1 de abril de 2014

Pessoa em Paz


No  ensaio O desconhecido de si mesmo, que prefacia a Antologia com que Octavio Paz dá a conhecer ao mundo de língua espanhola um obscuro poeta português chamado Fernando Pessoa, contribuindo  decisivamente para incorporá-lo ao cânon literário contemporâneo, o poeta e ensaísta mexicano escreveu que "os poetas não têm biografia. A sua obra é a sua biografia. Pessoa, que sempre duvidou da realidade deste mundo, aprovaria sem vacilar que fosse directamente aos seus poemas, ignorando os incidentes e os acidentes da sua existência. Nada na sua vida é surpreendente - nada, excepto os seus poemas. [...]  Pessoa quer dizer persona em português e deriva de persona, máscara do teatro grego. Máscara, personagem de ficção, ninguém: Pessoa. A sua história poderia reduzir-se ao vai-e-vem entre a irrealidade de sua vida quotidiana e a realidade das suas ficções. [...] Assim, não é inútil recordar os acontecimentos mais marcantes da sua vida, desde que não ignoremos que se trata das pegadas de uma sombra".  

Ora há uma história na vida de Octavio Paz (México D.F., 31 de março de 1914 - Coyoacán, México, 19 de abril de 1998) cuja evocação - neste dia em que o poeta e ensaísta mexicano faria cem anos, mais do que um "incidente ou acidente" na sua existência - foi, conforme ele mesmo confessou, um dos acontecimentos mais marcantes da vida. Essa história começa numa noite de outono de 1958, em Paris, durante um jantar de amigos, numa casa do Marais, quando a poeta surrealista e socióloga anarquista Nora Mitrani (1921-1961), que frequentava o círculo surrealista agrupado à volta de André Breton, como Yves Bonnefoy, Benjamin Péret, André Pieyre de Mandiargues, Julien Gracq, com quem Nora vivia, e o próprio Octavio Paz, que havia sido adoptado por Breton quase desde a sua chegada a Paris, em 1949, como ele mesmo contou, refere o nome, até então desconhecido para Paz, de Fernando Pessoa, cuja poesia Nora conhecera em Lisboa, nos anos 50, através de Alexandre O’Neill por quem se apaixonara. Dias mais tarde, Paz haveria de ler alguns poemas de Alberto Caeiro que Nora tinha traduzido para para a revista Le Surréalisme, Même. E alguns meses depois, Vieira da Silva emprestar-lhe-ia as Obras Completas de Pessoa que a editora Ática começara a publicar em 1942. 

Quando, anos mais tarde, em 1962, Octávio Paz escreveu O desconhecido de si mesmo, talvez tenha pensado que se naquela noite de outono de 1958 não tivesse conhecido Nora, talvez, também, não tivesse conhecido Pessoa. A revelação feita por Nora do poeta plural que vivera e inventara em Lisboa uma fabulosa genealogia literária, haveria de levar Paz a "trabalhar encarniçadamente" sobre a obra de Pessoa, não para revelar-lhe a biografia mas para perseguir as pegadas da sua sombra errante sobre as quais também ele haveria de caminhar. 

Em Fernando rei da nossa Baviera, no capítulo que dedica ao que chama a fortuna crítica de Fernando Pessoa, Eduardo Lourenço refere que "foi depois de o ter lido em francês que um poeta e ensaísta tão eminente como Octávio Paz escreveu o seu breve e magistral ensaio O desconhecido de si mesmo que se não é o primeiro na língua irmã da nossa será o primeiro a alcançar uma larga audiência". Desse ensaio vale a pena citar a seguinte passagem em que Paz: "Caeiro, Reis e Campos são os heróis de uma novela que Pessoa nunca escreveu. ´Sou um poeta dramático´, confia em carta a João Gaspar Simões. No entanto, a relação entre Pessoa e seus heterónimos não é idêntica à do dramaturgo ou do romancista com as suas personagens. Não é um inventor de personagens-poetas mas um criador de obras-de-poetas. A diferença é capital. Como diz Casais Monteiro: ´Inventou as biografias para as obras e não as obras para as biografia´. Essas obras – e os poemas de Pessoa, escritos perante, a favor da e contra elas – são a sua obra poética. Ele mesmo se converte numa das obras de sua obra. E nem sequer tem o privilégio de ser o crítico dessa coterie: Reis e Campos tratam-no com certa condescendência; o barão de Teive nem sempre o cumprimenta; Vicente Guedes, o arquivista, assemelha-se tanto que, quando o encontra numa taberna do bairro, sente um pouco de piedade por si mesmo. É o encantador enfeitiçado, tão totalmente possuído por suas fantasmagorias que se sente olhado por elas, talvez desprezado, talvez motivo de compaixão. As nossas criações julgam-nos". 

A Octavio Paz deve Fernando Pessoa a revelação da sua poesia no universo da língua espanhola, dando início a um movimento imparável de curiosidade e descoberta da sua obra. Mas também a obra de Paz não poderia ser imaginada sem a consciência que o autor mexicano teve da tradução e da escrita enquanto criações estéticas, morais e rituais, uma consciência inspirada pela obra de Pessoa de quem Paz traduziu meia centena de poemas que foram a levedura modernista que haveria de dar corpo à sua poesia.

