8 de outubro de 2007

Espião casual



Diz António Trabucchi que todos os escritores são um pouco voyeurs, todos olham para lá das portas que abrem para os abismos de todos os dias, procurando roubar a experiência de outras vidas. Enrique Vila-Matas confessa esse pecado dizendo que tem por hábito fazer de espião casual no autocarro nº 24 que percorre «la calle Mayor de Gracia», em Barcelona, retirando dessa observação disfarçada a matéria impura dos seus livros: «Tenho em casa um arquivo de gestos, frases e conversas escutadas através do tempo nesse trajecto de autocarro, e até creio que poderia escrever um romance tão infinito como aquele que queria fazer Joe Gould sobre Nova Iorque, pois roubei e registei todo o tipo de frases soltas, conversas estranhas, disparatadas situações». Ficamos, então, a saber que o conto La Modestia [in Exploradores del abismo, Anagrama, 2007] é um produto de uma espionagem literária da realidade de todos os dias, feita de mundos ficcionais paralelos que às vezes se confundem, sem que os seus protagonistas o saibam, como aconteceu com «aquela mulher toda vestida de cinzento como a mãe de Nerval», saída, talvez, de um quadro de Fragonard para entrar no autocarro da carreira nº 24. É que numa carreira diária de um qualquer autocarro, se observarmos bem à nossa volta, talvez encontremos a porta que se abre para o abismo da dura realidade daqueles que, incógnitos, viajam connosco. O problema é que, depois, como diria Canetti, quando a porta se fecha já não sabemos como regressar desse mapa onde, entre uma paragem e outra, nos perdemos.

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