Diz António Trabucchi que todos os escritores são um pouco voyeurs, todos olham para lá das portas que abrem para os abismos de todos os dias, procurando roubar a experiência de outras vidas. Enrique Vila-Matas confessa esse pecado dizendo que tem por hábito fazer de espião casual no autocarro nº 24 que percorre «la calle Mayor de Gracia», em Barcelona, retirando dessa observação disfarçada a matéria impura dos seus livros: «Tenho em casa um arquivo de gestos, frases e conversas escutadas através do tempo nesse trajecto de autocarro, e até creio que poderia escrever um romance tão infinito como aquele que queria fazer Joe Gould sobre Nova Iorque, pois roubei e registei todo o tipo de frases soltas, conversas estranhas, disparatadas situações». Ficamos, então, a saber que o conto La Modestia [in Exploradores del abismo, Anagrama, 2007] é um produto de uma espionagem literária da realidade de todos os dias, feita de mundos ficcionais paralelos que às vezes se confundem, sem que os seus protagonistas o saibam, como aconteceu com «aquela mulher toda vestida de cinzento como a mãe de Nerval», saída, talvez, de um quadro de Fragonard para entrar no autocarro da carreira nº 24. É que numa carreira diária de um qualquer autocarro, se observarmos bem à nossa volta, talvez encontremos a porta que se abre para o abismo da dura realidade daqueles que, incógnitos, viajam connosco. O problema é que, depois, como diria Canetti, quando a porta se fecha já não sabemos como regressar desse mapa onde, entre uma paragem e outra, nos perdemos.
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