25 de outubro de 2007

Diário chileno (I). Lonjuras




Do Chile, contou-me Neruda das soberbas paisagens e dos aromas, das madrugadas e dos crepúsculos, do estoicismo e da hospitalidade das suas gentes. E também dos «exílios que mordem e [de] outros [que] são como fogo que consome». E do «medo como um sabor metálico na boca», ouvi contar Isabel Allende. E Roberto Bolaño, o escritor que se exilou no México, sem dinheiro para as chamadas telefónicas. Roberto Ampuero, com quem vou trocando mails entre Portimão e o Ohio, contou-me também que, quando era criança, no pátio alemão do colégio alemão de Valparaíso, meninos e meninas costumavam cantar com uma fé cega uma cantiga de roda que dizia: «arroz con leche, me quiero casar con una señorita de Portugal». Eram os anos sessenta e Portugal vivia no tempo da «cobra e do abutre». 

Mais tarde, em vésperas de Abril de 1974, em Estocolmo, juntei o meu desterro ao desterro de muitos chilenos. E depois, enquanto a chuva cinzenta caía sobre Santiago, os cravos vermelhos floriam em Lisboa. Entretanto, perdi o rasto aos chilenos de Estocolmo, mas em Gijón, no Salon de Libro, fui conhecendo outros, o Luís Sepúlveda e a Carmen Yañez, a Virgínia Vidal, a Regina Rodriguez, o Hernán Neira, todos cúmplices da Atlântica. E o Daniel Barraco, que sendo argentino, mora em Santiago, e que só conheço dos mails que vamos trocando e das belíssimas fotografias de Valparaíso e das ilustrações de Frida Khalo e de Witold Gombrowicz que me mandou para a Atlântica. Por isso, o Chile sempre foi para mim um país inventado.

Do Chile, contaram-me também da sua geografia longitudinal. Um país austral de lonjuras sem fim, espreguiçado nos seus quatro mil e trezentos quilómetros de montanhas, vulcões, vales, estepes, desertos, lagos, estuários, fiordes, arquipélagos, onde, contar-me-ia, depois, Neruda, «noite, neve e areia fazem a forma /da minha fina pátria, / há todo o silêncio na sua longa linha, /toda a espuma sai da sua barba marinha, / todo o carvão a enche de misteriosos beijos». Ao norte, a paisagem lunar do perfeito deserto de Atacama, sol, pedras calcinadas, uma paisagem imóvel de transparência cortante, emoldurada por um cenário de vulcões, uma solidão espectral, mas que, na Primavera, se veste momentaneamente de «vermelho, intensamente vermelho, coberto de pequenas flores cor de sangue», como escreve Luís Sepúlveda em As Rosas de Atacama: «- Ali as tens. As rosas do deserto, as rosas de Atacama. (...) As plantas continuam ali, debaixo da terra salgada. Viram-nas os atacamenses, os incas, os conquistadores espanhóis, os soldados da guerra do Pacífico, os operários do salitre. Continuam lá e florescem uma vez por ano. Ao meio-dia já estarão calcinadas pelo sol». A leste, a cordilheira dos Andes, formidável maciço de rocha e neves eternas sobrevoadas por condores. E a sul, a Patagónia, «terra de ar puro e de grandes espaços», como a definiu Bruce Chatwin, salpicada de parques nacionais com árvores milenárias, hoje ameaçadas pela destruição humana, atravessada pela Carretera Austral, uma pista pedregosa de 1200 km que vai de Puerto Montt até Villa O´Higgins, interrompida pela muralha dos glaciares para depois se transformar na pampa magalhânica; e também a costa patagónica, terras de Dezembro - como assinalou Fernão de Magalhães no mapa ainda por fazer quando avistou este rude e selvagem, em 1520 -, labirinto de ilhotas e fiordes, focas e pinguins, «cenário de catástrofes telúricas e de atrozes iniquidades humanas», onde viveu e escreveu Francisco Coloane, «o mais anfíbio dos escritores», como o classificou Volodia Teitelboim; e a última cidade continental, Punta Arenas, fustigada pelos ventos gelados do Estreito de Magalhães, orgulhosa da sua profunda australidade, enfrentando páramos e nevadas; e a última fronteira, a Terra do Fogo, antes dos gelos da Antárctica e dos icebergues à deriva que dão conta doutras iniquidades humanas. E a oeste, sempre o mesmo mar que Pedro de Valdivia baptizou de Pacífico. 

