30 de outubro de 2009

Havana para um Infante defunto



Há em Havana uma rua, a 23, que desce para o mar. Talvez, por isso, o troço final que desemboca no Malecón se chame La Rampa. Desci essa rua que mergulha no mar muito antes de alguma vez ter ido a Havana e de ter sentido o aroma achocolatado dos charutos cubanos. Subi-a e desci-a vezes sem conta em Três Tristes Tigres, de Guillermo Cabrera Infante. E, depois, em Havana para um Infante Defunto, espécie de crónica pessoal de uma Havana pobre, carregada de sons, de intersecções. E, a partir daí, desde La Rampa, perdi-me na Havana dos anos cinquenta, no labirinto sonoro de rumbas e son, do rum Bacardi e dos charutos habanos. Uma Havana nocturna, insular, «com os seus cafés ao ar livre, cheios de novidade, e as suas inusitadas orquestras de mulheres que amenizavam os cafés do Paseo del Prado».

Quando alguns anos depois visitei a cidade, Havana já não era a Lost City do filme de Andy Garcia, baseado no romance Três Tristes Tigres que ontem, revisitei como quem regressa a uma cidade desaparecida. Ao descer La Rampa, e depois caminhar a pé ao longo do Malecón até ao Centro, num começo de uma noite quente de Verão tropical, amenizada por uma brisa refrescante vinda da vizinha corrente do Golfo, foi ainda a cidade nocturna fundada por Cabrera Infante que atravessei. Ali estava, pelo menos eu via-a assim, a mesma cidade reflectida na patine luminosa dos edifícios recuperados do Centro Histórico. Via-a, ainda, no contacto caloroso das pessoas, na sensualidade imediata dos corpos, no perfume adocicado dos charutos, na música omnipresente nos bares e cafés de Habana Vieja. Reencontrei-a, também, em algum imaginário e em alguma iconografia que moldaram a minha juventude. Paradoxalmente, Cabrera Infante já não veria, se ali estivesse, a mesma Havana que eu via, porque aqueles elementos dispersos que agora eu ia recuperando, pertenciam a uma certa mitografia de uma felicidade talvez mais sentida pelos estrangeiros do que pelos cubanos, à qual juntaria, depois, algumas imagens de uma decadência de charme.

Três Tristes Tigres, que Cabrera Infante começou a escrever ainda em Cuba, antes de se exilar, é uma homenagem a uma Havana sem tempo à qual ele não mais regressou, por culpa de um rancor quase irracional que marcou até ao final da sua vida a sua relação com o Estado cubano. Assim se compreenderá a amarga ironia que atravessa os seus livros. Trágica dissidência que o tornou ausente de uma cidade que foi sempre o centro festivo dos seus livros. E, talvez, nem ele nem Havana merecessem esse afastamento, pois cópias clandestinas de Três Tristes Tigres sempre circularam em Cuba, formando gerações de escritores, não obstante a opinião injusta e pouco amável de Cabrera Infante sobre os escritores que não abandonaram a ilha. A ausência preencheu-a Cabrera Infante regressando sempre aos mesmos temas com uma nostalgia feroz: a Havana dos anos quarenta e cinquenta, as mulheres, a música, o cinema.

O primeiro sinal de fumo de Cabrera Infante encontrei-o em Três Tristes Tigres: «O charuto [...] aceso é outra fénix: quando parece apagado, morto, a vida do fogo surge entre as suas cinzas». Em Havana, quando fumei o meu primeiro charuto, no bar do Hotel Ambos Mundos, onde viveu Hemingway, juntando assim mais um elemento à tal mitografia da felicidade, ainda não tinha lido o que Cabrera Infante escrevera sobre o prazer de fumar: «Llamo felicidad a sentarme solo en el lobby de un viejo hotel después de una cena tardía, cuando se han apagado las luces de la entrada y solamente se distingue, desde mi cómoda butaca, al portero en su vigilia. Es entonces cuando fumo mi puro en paz, tranquilo en la oscuridad: lo que fue antaño una hoguera, transformado ahora en las ascuas civilizadas que relucen en la noche como el faro del alma».

Puro Humo conta a história da relação entre o cinema e o fumo. Porque para Cabrera Infante, sabemo-lo desde Havana para um Infante Defunto, os filmes são feitos de sonhos. Como os puros. Por isso, em Puro Humo viagja-se de Cuba para o cinema, reacendendo na memória do leitor-espectador um certo voyeurismo: um cigarro lânguido nos lábios de Marlene Dietrich, uma beata rude entre o indicador e o polegar de Bogart, o universo opaco de maldade nos clássicos negros como A Dama de Shanghai ou A Sede do Mal. Também outras páginas que exalam o mais puro fumo literário, com referências a Daniel Dafoe, Edgar Poe, Conrad, Stevenson, Dickens, Mallarmé, Lewis Carrol, Conan Doyle, Raymond Chandler, Hemingway, Jack London, Lorca, Lezama Lima… – e J. M. Barrie – autor, talvez, do mais belo título de todos os livros que fumam: My Lady Nicotine. Pura literatura, portanto, que se esfuma e perfuma como um puro fumado em Havana. Como uma paixão consumida.


[Texto originalmente publicado pelo autor na revista Atlântica 2, aqui reproduzido, hoje, por um não fumador, a pretexto da edição portuguesa de Puro Humo que agora chega às livrarias, com a chancela da Queztal, com o título Fumo Sagrado].

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