, parece-me, porque a literatura convoca sempre a figura do autor, sobretudo quando este utiliza a subjectividade ensaística que recusa a neutralidade aparente da terceira pessoa, como é o caso deste meta-romance-ensaio de contornos biográficos, o que, ainda, o torna mais paradoxal, face ao projecto de desaparecimento anunciado e enunciado desde as primeiras páginas e para o qual são convocadas como referências histórico-literárias, sobretudo, Robert Walser e, depois, W. G. Sebald, expoentes de uma poética da extinção que o autor parece perseguir, mas apenas como topos literário e não como projecto moral, o que, aliás, viria, ironicamente, a ser negado com a atribuição do prémio para o melhor romance publicado em Espanha em 2006, o que constitui um acontecimento, não sei se procurado ou não pelo autor, para a afirmação do sujeito que dizia querer desaparecer. 

Para já, primeiras páginas brilhantes de um artefacto literário experimental, carregado de ironia e excentricidade, com que se vai construindo um simulacro da biografia do autor, enredando a ficção na realidade. De outros despojos deste Doutor Pasavento, certamente, voltarei a falar.

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