[escrito e publicado em 31 de março para assinalar o centenário do nascimento de Octávio Paz, apagado por lapso, recuperado, e  republicado em 1 de abril]

11 de março de 2014

A esperança é abundante, mas não é para nós


Há sete anos anos passou na RTP1 a série documental Portugal - Um retrato social, da autoria de António Barreto, com realização de Júlia Pontes e pesquisa documental de Maria João Silva, que, na ocasião, me suscitou uma breve reflexão sobre aquele retrato da sociedade portuguesa que punha em confronto o que o país era à data da realização da série com o que o país tinha sido nas últimas décadas. Quem éramos nós? Um povo com um forte sentimento de identidade e uma aguda consciência de um esplendor desaparecido? Mas também gente que vivia com convicção de sofrer um atraso crónico e crescente relativamente ao resto da Europa.

Ainda assim, há sete anos, no final daquela série televisiva, ficámos com o sentimento de que o país mudara e, em muitos aspectos, para bem melhor. Os que, como eu, viveram essa mudança, sabiam-no bem, embora, às vezes, parecessem esquecer-se. Sobretudo os mais novos ignoravam o alcance dessas mudanças. A emigração, a guerra colonial, uma revolução política e social, a democracia, a descolonização, a adesão à União Europeia foram alguns dos acontecimentos que marcaram as últimas quatro décadas e que provocaram ou aceleraram mudanças sociais profundas numa sociedade que revelava uma notável plasticidade. Diminuição da mortalidade infantil, integração das mulheres na população activa, expansão do sistema escolar, aumento dos rendimentos das famílias, declínio das actividades agrícolas, abrandamento das actividades industriais, terciarização, desenvolvimento do estado social, eis algumas das mudanças que o documentário de António Barreto evidenciou na altura. E, contudo, não fora fácil libertar o país de tudo aquilo que o estigmatizara durante décadas: a ignorância e a reverência, a delação e o medo, o autoritarismo e a repressão. Mas que o país mudara, que se aproximara dos padrões de vida e de comportamento europeus, isso era indesmentível.

Contudo, já à data da apresentação da série documental, a incerteza e a dúvida começavam a instalar-se nos portugueses. A um período de crescimento e desenvolvimento, seguia-se um tempo de recessão ou de estagnação com efeitos sociais e psicológicos que não mais pararam de se adensar. Quem, entretanto, conhecera melhores tempos, quem vivera a onda de progresso trazida pela democracia, via-se, doravante, ameaçado pelo abrandamento, pelo esgotamento. Portugal acentuava a sua tendência histórica para resvalar para a depressão bipolar. Tão depressa nos víamos como os "maiores", como rapidamente baixávamos os braços, transfigurando-nos em incapazes, indiferentes. Por isso, contraditoriamente, no final da cada programa, ficávamos, já então, com um certo amargo de boca, pois continuávamos a ser aquele país com "medo de existir" retratado por José Gil, incapaz de soltar-se e ir no encalço dos nossos parceiros europeus. Não porque essa incapacidade fosse uma fatalidade à qual não poderíamos escapar, mas, sobretudo, porque o nosso atraso resultava de muitos anos de governações erradas e de uma forma de estar cada vez mais arreigada nos portugueses, que preferem atirar o lixo para debaixo do tapete, viver à margem da crítica, pactuar com a mediocridade e cultivar a inveja.

"Empobreceram-nos!" exclamava Jorge de Sena, o poeta do desespero lúcido, num tempo anterior em que os portugueses trabalhavam o dia inteiro nos campos e nas fábricas, mal ganhando para o precário sustento das famílias, envelheciam rapidamente e morriam sem diagnóstico nem assistência, sem saberem de que mal padeciam,. E acima de tudo, sem esperança. Nesse tempo da "cobra e do abutre", para além da tirania dos que ditavam o que se podia ou não fazer, vestir, dizer ou mesmo pensar, havia ainda a tirania da permanente poupança, da privação perpétua do prazer, da existência num mundo estagnado sob um céu de chumbo.

 "Acusam-me de mágoa e desalento (...) / homens dispersos", escreveu Carlos de Oliveira interpelando a pátria do seu tempo, então tão confusa, perdida e aparentemente tão alheada como agora. E "que Portugal se espera em Portugal?" perguntava, também, Jorge de Sena algumas décadas atrás. Onde existem, agora, os que deixaram de existir, desaparecidos no vórtice de um país com medo de existir, apetece-me a mim perguntar.

Outras décadas mais tarde e sete anos depois do retrato traçado por António Barreto, o empobrecimento dos portugueses está de volta, como se constata no retrato de portugal traçado pelo INE: ficámos a saber que o PIB do país recuou para valores semelhantes ao ano 2000 e que o emprego caiu para os níveis de 1996 e que em dois anos e meio os portugueses perderam 328 mil empregos. E tudo isto para iludir uma dívida pública bruta descontrolada que, no mesmo período, subiu de 94% para cerca de 130%, bem acima das previsões da troika.

Confrontando-se com estes números catastróficos, o primeiro-ministro vai afirmando que o país não voltará tão cedo a viver na pequena prosperidade que os portugueses julgavam que já lhes pertencia,  o Presidente da República vai avisando no prefácio ao seu livro Roteiros que os sacrifícios terão, ainda, de perdurar por mais duas décadas e o patrão da Sonae justificando com argumentos falaciosos a impossibilidade de aumentar salários. Uns e outros prevendo sem justa alternativa, e sem remorsos, o empobrecimento progressivo do país. E com argumentos que põem em questão a razão de ser e a credibilidade dos tempos que aí vêm. Todos, no fim de contas, indiferentes à nossa história nacional do alheamento que perdurou durante a maior parte do século XX e que, a julgar pelos sinais que não cessam de se avolumar, parece querer repetir-se, reinstaurando a tirania da privação que nos vai moendo até levar à desistência.