E que me contaram das cidades aonde irei? De Santiago do Chile, cujo aleph se esconde por detrás de uma pequena Manhattan orgulhosa das suas torres de vidro, ouvi Carlos Fuentes elogiar as suas «mulheres formosas com olhares de uva»; e que é uma cidade «melancólica e arrogante» e «confusa e secreta», segundo Antonio Skármeta; e que a sua boémia acontece à volta do cinema Biógrafo, da rua Lastarria, do Cerro de Santa Lucía, dédalo de escadarias, jardins e fontes; e que a praça Mulato Gil de Castro, enquadrada por antiquários e alfarrabistas, cafés e esplanadas, é o ponto de encontro da movida cultural santiaguina. E que La Piojera, «una de las picadas más famosas de Santiago», é imperdível. E de Valparaíso, «luminosa, ruidosa, espumosa e prostituta», que sei eu? Que Neruda e todos os viajantes e poetas a têm cantado como porto de nostalgia, aventura e perdição de marinheiros. E que também eu quero atravessar a obscuridade das suas escadarias, ruelas e praças sempre irrigadas pelo sopro salgado do Pacífico que sobe, ao crepúsculo, as suas quarenta e duas colinas, antes de me perder no Siete Machos ouvindo numa juke-box um tango Carlos Gardel. Mas contaram-me também que a vida no Chile é dura e brava, mas não igualmente para todos. Que há uma Santiago pintada com cores vivas e outra a preto e branco. Que nos bairros populares de «los de abajo», como Victoria, ou nos bairros de lata como Villa Francia, tudo parece cinzento, as pessoas exaustas, e que até os cães que erram entre caixotes de lixo são famélicos. E que nos bairros dos que vivem acima, nas colinas arborizadas, ao abrigo do smog no Inverno e da fornalha no Verão, como em Las Condas, os ricos escondem-se em luxuosas mansões atrás de altos muros rigorosamente vigiados. Que «los de abajo» descarregam as suas tensões, aos domingos, no Estádio Nacional de triste memória, insultando a polícia - «Pacos, hijos de puta» - e incentivando o clube do seu coração, Universidad de Chile. Que outros, vagueiam por infernos como o Cerro Navia, prisioneiros da «pasta base», a cocaína dos pobres que provoca razias. E que, alheios ao drama, outros há que cultivam a insustentável leveza da sua juventude, escapando-se no Verão para Viña de Mar, no Inverno para as estações de ski andinas e aos fins de semana para a movida dos bares de Bellavista e da rua Suécia. 

Hoje, o Chile é governado por uma mulher, Michelle Bachelet, filha de uma vítima da ditadura, em quem os chilenos depositam confiança para fazer esquecer as cicatrizes do passado, ultrapassar as dificuldades do presente e cruzar novos horizontes de esperança. Entretanto, as contas com o passado vão sendo saldadas, mandando para a prisão a viúva, filhos e acólitos de Pinochet, acusados de roubo de milhões de dólares durante a ditadura. [Eis o Chile antecipado que confrontarei na próxima semana, pois é para esse «território de essências longitudinais», cantado por Pablo Neruda e por Gabriela Mistral - que também tinha Portugal no coração - que viajo na segunda-feira. // Motivo: a participação num Encuentro Internacional de Escritores em Santiago e a apresentação da revista Atlântica. // Plano de evasão: 1. Santiago do Chile, das «mulheres formosas com olhar uva»; 2. A nostálgica Valparaíso, luminosa e obscura, debruçada sobre o Pacífico; 3. ... E, como Pepe Carvalho e Biscuter, intrépidos detectivos selvagens do derradeiro livro de Vázquez Montalbán, talvez «atravessar a fronteira pelo túnel do Aconcágua, que liga directamente a Mendoza, já na Argentina». // E para que o plano de evasão possa servir a outros, quando por perto houver um computador ligado à rede, irei dando conta do que me cair dos dias em terras austrais].

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