9 de outubro de 2007

Danças com Che



No passado sábado enquanto lia o suplemento literário do El Pais na esplanada do Círculo de Artes, em plena Gran Via, em Madrid, alguém, que me pareceu de imediato muito familiar, se sentou na mesa ao lado e pediu que lhe trouxessem um Habana Club com gelo. Durante algum tempo procurei recordar de onde conheceria eu aquele rosto. Ainda pensei tratar-se de Gael García Bernal ou Benicio del Toro ou, embora menos, de Antonio Banderas. Como não achava forma de me lembrar, entre um gole de rum e outro, ganhei coragem e acabei por lhe perguntar: - «Perdone? No nos conocemos?»Seguro que sí. Yo soy el Che Guevara», respondeu.

Pensei tratar-se de uma piada e esqueci-o. Contudo, à noite, enquanto caminhava pela Plaza del Sol, lá estava ele, agora plantado sobre um  caixote de plástico, vestido com camuflado militar e com a bóina do Che Guevara na cabeça. Com um livro aberto na mão, recitava um inflamado discurso contra o imperialismo, enquanto se deixava fotografar por grupos de turistas japoneses que lhe concediam, depois, alguns euros que atiravam para uma pequena caixa colocada aos seus pés. Não havia dúvida, era mesmo o Che que ali estava, competindo com um homem de mala de viagem, gabardina e chapéu de chuva revirados pela ventania imaginária que de repente se levantara naquela praça de Madrid mas que, estranhamente, parecia não afectar o revolucionário argentino. Contudo, não obstante a paixão que Che imprimia ao seu discurso, o homem da mala e gabardine ao vento atraía mais público e arrecadava mais moedas, retardando, assim, o financiamento da revolução por vir.

Na Calle de los Preciados, muito perto, portanto, do epicentro revolucionário da Plaza del Sol, na vitrina de uma loja de artigos de beleza de categoria duvidosa, expunha-se um kit completo de higiene revolucionária: um jogo de toalhas vermelhas com a efígie do Che e uma caixa de sabonetes, gel de banho e shampô, tudo com o selo do Che. E na vitrina da relojoaria, uns metros adiante, alguns relógios Swatch com a fotografia de Che no mostrador esperavam pulsos revolucionários. E na loja da FNAC havia um escaparate de novidades sobre o Che: Ernesto Guevara, también conocido como el Che, Paco Ignacio Taibo II, Booket; Os últimos dias de Che, Juan Ignacio Siles, Debate; Diarios de motocicleta, Ernesto Che Guevara, Ediciones B; El diablo cojuelo, Luis Veléz de Guevara, Cátedra; Che Guevara. Una vida revolucionaria, Jon Lee Anderson, Anagrama; El hombre que mató al Che Guevara, Magnus, Nuevas Fronteras del Arte. Perante tamanha profusão de comandantes, pensei que a revolução estaria iminente e que, talvez, fosse melhor deixar os sapatos Camper para outra ocasião, não fosse ser confundido com um simpatizante da globalização.

Regressei de Madrid sem que tenha notado qualquer mudança revolucionária. Talvez porque os turistas tivessem preferido o homem da mala e gabardina ao vento ao inflamado Che da Plaza del Sol. Mas hoje, por ocasião do quadragésimo aniversário da sua morte, ao procurá-lo no Google voltei a encontrá-lo nos lugares mais insólitos: tatuado no braço de Maradona, desenhado em t-shirts, impresso em posters para quartos de adolescentes, bordado em roupa interior feminina, pintado em bolas de futebol, gravado em caixas de chocolates, inscrito em notas de um dólar, difundido através de pins, de gadgets. Che para todos os gostos e idades, como estratégia de marketing, trabalhada a partir da velha fotografia de Alberto Korda como denuncia Trisha Ziff em Che: Market and Revolution: para estudantes e para a terceira idade, para enfermeiras e empresários, para intelectuais nihilistas e alienados consumistas. Adorado como um santo na Bolívia e odiado como um assassino em Miami.

Como explicar esta espécie síndrome guevariano?.Talvez porque Che morreu jovem, guapissimo, como me disse uma amiga argentina, mais ainda do que os seus duplos  actuais, Gael García Bernal ou Benicio del Toro. Talvez para nos fazer esquecer a imagem patética de Fidel calçando uns chinelos Adidas num hospital cubano. Ou os discursos bolivarianos de Chávez. Talvez porque vivemos num mundo sem redenção.

Talvez por isso, também, a única imagem que gostaria de evocar agora, não é a mítica fotografia de Alberto Korda, tirada em 1960, e que o Instituto Maryland de Arte viria considerar «a mais famosa fotografia no mundo e símbolo do século XX», mas aquela outra, muito menos conhecida, que mostra duas mulhers dançando por ocasião do seu aniversário, em Santa Coloma de Gramanet. Não porque haja ali qualquer pulsão revolucionária, e muito menos o sentimento nihilista contemporâneo que o transformou, nas décadas de sessenta e setenta num ícone de uma juventude rebelde com causa, depois na ténue bandeira de nostálgicos guerrilheiros urbanos, e mais recentemente num símbolo do movimento anti-globalização, mas porque essa é uma imagem sem rosto, a única que lhe pertence desde que lhe atribuiram uma biografia romântica, mitificando-o como um justiceiro solitário e um revolucionário generoso, abatido traiçoeiramente no final da história.

A questão a saber é se poderá ainda atribuir-se algum significado político à sobrevivência mercantilizada de Che. Em artigo publicado no El Pais [Che "versus" fetiche], Iván de la Nuez, um ensaísta cubano que vive em Barcelona, considerava a propósito que «para la izquierda radical, el fetiche del Che significa una victoria cultural después de una derrota política. Para la derecha radical, el fetiche del Che significa una derrota cultural después de una victoria política». Será? E será que «a sua auréola de idealista e de herói, a capacidade de sedução de alguns dos valores que orientaram a sua intervenção, a própria noção da violência revolucionária como necessidade», ligadas à utopia guevarista ainda fazem sentido, como questiona Rui Bebiano em O capitão Wiesler e o doutor Guevara?

[Obrigatório passar por http://www.personalche.com/ e ver o trailer de dois jovens cineastas Douglas Duarte (Brasil) e Adriana Mariño (Colômbia) também em: www.youtube.com/watch?v=1nyBxg32Wd0]

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