18 de janeiro de 2014

A Europa dos cafés


A Europa era feita de cafés. Uma cartografia de encontro de poetas, escritores, artistas, filósofos, revolucionários, flâneurs. Como se a própria Europa fosse um grande café, lugar de hábitos metódicos e dos vaivéns casuais.

"Desenhe-se o mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da ideia de Europa", escreve George Steiner no ensaio A ideia da Europa. Na Milão de Stendhal, na Veneza de Casanova, na Paris de Baudelaire, o café albergava o que existia de oposição política, de liberalismo clandestino. Também de renuncia, como nos cafés de Viena, onde os homens sem qualidades de Musil representavam sem saber a irrealidade da vida, ora se deixando ir, contemplativos, em "apocalipse alegre", ora afrontando a vertigem do vazio da era moderna, sem nele se despenharem.

Lisboa onde ao entardecer, metódica e pontualmente, como num rito sagrado, Pessoa se sentava numa mesa de canto do Martinho da Arcada, desdobrando-se, em desassossego interior, em Bernardo Soares para meditar em vão sobre "metafísicas perdidas pelos cantos dos cafés de todo o lado, as ideias casuais de tanto casual, as instituições de tanto zé-ninguém". Ou a Brasileira do Chiado onde nas tertúlias de antanho era comum verem-se os restos da Carbonária numa mesa, os integralistas noutra e Pessoa e Almada Negreiros noutra ainda. Ou o Majestic, no Porto, "onde - conta Agustina Bessa Luís - se juntavam músicos e pintores do tempo duma boémia que o burguês via com enfado".

Lisboa: Pessoa no Martinho da Arcada inventando a mais profunda genealogia da literatura portuguesa. Paris: Sartre e Simone de Beauvoir no Café de Flore, num amplexo amoroso, entre duas reuniões "existencialistas". Berlim: Walter Benjamin no Café Tiergarten, traçando "labirintos de tinta embebidos nos [seus] cadernos". Copenhaga: Kierkegaard num vaivem meditativo entre cafés, lançando as bases do existencialismo. Trieste: Claudio Magris navegando pelo Danúbio no Café San Marco, "um verdadeiro café, situado na periferia da História". Praga: Kafka pousando a sua existência de morcego no Café Louvre. Budapeste: Deszó Kosztolányi, no Café Sirius, pedindo tinta para escrever, em vez de um café: "- Garçon – dizia – tinta, s´il vous plaît!". Odessa: Isaac Babel pondo em movimento, num café do guetto judeu, os seus gangsters de papel.

Zurique: Lenine, à mesa do café, imaginando uma revolução. James Joyce escrevendo a história moral da Irlanda. Mata-Hari ensaiando os primeiros passos na intriga internacional. As sombras, ainda, de Goethe, Hermann Hesse, Thomas Mann. Enrique Vila-Matas autoficcionando um encontro impossível: "Na manhã seguinte, nevava em Zurique. Saí do hotel com o chapéu de feltro e o meu guarda-chuva, e fui tomar o pequeno almoço ao velho e famoso Café Odeon, de que sempre se disse que Lenine, assíduo cliente daquele estabelecimento, pôde trocar mais de uma palavra com James Joyce, outro cliente habitual. Ah, o Odeon! Lembrei-me que Mata-Hari tinha ali debutado como bailarina. E a seguir imaginei uma cena impossível, imaginei Lenine a beber um café, enquanto lançava olhares furtivos a um exemplar de Gente de Dublin".

E ainda os cafés de Paris revisitados por Enrique Vila-Matas em Paris nunca se acaba, como aquele "café que fica perto do cruzamento da rue du Bac com o boulevard Saint-Germain, onde Perec recomendava que nos sentássemos para observar a rua com um esmero um pouco sistemático e a anotar o que víssemos, o que nos chamasse a atenção, obrigando-nos a nós mesmo a escrever inclusive o que aparentemente não tem interesse, o que é mais evidente, o mais comum, o mais opaco".

Ou o Café La Closerie de Lilas onde um dia me pareceu ver o encantador de garrafas Hemingway, mas que, afinal, se revelou ser um jovem catalão aprendiz de escritor aguardando o melhor momento para sair sem pagar. Ou aquele minúsculo café no Boulevard Jourdan para onde me levavam os meus passos nocturnos desde a Cité Universitaire para, noite adentro, ir enfiando moedas na velha juke-box e ouvir o anarquismo musical de Boris Vian e de Leo Ferré, porque ali não se cantava o fado e a metafísica ocupava todas as mesas.

Desapareceram, entretanto, os cafés da velha Europa. Ou, o que vem dar ao mesmo, apagou-se a aura que os habitava. E os que, ainda, sobrevivem, já não são habitados pela ideia de infinito, mas antes por uma clientela mais ou menos extravagante, composta por epígonos nostálgicos, turistas alheios ao literário, contempladores sensíveis e fetichistas dos bons lugares, confundidos no vaivem dos empregados de mesa sem perceberem que  tudo, ali, afrouxou na aparência das coisas e da sua representação.

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