A contrapelo desta história nacional do alheamento, e a contragosto da Alemanha, há quem olhe de frente para o precipício fazendo lembrar aqueles "exploradores do abismo" do livro homónimo de Enrique Vila-Matas: "pessoas comuns que, ao ver-se à beira do precipício, adoptam o estatuto de expedicionário e sondam no plausível horizonte, indagando o que pode haver fora daqui, ou no mais além dos nossos limites". E o que nos vêm dizer esses exploradores através de um Manifesto, hoje tornado público, subscrito 70 personalidades da esquerda à direita, é que mais além dos limites impostos pela troika deveria ser considerada a reestruturação da nossa dívida como via para não se esgotarem definitivamente os garantes político-materiais da esperança a que os portugueses têm direito, sobretudo os mais jovens atirados para o desemprego ou para a emigração. Porque, como diria Kafka se lhe fosse pedido que traçasse o retrato de Portugal, "a esperança é abundante, mas não é para nós".

8 de março de 2014

Um dia triunfal


Conta Pessoa em carta dirigida a Adolfo Casais Monteiro que no dia 8 de Março de 1914 - faz, portanto, hoje, 100 anos - lhe aconteceu o seguinte: "acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro. Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e subconscientemente — uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos — a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem."

Passando ao lado da polémica sobre a veracidade deste suposto "dia triunfal" que, segundo alguns investigadores, se terá tratado de uma mistificação ou de uma "fábula poética" - tanto mais que, como o próprio Pessoa escreveu, "o poeta é um fingidor" -, o que é verosímil, como demonstram algumas provas textuais, é que a génese dos heterónimos Caeiro, Campos e Reis se situará entre o início de Março e meados de Junho de 1914, período em que Pessoa escreve impetuosamente poemas em nome de cada um deles. Ou seja, o centro nevrálgico da sua obra, situa-se neste breve período de criação poética torrencial que Pessoa celebrou como sendo o seu "dia triunfal" e cujo centenário, também eu hoje celebro.

5 de março de 2014

A última carta de amor


Proust dizia que há apenas um único grande livro que cada escritor escreve ao longo da sua vida. Talvez isso se aplique a Carta a D. (Pianola, 2013), escrita e dedicada por André Gorz à sua mulher Dorine, no epílogo de uma vida partilhada a dois durante cinquenta e oito anos, e que foi o prenuncio de um desfecho shakespeariano, longamente planeado. De uma enorme sublimação estética - que confirma o mito socrático de que o amor serve para criar belos e magníficos discursos -, esta carta é, como acrescenta o subtítulo, a história de um amor nascido "maravilhosamente, quase como um relâmpago", entre dois seres aparentemente tão diferentes.

Publicada no final do ano passado pela Pianola, uma pequena editora independente que, a contra-pelo, considera que os livros não são todos iguais, esta Carta a D. é uma preciosidade que, como desejo, aguarda resposta, já não do seu destinatário original, mas dos leitores que ainda acreditam na dialéctica particular da carta de amor.

O remetente é André Gorz, pseudónimo do jovem austríaco naturalizado francês Gérard Horst ou, quando ainda austríaco, Gerard Hirsch, filho de pai judeu e mãe católica. Conviveu com Sartre e Simone de Beauvoir, tendo sido colaborador na revista Temps Modernes e, depois, fundador com Jean Daniel, do Nouvel Observateur. A sua herança intelectual, que contraria a ideia proustiana do livro único, decorre da inovação epistemológica, adaptando um pensamento com raízes na Escola de Frankfurt à experiência da actualidade, como mostra o seu derradeiro livro filosófico [L´Immatériel, Galilée, 2003], onde explora o potencial de liberdade, de subversão e de emancipação que existe na "economia do imaterial", a despeito das desesperadas tentativas de controlo do novo mundo virtual. Deixa, implícita, uma interrogação. Poderá, ainda, a sociedade recuperar o domínio sobre a economia? Como tentativa de resposta antecipa o surgimento de uma "dissidência numérica" no seio do "capitalismo cognitivo" emergente a partir da crise de um capitalismo que consagra a irredutibilidade das conexões virtuais.

A destinatária é Dorine Key, uma jovem inglesa por quem Gorz se apaixonou irremediavelmente, em 1947, casando-se dois anos depois. O encontro entre os dois foi, confessa Gorz, o acontecimento fundamental da sua vida. Porém, sendo D. a figura de proa, quer na sua vida afectiva quer na criação filosófica, a sua obra transporta apenas um nome quando, na verdade, é fruto de um processo levado a cabo por um casal. Daí a escrita desta Carta constituir, para além de uma assombrosa declaração de amor a um ser único e inconfundível, uma tentativa de reparação de um pecado original: "Eu não gostava de gostar de ti". E Gorz escreve, também, para cumprir um desígnio, defendido pela própria D. O da sublimação literária da extraordinária experiência da vida: "Amar um escritor, dizias, é amar que ele escreva. Portanto, escreve!", pediu-lhe ela. E ele escreveu. Até à morte. O suicídio cometido por ambos, talvez, seja, então, a variação final e esmagadora do grande livro do amor que escreveram a dois corpos durante os cinquenta e oito anos de vida em comum. Coisa rara num tempo em que a fragilidade dos laços humanos ameaça liquefazer um mundo onde até o "amor [é] líquido", conforme metáfora que dá o título ao livro de Zygmunt Bauman.

