29 de janeiro de 2014

A praxis do mal


Ignoro, na verdade ignoramos todos, se a tragédia da praia do Meco que matou seis jovens estará relacionada com um qualquer ritual da chamada praxe académica em que as vítimas estariam obedecendo a ordens do único sobrevivente, conforme suspeição que tem vindo a ser adensada nalguns media e que, ainda, hoje, fazia manchete especulativa num matutino. Isso, ao seu tempo, espero, esperamos, a justiça deverá esclarecer. Mas que - glosando a denúncia de José Pacheco Pereira, expressa no Público de domingo - a praxe suicida, às vezes, o corpo e, quase sempre, o espírito, disso, parece, não existirem  dúvidas.

Só o apagamento de si próprios em praxis como aquelas que os media têm vindo a revelar através de relatos, reportagens e comentários declinados em imagens, umas vezes, grotescas, outras, abjectas, poderá justificar que jovens universitários confundam práticas de integração grupal com o consentimento de posturas de submissão e de humilhação públicas, como deixar-se conduzir por outros mais velhos em alegre cortejo com a cabeça enfiada em orelhas de burro ou arrastar-se pelo chão de pés atados a pedras numa imitação de agrilhoamento ou enfiar a cabeça em excrementos ou aceitar prostações animalescas ou, em casos extremos, roçar o sadomasoquismo ou, ainda, integrar ritos iniciáticos de carácter escatológico que para além de suicidarem o espírito expoêm o corpo ao risco de morte como poderá ter acontecido no Meco. E muitos, ao fim da noite, para que o descontrolo seja total, num vórtice de embriaguez.

A praxe, isto é, todas aquelas praxis que vêm sendo divulgadas nas televisões e que, como tudo indica, se encontram disseminadas na generalidade das instituições universitárias tanto públicas como privadas, suicida o espírito, já violou corpos e poderá ter matado, enquanto autoridades públicas, reitorias, famílias, enfim, nós todos, fomos ficando de "olhos vendados" - como ficaram os personagens daquele romance-ensaio Às cegas, de Claudio Magris, que fornece motivos recorrentes a quem o ler para manter os olhos bem abertos num mundo à deriva - diante dos cortejos de jovens seguindo bovinamente uma colher de pau gigante e fazendo pantominas parolas envoltas no kitsch  technicolorido da transgressão.

É que, ali, naquela transgressão, todos os que estão a ser iniciados, é promovida a sua homogeneização, o seu nivelamento [e, sobretudo], a sua desinvidualização", como explica a socióloga Rita Ribeiro em entrevista no Público do passado domingo.  E desinvidualização que converte aquela praxis numa experiência de labor, o que justifica o espírito bovino presente nas cerimónias de iniciação, remetendo para o conceito de animal laborans - expresso por Hannah Arendt em A Condição Humana - que reduz o indivíduo a um estádio primitivo e infra-humano indiferenciado dos animais.

Entretanto, as reitorias por questões políticas, porque querem ter os alunos do seu lado; muitos alunos, por não querem afrontar as hierarquias estabelecidas ou por medo de retaliação; os governos, por acharem que o problema tem de ser resolvido dentro da autonomia universitária; e nós todos, por acharmos que aquilo não é nada connosco e que se trata, tão só, de brincadeiras de alunos crescidos que o fazem de livre vontade, como, ainda hoje, declarava levianamente em comunicado, numa tentativa patética de desculpabilização, o administrador da universidade a que pertenciam os alunos vitimados. Ora a verdade é que todos somos culpados: as autoridades e as reitorias, porque têm o dever de intervir, expulsando, regulando ou domesticando as praxes; e nós todos, porque temos o dever de não ficar de olhos vendados diante de praxis que promovem a "banalidade do mal" que vai suicidando o espírito e arriscando o corpo dos nossos jovens universitários.

A transgressão praxista, tal como ela nos vem sendo revelada em vídeos disseminados no youtube, exibe não apenas um vazio de pensamento, mas também a "banalidade do mal" - no sentido atribuido por Hannah Arendt a esta expressão no seu polémico livro com o título homónimo -, associada a uma retórica, ou mistificação (que Rui Bebiano desmitifica no seu blogue) que se ilude ao exaltar a trangressão pela transgressão com desprezo completo pela individualidade dos caloiros submetidos, ainda que com o seu aparente, ou mesmo declarado, consentimento à obediência "às cegas" a ordens humilhantes e muitas vezes abjectas, assentes numa ordem hierárquica que promove o apagamento daqueles que são praxados, numa tensão - melhor seria chamar-lhe pulsão dada a fixação erótica presente em alguns rituais - permanente de reprodução das estruturas hierárquicas estudantis. Diante da demência radical da praxe, inteiramente submetidos ao poder dos veteranos, aos caloiros só a obediência "às cegas" lhes resta quando a sua plasticidade foi testada até ao limite da superfluidade.

Apesar da demência radical das praxes, e ouvindo alguns depoimentos de praxistas, é enganador recorrer a explicações patológicas, pois a retórica da transgressão praxista apresenta o crime - porque, em muitos casos, é de um crime que se trata -, como se este, devido ao consentimento, fosse acompanhado pelo seu próprio resgate. Pelo contrário, o que explica a banalidade da transgressão é a cumplicidade da sociedade com uma praxis que escapa ao controlo do exterior, permitindo a criação de uma zona de sombra de crime sem castigo.

Em defesa da retórica da transgressão pela transgressão argumentam os defensores da ordem praxista que existe uma autorização, melhor será dizer, uma intimidação dos caloiros, solicitada e concedida - nalguns casos com declarações assinadas como parece ter sido o caso de uma das jovens mortas na praia do Meco - procurando, deste modo, lavar as suas acções de comando cobertas ainda de lama  e crueldade, na ilusão de que isso lhes confira inocência. Nada mais ilusório porque as circunstâncias determinam mais a intimidação do que a autorização. "Porque - como afirma Hannah Arendt - até o medo é, ainda, um princípio de acção e, enquanto tal, imprevisível nas suas consequências". E porque há direitos individuais que não podem ser disponibilizados mesmo que com o consentimento dos indivíduos.

Ao ver, agora já sem venda nos olhos, as imagens abjectas de jovens lambendo o chão ou esfregando-se em esterco em obediência a um kitsch protofascista, recordar, então, a interrogação fundamental de Primo Lévi "se isto é um homem", sobre a redução do indivíduo ao infra-humano. Importará, por isso, do meu ponto de vista, talvez, não expulsar as praxes, porque isso poderia ter efeitos perversos, arrastando as praxes clandestinas para territórios ainda mais obscuros, mas domesticá-las através da lei e de códigos de conduta. Porque, como escreve Claudio Magris num capítulo de Danúbio dedicado ao "kitsch do mal", "se não houver uma lei, um temor, um dique que os impeça de fazer" [...] o que pode ser feito impunemente, qualquer aluno veterano se poderá transformar num dux totalitário.

E ao mesmo tempo, contrapôr ao mal da praxis actual a ética da convicção e da responsabilidade - como diria Max Weber -, levando os jovens universitários a interrogarem as possibilidades: porquê esta praxis quando se pode sempre praticar outra?

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