24 de fevereiro de 2014

Sempre rumo a Ítaca


Leio em Alfabetos, livro de ensaios de literatura de Claudio Magris que, como todos os seus livros, é - como diz Enrique Vila-Matas - "um tapete que dispara em muitas direcções", um texto sobre Novalis que, citando o começo de Heinrich von Ofterdingen, obra-prima da literatura romântica alemã e europeia, propõe esta reflexão exemplar: "Onde vos dirigis?" - perguntam os viandantes - "Sempre rumo a casa" - é a resposta. E enquanto os viandantes de Novalis, depois de terem ido em busca da flor azul da poesia, vão empreendendo a sua viagem de regresso, recordo a minha leitura recente de Às Cegas, o romance-ensaio de Magris que mistura matéria ficcional, documental, autobiográfica, ensaística, histórica e epistolar, onde Salvatore Cippico depois de ter atravessado mares, continentes e séculos, interroga se ainda existirá casa aonde possa regressar depois da sua dolorosa travessia em que foi avançando e perdendo-se continuamente, num "delírio de muitos": "Nenhuma viagem é demasiado longa e perigosa, sobretudo se traz de volta a casa. Mas existem ainda casas onde voltar, alguma vez existiram?"

A pergunta que os viandantes de Novalis e o revolucionário errante de Magris fazem a si próprios é - diz Magris - "a grande pergunta que um Ulisses sente dirigirem-lhe e dirige a si próprio [e que] é se ele, atravessando o mundo e a existência, pode voltar a casa, a Ítaca, ou seja, a si mesmo, confirmado [...] na sua identidade e confirmando o sentido da sua vida, ou se será forçado a ir sempre mais adiante e sempre mais longe, descobrindo a impossibilidade de formar a sua pessoa e de encontrar um significado nas coisas, perdendo-se pelo caminho e tornando-se continuamente um outro. Essa odisseia sem retorno a Ítaca é, com efeito, a viagem, o destino mais frequente dos Ulisses modernos." Como o Ulisses de Dante que, no Canto XXVI do Inferno, afirma que nem a piedade pelo pai, nem a companhia do filho, nem o amor devido a Penélope e que deveria torná-la feliz, puderam vencer nele a vontade de conhecer o mundo, bem como os vícios e as virtudes dos humanos e, por isso, voltou a partir de Ítaca, persuadindo os companheiros a acompanhá-lo na busca desse conhecimento numa viagem que viria a revelar-se sem retorno.

Ao contrário da Odisseia de Homero onde Ulisses regressa a casa com a sua identidade confirmada ou da odisseia de Novalis onde a errância pelo mundo do protagonista em busca da flor azul da poesia é imaginado como o retorno absoluto à casa natal ou, ainda, da odisseia de Joyce onde Leopold Bloom também regressa a casa numa viagem circular elíptica, a odisseia de Salvatore Cippico e do seu alter-ego, o aventureiro dinamarquês Jorgen Jorgensen, é uma "odisseia sem retorno a Ítaca" que expressa a arbitrariedade dos poderes, a impossibilidade de retorno ao lar, a errância sem sentido, a desorientação e, finalmente, o naufrágio que, num "delírio de muitos", como na odisseia dos homens sem qualidades de Musil, leva ao apagamento das identidades como se estas fossem pegadas na areia.

Inspirado pelo motivo da navegação temerária enquanto metáfora náutica da existência - trabalhada pelo filósofo alemão Hans Blumenberg em Naufrágio com Espectador, a partir do Proémio do livro de Lucrécio Rerum Natura, sublinhando a posição segura em terra firme donde o espectador observa a cena do heróico naufrágio dos audazes navegadores -, Magris faz-nos embarcar ("Vous êtes embarqués", conforme fórmula inventada por Pascal) numa odisseia moderna que expande a geografia homérica bem para além do Mediterrâneo, espraiando-a desde o seu epicentro em Trieste, para Norte, até à Islândia e, para Sul, até às costas da Tasmânia, através do mar conradiano da existência - povoado de costas e ilhas, recifes e tempestades, abismos e calmarias, timoneiros e ancoradouros, monstros e sereias, figuras de proa e portos de abrigo - onde o indivíduo arrisca o naufrágio.

"Nascer é como cair ao mar", afirma uma personagem em Lord Jim, de Conrad. Por isso, sem uma fundação sólida sobre a qual se apoiarem, perdida a figura de proa capaz de os guiar, amarrotado nas dobras do tempo o tosão de ouro, como fazer para regressar a Ítaca? "Por todo o lado, há pântano, lodo e algas sobre os quais se derrama a espuma do mar. O Argo está encalhado, o tosão pende amarrotado; [...] Jasão cala-se, como sempre, não consegue sequer fixar o olhar perdido no mar, porque já não existe mar".

Mas se, como diz a personagem de Conrad, "nascer é como cair ao mar" ou se, de acordo com a metáfora nietzschiana do embarque, viver é como estarmos já no alto mar, onde, para além da salvação ou naufrágio, não há qualquer outra possibilidade, então, estamos destinados a partir de Ítaca, uma e outra vez, sem "fés ou filosofias específicas, que garantam a escolha e a bondade das acções" que nos poderão trazer de volta a casa. Porque, como diria Goethe, estamos totalmente embarcados sobre a vaga do mundo - firmemente decididos a descobrir, ganhar, lutar, falhar, ou de ir ao fundo com toda a carga.

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