Pela sua grandeza mítica, esta história de um amor abre um capítulo que ainda não tinha sido escrito na genealogia do discurso amoroso que vai desde Platão a S. Tomás de Aquino, de Tristão e Isolda ou Romeu e Julieta ou Pedro e Inês a Don Juan, dos trovadores a Goethe, Stendhal, Flaubert ou Eça de Queirós, passando pelas elaborações históricas, filosóficas, simbólicas, psicanalíticas ou sociológicas de Denis de Rougemont, George Bataille, Roland Barthes, Julia Kristeva ou Zygmunt Bauman sobre esse imenso e permanente transfert que condensa a maior parte do som e da fúria da vida e que admite, mais do qualquer outra experiência humana, o devaneio literário. É que seja o amor platónico e transcendente, seja a paixão romântica, seja a pulsão erótica, as histórias de amor que a literatura nos legou sempre foram histórias de amores impossíveis, de traição e de adultério, e raramente de amor conjugal a não ser quando figuras como a separação ou ausência produziam suficiente encantamento lírico ou motivação romanesca.

O amor conjugal, e perpectual, de Gorz e Dorine, de que esta Carta constitui a derradeira e absoluta metáfora, dis-corre através de algumas das figuras amontoadas por Roland Barthes no seu livro Fragmentos do Discurso Amoroso, superando, não obstante a vulnerabilidade de toda a relação amorosa, a dualidade intransponível  dos amantes. Recordando a história da sua relação amorosa com Dorine, Gorz descreve como os dois amantes, graças às qualidades cada vez mais raras da humildade, coragem, fé e disciplina verdadeiras, se abriram ao destino, admitindo a liberdade que habitava no companheiro do amor, transformando a fragilidade da vida em comum na energia que os conduziu através do turbilhão dos dias.

"É pois - tal como no incipit enunciativo de Barthes, nos Fragmentos - um apaixonado que fala e diz": "Vou fazer oitenta e dois anos. Encolheste seis centímetros, pesas apenas quarenta e cinco quilos e mantens-te bela, graciosa e desejável. Há cinquenta e oito anos que vivemos juntos e amo-te mais do que nunca. Sinto de novo no fundo do meu peito um vazio devorador que é apenas preenchido com o calor do teu corpo contra o meu". E o sujeito apaixonado que aqui fala vive, ainda, sob o clarão do relâmpago maravilhoso, permanecendo numa espécie de futuro anterior, em que a nostalgia se funde com promessa do encontro  inventado de cada vez, ou definitivamente inventado. O não-tempo do amor retraçado por Julia Kristeva, em Histoires d´Amour: "Até amanhã, até sempre, como sempre, fiel, eternamente como antes, como sempre foi, como quando já tiver sido, para ti... Permanência do desejo..." E permanência da visão estética: "bela [e] graciosa" que "não aloja nenhuma qualidade mas apenas o todo do afecto", segundo a figuração de Barthes. O grau zero de todos as possibilidades donde nasce o desejo por D. e não por outro corpo.

Dorine é, na carta, o próprio atopos sugerido por Barthes:atopos o outro que amo e que me fascina. Não posso classificá-lo, pois é precisamente o Único, a Imagem singular que veio miraculosamente responder à especialidade do meu desejo". Redimindo-se da maneira como a traçou em obras anteriores - como uma jovem frágil e perdida que não sobreviveria sem ele -, retraça-a, agora, como independente, inteligente e livre, que o supera em todas as suas capacidades e que teve um papel essencial no pensamento que ele criou. Nesse sentido, os contornos da autoria, do eu e do tu, confundem-se na narrativa, uma vez que esta balanceia entre a primeira pessoa do singular e a primeira pessoa do plural. As recordações e as amizades, o trabalho criativo e a cumplicidade política, tudo é pertença do nós. É o eu que pede desculpa pela postura intransigente do passado, que ama perdidamente e que lhe dói o outro.

Carta termina com uma reivindicação do amor: "À noite vejo por vezes a silhueta de um homem que segue um carro funerário, numa estrada vazia e numa paisagem deserta. Esse homem sou eu. O enterro é o teu. Não quero assistir à tua cremação; não quero receber um frasco com as tuas cinzas. Escuto a voz de Kathleen Ferrier que canta Die Welt ist leer, Ich will nicht leben mehr [O mundo está vazio, não quero viver mais] e acordo. Observo a tua respiração, a minha mão acaricia-te. Cada um nós gostaria de não sobreviver à morte do outro. Muitas vezes dissemos um ao outro que, no caso impossível de termos uma segunda vida, queríamos passá-la juntos".  

Em Amor Líquido, escreve Zygmunt Bauman que "poucas coisas se parecem tanto com a morte como o amor realizado. Cada chegada de um dos dois é sempre única, mas também definitiva: não suporta a repetição, não permite recurso nem promete prorrogação. Deve sustentar-se por si mesmo". O amor e a morte foram para Gorz e D. o ponto de encontro sem promessa de retorno porque tudo já havia sido dito. Na vida em comum e na última carta escrita.

