5 de fevereiro de 2014

Dez moradas de leitura


Dizia Jorge Luis Borges que deixava aos outros vangloriarem-se dos livros que tinham escrito e que a sua glória consistia antes nos livros que havia lido. E Roberto Bolaño que era "muito mais feliz lendo que escrevendo". Ora eu - que também me confesso um leitor feliz e dilatório, não o leitor interactivo dos livros da moda, mas o leitor iterativo, assediado pelos labirintos de tinta embebida nos livros, e embora perdendo neste escrevinhar algum tempo precioso que poderia, gloriosamente, dedicar à leitura e, assim, alcançar a felicidade breve nesta curva da noite -, correspondendo a um jogo a que alguém deu início no facebook e ao qual resisto a contornar, dou por mim, agora, a dis-correr entre as prateleiras da minha biblioteca, entretendo-me a namoriscá-la, cortejando-a nas suas múltiplas e distintas moradas, para, depois, uma a uma, mover o fecho de algumas portas  e entrar, ainda e sempre, como um leitor insaciado, nos aposentos de dez livros que li gloriosamente.
 
São, portanto, dez moradas habitadas por livros que fazem parte da minha genealogia de leitor feliz e glorioso - e digo fazem parte, porque o labirinto de ruas em que se alinham e desalinham as moradas cujos fechos das portas vos convido a girar integram uma biblioteca com uma cartografia mais ampla através da qual - como diria Walter Benjamin - gosto de perder-me como quem se perde num bosque, com instrução.

Se é verdade que na minha biblioteca, os aposentos onde moram os livros se distribuem de acordo com uma arrumação, um protocolo que põe em evidência o irredutível mistério e encanto de quem lá habita, convidando a perder-me com instrução nos seus labirintos, a lista com que me proponho, nesta noite irrepetível, entrar na corrente, no jogo livresco que vai amontoando entre as pregas das páginas do facebook constelações pessoais de livros, não obedece a qualquer ordem, pois depende de uma flânerie efabulante que me levou a mover, ao acaso, um fecho de uma porta para entrar numa morada em vez de outra, seguindo imperativos ou prazeres do imaginário volúvel de leituras.

Nenhuma lógica, portanto, liga ou determina a contiguidade desta genealogia de livros amados que como um apaixonado fui buscar à reserva (ou ao tesouro?) das minhas leituras afectivas. Tão pouco obedece a uma cronologia de leitura - com excepção do primeiro livro da lista que foi, efectivamente, o primeiro livro que li e amei, ficando, portanto, destinado a permanecer para sempre como o Livro inicial -, pois os livros escolhidos para esta lista, que tenderá como qualquer lista a não ter fim, giram como um calendário perpectual, uma constelação de moradas de leitura afectiva, intensiva e portátil, cujas portas giratórias deixo entreabertas à vossa curiosidade de leitores gloriosos.

. A Ilha do Tesouro (Robert Louis Stevenson), onde vivi a minha primeira odisseia do espírito e me deixei arrebatar por um imaginário que me revelou que havia mais mundos do que aquele eu habitava.
. Lorde Jim (Joseph Conrad), com quem embarquei no primeiro navio que saía do porto de abrigo do meu quarto de adolescente e em cujas páginas me abandonei ao desconhecido das costas do Pacífico.
. O Homem Sem Qualidades (Robert Musil), onde me sentei à mesa dos cafés de Viena observando os homens sem qualidades em apocalipse alegre.
 . As Lojas de Canela (Bruno Schulz), cujos umbrais cruzei para penetrar na colmeia de loucura e metamorfoses em que o autor se encontrava encerrado.
. Jacob von Gunten (Robert Walser), com quem aprendi a arte de escrever a lápis para melhor poder ausentar-me.
. O Castelo (Franz Kafka), que li como um agrimensor de sentidos ocultos.
. Rayuela (Julio Cortázar), onde aprendi a melhor maneira de me perder em Paris.
. Debaixo do Vulcão (Malcolm Lowry), onde vi o cônsul da embriaguez e dos vulcões se precipitar nos abismos do mescal.
. Os Anéis de Saturno (Sebald, W. G.), sob os quais me tornei um agrimensor de paisagens e de memórias.
. Danúbio (Claudio Magris), cujo caudal me levou numa viagem iniciática através da Mitteleuropa e que não cesso de reiniciar porque o fluir do rio nunca é o mesmo.

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