19 de outubro de 2009

Caminhos cruzados



Pergunta-se W. G. Sebald no micro-ensaio «Uma tentativa de restituição» (in Campo Santo) «quais são as relações invisíveis que determinam a nossa vida, como se estendessem os fios» entre acontecimentos distantes ditados por uma estranha lei que nos escapa. O que liga a prosa anímica do caminhante Sebald ao rasto já há muito extinto do passeante Robert Walser, mas que continua visível no papel? Onde se cruzam as suas biografias? Talvez no facto de Sebald ter vivido toda a sua infância com o avô materno, que não só tinha o hábito das grandes caminhadas como Walser, como, ainda, era muito parecido fisicamente com ele e, se não bastasse essa coincidência, ter também ele morrido na neve enquanto passeava solitário numa paisagem semelhante àquela em que Walser sucumbiu fulminado e que distava apenas cem quilómetros de Herisau e, ao que parece, no dia anterior ao do último aniversário do escritor suíço. Talvez, depois, ainda, na circunstância de ambos remeterem para uma espécie de poética da extinção; em Walser através de elegantes fantasias poéticas que vai traçando, tenuamente, a lápis no papel para melhor desaparecer, uma frase fazendo sempre esquecer a anterior; e em Sebald sedimentada em camadas de esquecimento nos escombros que ele vai escavando através de uma prosa pausada e cadenciada para melhor dar conta do desvanecimento da história. Talvez, ainda, porque, um e outro, entreviam o mundo envolto numa estranha quitetude; Walser caminhando solitário sob a luz cristalina da manhã em busca do espírito da montanha; Sebald procurando resgatar uma moral da natureza. Um e outro procurando uma cintilação qualquer no tecido puído do tempo.

Seriam estas as causualidades que levaram Sebald, em 1997, na primeira sessão do ciclo de lições que proferiu na Universidade de Zurique, a evocar o passeio de Carl Seeling com Walser, nos arredores do manicómio de Herisau, no Verão de 1943 – passeio que aquele, depois, relataria na biografia que lhe dedicou -, precisamente no mesmo dia do bombardeamento de Hamburgo descrito em História natural da destruição? «Não são casualidades – diria Sebald se lhe perguntassem sobre o que o liga a Walser – trata-se apenas de existir algures uma relação que de quando em quando cintila por entre um tecido puído».

Como também não é casualidade eu ter terminado de ler os ensaios literários de Campo Santo e me ter interrogado por não encontrar ali qualquer referência Walser – como se a sua biografia fosse tão delicada e a sua prosa tão leve que tornasse quase impossível seguir-lhe o rasto, mesmo para alguém como Sebald tão habituado em fazer incursões fantásticas nos territórios dos excêntricos cujos sedimentos vasculha nas camadas de esquecimento para onde os seus passos de caminhante solitário e de narrador interpelante o levam sempre que se dispõe a ir por aí, entre ruínas – e, agora, chegar às livrarias portuguesas um ensaio do caminhante alemão sobre o caminhante suíço - e que na tradução portuguesa dá nome ao livro - O caminhante solitário (Teorema) [traduzido de Logis in einem Landhaus, Carl Hanser Verlag, 1998], e onde Sebald vai por ali, sem mapa, perseguindo, desde o ponto de vista da fugacidade – a sua e a de Walser -, a prosa dançante de repente levantada como uma poeira trágica do tempo incapaz de escapar ao seu destino de, uma e outra vez, continuar a ser lida por Sebald e, agora que Sebald também já cá não está, por todos aqueles que se adentram numa literatura de consternação.

1 comentário:

  1. Magnífico!!Que estranha puídez do tempo se sente que nos liga a Sebald mais do que a Bolano, nestes tempos de exagerada consagração do mexicano - RCóias

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