3 de março de 2014

Epitáfio


Releio alguns micro-contos de Augusto Monterroso e encontro o seguinte epitáfio que o escritor guatemalteco diz ter descoberto, um dia, num cemitério:

"Escreveu um drama: disseram que se julgava Shakespeare; / Escreveu um romance: disseram que se julgava Proust; / Escreveu um conto: disseram que se julgava Chekhov; / Escreveu um diário: disseram que se julgava Pavese; / Escreveu uma despedida: disseram que se julgava Cervantes; / Deixou de escrever: disseram que se julgava Rimbaud; / Escreveu um epitáfio: disseram que se julgava defunto."

24 de fevereiro de 2014

Sempre rumo a Ítaca


Leio em Alfabetos, livro de ensaios de literatura de Claudio Magris que, como todos os seus livros, é - como diz Enrique Vila-Matas - "um tapete que dispara em muitas direcções", um texto sobre Novalis que, citando o começo de Heinrich von Ofterdingen, obra-prima da literatura romântica alemã e europeia, propõe esta reflexão exemplar: "Onde vos dirigis?" - perguntam os viandantes - "Sempre rumo a casa" - é a resposta. E enquanto os viandantes de Novalis, depois de terem ido em busca da flor azul da poesia, vão empreendendo a sua viagem de regresso, recordo a minha leitura recente de Às Cegas, o romance-ensaio de Magris que mistura matéria ficcional, documental, autobiográfica, ensaística, histórica e epistolar, onde Salvatore Cippico depois de ter atravessado mares, continentes e séculos, interroga se ainda existirá casa aonde possa regressar depois da sua dolorosa travessia em que foi avançando e perdendo-se continuamente, num "delírio de muitos": "Nenhuma viagem é demasiado longa e perigosa, sobretudo se traz de volta a casa. Mas existem ainda casas onde voltar, alguma vez existiram?"

A pergunta que os viandantes de Novalis e o revolucionário errante de Magris fazem a si próprios é - diz Magris - "a grande pergunta que um Ulisses sente dirigirem-lhe e dirige a si próprio [e que] é se ele, atravessando o mundo e a existência, pode voltar a casa, a Ítaca, ou seja, a si mesmo, confirmado [...] na sua identidade e confirmando o sentido da sua vida, ou se será forçado a ir sempre mais adiante e sempre mais longe, descobrindo a impossibilidade de formar a sua pessoa e de encontrar um significado nas coisas, perdendo-se pelo caminho e tornando-se continuamente um outro. Essa odisseia sem retorno a Ítaca é, com efeito, a viagem, o destino mais frequente dos Ulisses modernos." Como o Ulisses de Dante que, no Canto XXVI do Inferno, afirma que nem a piedade pelo pai, nem a companhia do filho, nem o amor devido a Penélope e que deveria torná-la feliz, puderam vencer nele a vontade de conhecer o mundo, bem como os vícios e as virtudes dos humanos e, por isso, voltou a partir de Ítaca, persuadindo os companheiros a acompanhá-lo na busca desse conhecimento numa viagem que viria a revelar-se sem retorno.

Ao contrário da Odisseia de Homero onde Ulisses regressa a casa com a sua identidade confirmada ou da odisseia de Novalis onde a errância pelo mundo do protagonista em busca da flor azul da poesia é imaginado como o retorno absoluto à casa natal ou, ainda, da odisseia de Joyce onde Leopold Bloom também regressa a casa numa viagem circular elíptica, a odisseia de Salvatore Cippico e do seu alter-ego, o aventureiro dinamarquês Jorgen Jorgensen, é uma "odisseia sem retorno a Ítaca" que expressa a arbitrariedade dos poderes, a impossibilidade de retorno ao lar, a errância sem sentido, a desorientação e, finalmente, o naufrágio que, num "delírio de muitos", como na odisseia dos homens sem qualidades de Musil, leva ao apagamento das identidades como se estas fossem pegadas na areia.

Inspirado pelo motivo da navegação temerária enquanto metáfora náutica da existência - trabalhada pelo filósofo alemão Hans Blumenberg em Naufrágio com Espectador, a partir do Proémio do livro de Lucrécio Rerum Natura, sublinhando a posição segura em terra firme donde o espectador observa a cena do heróico naufrágio dos audazes navegadores -, Magris faz-nos embarcar ("Vous êtes embarqués", conforme fórmula inventada por Pascal) numa odisseia moderna que expande a geografia homérica bem para além do Mediterrâneo, espraiando-a desde o seu epicentro em Trieste, para Norte, até à Islândia e, para Sul, até às costas da Tasmânia, através do mar conradiano da existência - povoado de costas e ilhas, recifes e tempestades, abismos e calmarias, timoneiros e ancoradouros, monstros e sereias, figuras de proa e portos de abrigo - onde o indivíduo arrisca o naufrágio.

"Nascer é como cair ao mar", afirma uma personagem em Lord Jim, de Conrad. Por isso, sem uma fundação sólida sobre a qual se apoiarem, perdida a figura de proa capaz de os guiar, amarrotado nas dobras do tempo o tosão de ouro, como fazer para regressar a Ítaca? "Por todo o lado, há pântano, lodo e algas sobre os quais se derrama a espuma do mar. O Argo está encalhado, o tosão pende amarrotado; [...] Jasão cala-se, como sempre, não consegue sequer fixar o olhar perdido no mar, porque já não existe mar".

Mas se, como diz a personagem de Conrad, "nascer é como cair ao mar" ou se, de acordo com a metáfora nietzschiana do embarque, viver é como estarmos já no alto mar, onde, para além da salvação ou naufrágio, não há qualquer outra possibilidade, então, estamos destinados a partir de Ítaca, uma e outra vez, sem "fés ou filosofias específicas, que garantam a escolha e a bondade das acções" que nos poderão trazer de volta a casa. Porque, como diria Goethe, estamos totalmente embarcados sobre a vaga do mundo - firmemente decididos a descobrir, ganhar, lutar, falhar, ou de ir ao fundo com toda a carga.

18 de fevereiro de 2014

Odisseia de desilusão


"Nenhuma viagem é demasiado longa e perigosa, sobretudo se traz de volta a casa. Mas existem ainda casas onde voltar, alguma vez existiram?", pergunta Salvatore Cippico em Às Cegas, o último livro de Claudio Magris, um oceano de palavras em cujas águas imensas e escuras se misturam matéria ficcional, documental, autobiográfica, ensaística, histórica e epistolar através de uma voz confessional que navega à deriva entre a epopeia e o delírio, entre o mito e a realidade, para depois da funesta travessia regressar não a casa, como Jasão, mas a um manicómio, sem o tosão de ouro cuja busca foi a razão da sua odisseia. Claudio Magris trabalha aqui um motivo recorrente na sua obra: o do indivíduo à deriva, orfão da ideologia, já sem figura de proa que o guie no nevoeiro que se adensa sobre o mundo, e que, num derradeiro acto de esperança, se lança para diante, às cegas, avançando e perdendo-se continuamente num "delírio de muitos" - como chamaria Musil -, ora naufragando em travessias marítimas ora no naufrágio colectivo das utopias.  

A pergunta que Salvatore Cippico faz a si próprio, e a nós todos, é se ele, atravessando continentes e séculos, pode regressar a casa, a Ítaca, confirmando o sentido da sua existência ou se será forçado a ir sempre adiante e sempre mais longe avançando e perdendo-se continuamente, num "delírio de muitos", nas ilusões em que fundou, e afundou, a sua vida, descobrindo assombradamente a falta de sentido das coisas e do mundo. Odisseia de desilusão e sem retorno porque esta é uma viagem onde o indivíduo viaja às cegas no turbilhão do mundo, e quando pretende regressar o mundo inteiro já se converteu num país estrangeiro, logo num país para onde já não existe a necessidade de regressar e, muito menos, a de voltar a casa, porque a própria casa em que habitava a utopia também já não existe.

Ao contrário da Odisseia de Homero onde Ulisses regressa a casa com a sua identidade confirmada ou da odisseia de Joyce onde Leopold Bloom também regressa a casa numa viagem circular eliptica, esta é uma odisseia que expressa a impossibilidade de encontrar um significado para a viagem, a errância às cegas que conduz ao naufrágio da existência daqueles argonautas das causas sociais que, depois de terem circum-navegado as utopias, empreendem a impossível viagem de regresso, ao contrário de Jasão, sem o tosão de ouro, roubado, entretanto, por aqueles que ficaram em terra. 

Odisseia sem retorno a Ítaca do revolucionário Salvatore Cippico que, num hospital psiquiátrico, recorda a sua vida, confundindo-a com as de vários aventureiros, uns reais, como Jorgen Jorgensen (1780-1841), que se autoproclamou rei da Islândia, outros míticos, como Jasão, das Argonáuticas, de Apolônio de Rhodes, entre outros que, como ele, se lançaram para diante avançando e perdendo-se continuamente, desagregando-se num "delírio de muitos" como o Ulisses "sem qualidades" de Musil. 

"Mas como lidar com todo este vai e vem, com tantas coisas que se sobrepõem umas às outras, anos e países e mares e prisões e rostos e factos e pensamentos e uma vez mais prisões e os céus fendidos da noite de onde o sangue sai em golfadas e feridas e fugas e quedas... E a vida, tantas vidas, não se pode mantê-las juntas". Através de um delirio de vozes - de Cippico, protagonista e narrador desta odisseia colectiva sem retorno e do seu alter ego Jorgen Jorgensen -  em que ressoam as de outros malogrados perdidos nas dobras da história e que Magris, num oceano de palavras que fluem e refluem livremente, "resgata para a literatura" através da narrativa de um louco sobre a sua própria odisseia no tempo e no espaço, e que se polariza nas categorias antagónicas dos que fazem a revolução, dos que a reprimem e dos que a atraiçoam. 

Salvatore - cuja história Magris já havia contado em Outro mar, em Microcosmos e num dos artigos de Utopia e desencanto - é um daqueles dois mil operários de Monfalcone, militantes comunistas que tinham estado nos Lager alemães e nas prisões fascistas, e que foram, depois, construir o socialismo na Jugoslávia de Tito, cruzando-se no caminho com 300.000 italianos em fuga desde a Istria, Fiume e Dalmacia, para se instalarem na Itália. Salvatore vê-se a si tróprio como Jorgen Jorgensen, aventureiro dinamarquês que viveu no século XIX, participou das guerras napoleónicas, autoproclamou-se rei da Islândia e fundou a capital da Tasmânia. O liga a navegação temerária de ambos é o mito de Jasão, o argonauta grego que partiu em busca do tosão de ouro e teve filhos com Medeia. Só que "ele, Jasão, regressa com o tosão, mas [Salvatore e Jorgen] [...] quando acorda[m] o tesouro já lá não está. Onde está a bandeira vermelha, quem a roubou?"

Como Orfeu, ambos perderam "Eurídice que [os] vê voltar e abandoná-la para sempre e ao nada": Jorgen desertando para as lonjuras do mundo, Salvatore trocando-a pela "bandeira vermelha". O ponto de passagem dessa perspectiva narrativa que mistura biografia, mito e história é, por isso, a figura feminina, que sempre evoca Maria que ora se mostra como a figura esculpida na proa dos navios que avançam temerosamente no mar ora como pecado original pela traição cometida. A inútil traição ao amor em nome dos amanhãs que cantam que nunca chegarão. Por isso, a loucura como derradeira expressão das vidas afundadas. Ou como diz o provérbio da Ístria que abre e fecha o romance: "Caro Cogoi, semo cagai". Em bom português: "Caro Cogoi, estamos fodidos".


13 de fevereiro de 2014

A dor dos animais



Mary, uma elefanta de circo executada em 1916, no Tennessee, diante de uma multidão de milhares de pessoas, após reagir a maus tratos e matar um treinador tem sido interpretada como símbolo da repressão e abuso contra animais em circos. A execução com um tiro na cabeça, no passado domingo, no zoo de Copenhaga, de Marius, uma jovem girafa, não por se ter revoltado contra o tratador mas para prevenir problemas de consanguinidade e, depois, esquartejada em bárbaro espectáculo diante dos visitantes, com peritos a explicarem a anatomia do animal aos presentes, entre os quais muitas crianças, antes de ser servida de repasto aos leões, poderia bem constituir um dos inumeráveis remakes da mesma violência infligida pelo homem aos animais. 

O que liga estes dois acontecimentos aos muitos outros sofrimentos que o homem inflige aos animais de maneira menos visível como na produção de carne, na extracção de peles, na indústria de cosméticos, em práticas culturais, em experiências científicas, não é tanto a crueldade sádica mas uma violência banal, endémica, contra os animais que prefigura sempre uma violência contra os homens: “A crueldade contra os animais acostuma-nos à crueldade contra os homens”, avisa Coetzee em A vida dos animais. Como neste relato sanguinário que no romance-ensaio Às Cegas, Claudio Magris põe na boca do aventureiro islandês descobridor da Tasmânia: “Matar os fugitivos, os cangurus, as baleias – todas as baleias, auspiciou o governador Collins, porque atrapalham as actividades na foz do Derwent – as focas. Na grande baía de North Cape centenas de carcaças de focas esfoladas jazem na praia; os barcos carregados com a sua pele vão-se afastando da margem em direcção ao navio, os pássaros estão já a descarnar os animais macerados à paulada e até mesmo os filhotes são cândidos pompons emporcalhados de sangue. A extensa onda anuncia-se como um sopro profundo, as baleias chegam à foz do Derwent prenhes, viajaram milhares de quilómetros para ali virem parir, como fazem há milénios; as pequenas baleias saem do ventre das mães arpoadas, sangue viscoso do parto e sangue límpido da morte”. 

Conta W. G. Sebald, em Os Anéis de Saturno, que um tal Noël de Marinière, inspector do mercado do peixe de Rouen, viu um dia com espanto um par de arenques que ainda mexiam ao cabo de duas ou três horas em seco e decidiu averiguar melhor qual a capacidade de sobrevivência destes peixes, o que fez cortando-lhes as barbatanas e mutilando-os de diversas maneiras. Este procedimento, inspirado pelo nosso impulso para o saber, é por assim dizer o ponto culminante da história de dor de uma espécie constantemente ameaçada de catástrofe”.  Não observámos já, também nós, nos nossos mercados de peixe, uma cena de crueldade semelhante que ignorámos na convicção de que a fisiologia dos peixes os isenta do medo e das dores que sofrem os corpos e as almas humanas no estertor da morte? 

Donde provém esta banalização do mal contra os animais capaz de estender-se, como a História já comprovou demasiadas vezes, aos próprios homens? Trata-se de uma convicção sem consistência baseada numa convicção antropomórfica arbitrária, segundo a qual os animais não são seres sencientes, não sofrem. Esta convicção resulta de uma cisão entre natureza e cultura que, diz-nos Hölderlin, nos deixou órfãos dos deuses e sem possibilidade de redenção. Ora a etologia ensina-nos que os animais não têm apenas mecanismos instintivos, como a ignorância de alguns e o comodismo de quase todos fazem acreditar. É que - como considera a personagem do romance de Robert Musil que não tendo qualidades alheias, tinha, contudo, a qualidade de reconhecer a alma dos animais -, se Deus se fez homem, poderia ou deveria também fazer-se gato ou flor.

Como olhar com bondade para os animais se a nossa cultura não vem nem dos bosques do poeta Eichendorff nem do mar de Melville, pergunta-se Claudio Magris, em Danúbio? Para afirmar, em seguida, que a mundanidade social constitui o nosso horizonte. Civilização e moral baseiam-se, assim, na distinção entre homens e animais cujas existências mínimas fazemos por ignorar a não ser na sua coisificação em nosso proveito, como sustenta Kant: “As nossas obrigações com os animais são apenas obrigações indirectas com a humanidade.”

A fraternidade solidária humana - que não obstante a sua retórica hipócrita não pára de falhar, atirando os desprotegidos do mundo para a pobreza e o sofrimento - não apenas exclui os animais como, sem consciência da irredimível dor causada, retira à própria Humanidade qualquer esperança de redenção, como afirma Magris: “A irredimível dor dos animais, povo obscuro que acompanha como uma sombra a nossa existência, lança sobre esta última todo o peso do pecado original”.   

Por isso, contra a cegueira que não nos deixa ver o medo e dor dos animais, reconhecer que também a elefanta Mary e a girafa Marius têm direitos universais e invioláveis. E deixarmo-nos, como Marguerite Yourcenar, comover perante "este aspecto perturbador do animal que não possui nada, a não ser a vida que quase sempre nós lhe roubamos”.

5 de fevereiro de 2014

Dez moradas de leitura


Dizia Jorge Luis Borges que deixava aos outros vangloriarem-se dos livros que tinham escrito e que a sua glória consistia antes nos livros que havia lido. E Roberto Bolaño que era "muito mais feliz lendo que escrevendo". Ora eu - que também me confesso um leitor feliz e dilatório, não o leitor interactivo dos livros da moda, mas o leitor iterativo, assediado pelos labirintos de tinta embebida nos livros, e embora perdendo neste escrevinhar algum tempo precioso que poderia, gloriosamente, dedicar à leitura e, assim, alcançar a felicidade breve nesta curva da noite -, correspondendo a um jogo a que alguém deu início no facebook e ao qual resisto a contornar, dou por mim, agora, a dis-correr entre as prateleiras da minha biblioteca, entretendo-me a namoriscá-la, cortejando-a nas suas múltiplas e distintas moradas, para, depois, uma a uma, mover o fecho de algumas portas  e entrar, ainda e sempre, como um leitor insaciado, nos aposentos de dez livros que li gloriosamente.
 
São, portanto, dez moradas habitadas por livros que fazem parte da minha genealogia de leitor feliz e glorioso - e digo fazem parte, porque o labirinto de ruas em que se alinham e desalinham as moradas cujos fechos das portas vos convido a girar integram uma biblioteca com uma cartografia mais ampla através da qual - como diria Walter Benjamin - gosto de perder-me como quem se perde num bosque, com instrução.

Se é verdade que na minha biblioteca, os aposentos onde moram os livros se distribuem de acordo com uma arrumação, um protocolo que põe em evidência o irredutível mistério e encanto de quem lá habita, convidando a perder-me com instrução nos seus labirintos, a lista com que me proponho, nesta noite irrepetível, entrar na corrente, no jogo livresco que vai amontoando entre as pregas das páginas do facebook constelações pessoais de livros, não obedece a qualquer ordem, pois depende de uma flânerie efabulante que me levou a mover, ao acaso, um fecho de uma porta para entrar numa morada em vez de outra, seguindo imperativos ou prazeres do imaginário volúvel de leituras.

Nenhuma lógica, portanto, liga ou determina a contiguidade desta genealogia de livros amados que como um apaixonado fui buscar à reserva (ou ao tesouro?) das minhas leituras afectivas. Tão pouco obedece a uma cronologia de leitura - com excepção do primeiro livro da lista que foi, efectivamente, o primeiro livro que li e amei, ficando, portanto, destinado a permanecer para sempre como o Livro inicial -, pois os livros escolhidos para esta lista, que tenderá como qualquer lista a não ter fim, giram como um calendário perpectual, uma constelação de moradas de leitura afectiva, intensiva e portátil, cujas portas giratórias deixo entreabertas à vossa curiosidade de leitores gloriosos.

. A Ilha do Tesouro (Robert Louis Stevenson), onde vivi a minha primeira odisseia do espírito e me deixei arrebatar por um imaginário que me revelou que havia mais mundos do que aquele eu habitava.
. Lorde Jim (Joseph Conrad), com quem embarquei no primeiro navio que saía do porto de abrigo do meu quarto de adolescente e em cujas páginas me abandonei ao desconhecido das costas do Pacífico.
. O Homem Sem Qualidades (Robert Musil), onde me sentei à mesa dos cafés de Viena observando os homens sem qualidades em apocalipse alegre.
 . As Lojas de Canela (Bruno Schulz), cujos umbrais cruzei para penetrar na colmeia de loucura e metamorfoses em que o autor se encontrava encerrado.
. Jacob von Gunten (Robert Walser), com quem aprendi a arte de escrever a lápis para melhor poder ausentar-me.
. O Castelo (Franz Kafka), que li como um agrimensor de sentidos ocultos.
. Rayuela (Julio Cortázar), onde aprendi a melhor maneira de me perder em Paris.
. Debaixo do Vulcão (Malcolm Lowry), onde vi o cônsul da embriaguez e dos vulcões se precipitar nos abismos do mescal.
. Os Anéis de Saturno (Sebald, W. G.), sob os quais me tornei um agrimensor de paisagens e de memórias.
. Danúbio (Claudio Magris), cujo caudal me levou numa viagem iniciática através da Mitteleuropa e que não cesso de reiniciar porque o fluir do rio nunca é o mesmo.